Foi em 2001 que ouvi falar sobre Paêbirú: caminho da montanha do sol (1975), primeiro lançamento comercial do paraibano Zé Ramalho, acompanhado do pernambucano Lula Côrtes. O disco era mencionado na revista Showbizz numa lista de 10 grandes obras da psicodelia brasileira. Eu, que à época já começava a conhecer melhor as canções de Zé, fiquei intrigado com o álbum, sem vislubrar que pudesse escutá-lo algum dia.
Isso aconteceria em 2007, graças à boa e velha internet, pois o disco era (e ainda é) raríssimo. Contam-se diversas lendas para explicar a exiguidade de exemplares de Paêbirú. A mais conhecida, certamente, é que diz ter ocorrido uma enchente que destruiu 1.000 das 1.300 (?) cópias originalmente prensadas, além das próprias fitas master. O fato é que, hoje, um exemplar do LP de 1975 custa em torno de 5.000 mangos – apesar de circularem algumas cópias, por aí, lançadas pelo selo Mr. Bongo. (E o crítico Mauro Ferreira informou, há pouco, que a raridade voltou a ser editada pela série Clássicos do Vinil, mediante parceria da Polysom com a Rozenblit, gravadora original do álbum).
O folclore que envolve o disco, apesar de interessante, não é nada comparado ao seu próprio conteúdo. As faixas estão divididas nos quatro lados (do LP duplo) intitulados de acordo com os quatro elementos: terra, ar, fogo e água. Assim, trata-se de uma obra conceitual e, acima de tudo, coletiva. Participaram da concepção de Paêbirú não apenas Lula e Zé Ramalho, mas também outros amigos que, mais tarde, ganhariam maior notoriedade, Alceu Valença e Geraldo Azevedo – além de músicos inquestionáveis como Ivson Wanderley, Zé da Flauta, Paulo Rafael e Jarbas Mariz.
O disco representa uma imersão no misticismo, na mitologia e nas estórias que envolvem o sítio arqueológico paraibano da Pedra do Ingá. Tudo gira ao redor da entidade conhecida pelos indígenas da região como Sumé, aludida em suas narrativas orais e nos desenhos rupestres ali encontrados. Há quem diga que Sumé foi um ser humano comum, vindo de algum outro continente (já ouvi a história de que se trata do próprio São Tomé!); mas as lendas também o descrevem como um extraterrestre que desembarcou no Ingá a partir do ar, e há quem considere se tratar do próprio Ashtar Sheran, entidade que lideraria um conselho galático do qual Jesus Cristo faz parte, como responsável/representante da Terra. (Enfim, na mística envolvendo Sumé, cabe todo tipo de maluquice).
Assim, Paêbirú tem momentos tão loucos e incompreensíveis como as estórias acima (por exemplo, na suíte de abertura que engloba todo o lado “terra”, “Trilha De Sumé”, “Culto À Terra” e “Bailado Das Muscarias”), mas também traz faixas de elevada delicadeza, como as instrumentais “Harpa Dos Ares” e “Beira Mar”.
Na faceta louca/inclassificável/descontrolada, o grande destaque é a canção tematizada hoje, com o longo título “Nas Paredes Da Pedra Encantada, Os Segredos Talhados Por Sumé” e pertencente ao incendiário lado “fogo”.
À época em que conheci o álbum, li em algum lugar que a faixa poderia ser definida como o que seria dos The Doors se eles tivessem nascido no Nordeste. Perfeito! “Nas Paredes…” é exatamente isso: um complexo e intrincado improviso que envolve baixo, bateria, guitarras, sopros e teclados, muitos teclados. É como se o “Roadhouse Blues” fizesse uma viagem de ácido no sertão, trombando cangaceiros e tupinambás. (Prefiro considerar que talvez seja a primeira incursão brasileira no que hoje se chama de jazz fusion).
A letra é formada por quatro estrofes com dez versos decassílabos, utilizando a forma conhecida como martelo agalopado, sempre concluindo com o mote: “Nas paredes da pedra encantrada / Os segredos talhados por Sumé”.
A melodia, por fim, é provavelmente o que mais chama a atenção (além da viajante letra que narra a importância e descreve as façanhas atribuídas a Sumé). Indefinível… mas talvez eu possa arriscar dizendo que ela mistura a inquietude de um repente cordelista com a ludicidade de uma cantiga infantil.
Bom, só ouvindo mesmo:
Quando as tiras do véu do pensamento
Desenrolam-se dentro de um espaço
Adquirem poderes quando eu passo
Pela terra solar dos cariris
Há uma pedra estranha que me diz
Que o vento se esconde num sopé
Que o fogo é escravo de um pajé
E que a água há de ser cristalizada
Nas paredes da pedra encantada
Os segredos talhados por Sumé
Um cacique de pele colorida
Conquistou docilmente o firmamento
Num cavalo voou no esquecimento
Dos saberes eternos de um druida
Pela terra cavou sua jazida
Com as tábuas da arca de Noé
Como lendas que vêm do Abaeté
E como espadas de luz enfeitiçada
Nas paredes da pedra encantada
Os segredos talhados por Sumé
Cavalgando trovões enfurecidos
Doma o raio lutando com Plutão
Nas estrelas-cometas de um sertão
Que foi um palco de mouros enlouquecidos
Um altar para deuses esquecidos
Construiu sem temer a Lúcifer
No oceano banhou-se na maré
E nas montanhas deflorou a madrugada
Nas paredes da pedra encantada
Os segredos talhados por Sumé
Sacrifique o cordeiro inocente
Entre os seios da mãe-d'água sertaneja
Numa peleja de violas se deseja
É que o sol se derrube lentamente
Que a noite se perca de repente
Num dolente piado de Guiné
Nos cabelos da ninfa Salomé
Nos espelhos de tez enluarada
Nas paredes da pedra encantada
Os segredos talhados por Sumé