ZÉ RAMALHO: 40 ANOS DE A PELEJA DO DIABO COM O DONO DO CÉU

Em 2019 completaram-se 40 anos de A Peleja Do Diabo Com O Dono Do Céu, o disco de Zé Ramalho responsável por mudar os caminhos de muita gente. Embora o sucesso viesse total em 1980, foi em 1979 quando tudo foi construído. Dentro do caldeirão musical desse disco, encontraremos elementos nordestinos cuja ancestralidade fala fundo dentro de nós. 

É um disco tangente ao Tropicalismo, fugitivo ao Rock, arredio ao Regionalismo e ao psicodelismo, mas ao mesmo tempo dialogante com todos eles. Se Paêbiru fora a transposição dos mistérios da Pedra do Ingá, junto com Lula Cortes, para as frases musicais, algumas improvisadas nos estúdios da Rozenblitz, no Recife; e Avohai tornara-se a realização do primeiro sucesso nacional; a Peleja trouxe elementos sociais bem significativos e consolidou a presença de Zé Ramalho no cenário da música brasileira.

O disco inicia com a célebre frase “Ói, com tanto dinheiro girando no mundo quem tem pede muito, quem não tem pede mais.” E segue seu caminho de constatações e denúncias explícitas, embora recobertas pela ludicidade das construções poéticas, livremente inspiradas na poética dos cantadores e poetas do cordel. O próprio título já remete a um veio do cordel brasileiro: as pelejas entre dois bons repentistas. 

O ritmo do baião contempla o casamento instrumental de sanfona, zabumba, sopros, com uma marcação poderosa do bacalhau de Borel. Para quem passar da faixa um,receberá a seguir o aboio do vaqueiro mais competente em Admirável Gado Novo: “Ê, ô, ô, vida de gado. Povo marcado, ê, povo feliz.” Quem de vocês que fazem parte dessa massa não já cantou esse refrão?

Como o próprio Zé Ramalho tem confessado, há uma forte influência de Geraldo Vandré em sua formação. A homenagem e a citação ao criador de Pra Não Dizer Que Não Falei Das Flores vem na terceira faixa do disco, Falas do Povo: “Falo da vida do povo, nada de velho ou de novo.” Letra estritamente social, mas como já disse, vestida em forte clima poético, distanciando-se do que poderia ser panfletário. O violino de Jorge Mautner se faz presente. 

Depois de três músicas marcadas pelo traço reflexivo, vem Beira-Mar, inaugurando o ciclo que se prolongará por mais duas gravações em discos posteriores: Beira-Mar (Capítulo 2) e Beira-Mar (Capítulo final). As letras desses “beira-mar” já estavam prontas desde 1977 na forma de um folheto de cordel chamado Apocalypse, cuja primeira parte aparecerá em Canção Agalopada, no disco Terceira Lâmina.

O Lado 1, sim, era assim naquele tempo de Lps de vinil, finalizava com Garoto De Aluguel (Taxi Boy): “Baby, dê-me seu dinheiro que eu quero viver”. O arranjo bem amarrado nas cordas fechava com chave de ouro a primeira parte do trabalho. Acredito que, como eu, muitos não conseguiram parar de escutar esse álbum. Não queríamos perder tempo e virávamos na pressa esperando as surpresas do Lado 2. E vinha surpresa mesmo pois Pelo Vinho e Pelo Pão mudava o clima, introduzindo um fado com direito a cavaquinho, violão de sete cordas e clarinete, como em um regional e participação especial de Amelinha. Mas o Mote Das Amplidões, a segunda do Lado 2, retomava o clima nordestino, com décimas setissilábicas terminadas no mote Viajo Nas Amplidões.

Jardim Das Acácias é uma citação a João Pessoa, capital da Paraíba. Nessa gravação identifica-se mais uma quebra pois aparecem uma guitarra elétrica, tocada por Pepeu Gomes, uma bateria e um órgão. É uma advertência e uma orientação para o Terceira Lâmina que se afastará do acústico. Segue-se Agônico, faixa instrumental, presença constante nos discos posteriores, na qual Zé toca todos os instrumentos. 

No CD Eu Sou Todos Nós (1998), o instrumental ganhará uma letra e voltará com o título Agônico – O Canto. O LP se fecha em Frevo Mulher com arranjo de sopros, um frevo de rua que se será o grande sucesso atemporal na voz de Amelinha. Nesses 40 anos vimos esse trabalho transformar-se na própria vida de Zé Ramalho e em extensão de nossas próprias vidas. 

Fonte Professor Doutor em Ciência da Literatura Aderaldo Luciano Kuruma’tá é uma revista online de culturas e afetos compartilhados. É conversa do mundo, das coisas. É pra falar de livros, leituras e leitores. Pra falar da música e do cinema que nos encantam. Falar da troca entre as gentes e suas criatividades.
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