MARÍLIA PARENTE UM PETARDO E UM SOPRO

Marília Parente um petardo e um sopro.  Seus cantos, litúrgicos, benditos, aboios trazem um resumo da música brasileira de primeira. Citações belas, construções inusitadas em melismas, frases tão fortes, instrumentos sertanejos, em cordas e ferros, em céus e praias ensolaradas. 

Aderaldo Luciano (Editor), nascido em Areia, na Paraíba, é poeta pautado pela estética da poesia do povo. Estudioso da poesia e da música do Brasil profundo, é mestre e doutor em Ciência da Literatura, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Vive o projeto Roda de Cordel – leituras e estudos, intervenções de leitura de cordéis em escolas e comunidades rurais brasileiras. Autor dos livros O auto de Zé Limeira (Confraria do Vento, 2008), Apontamentos para uma história crítica do Cordel Brasileiro (Luzeiro/Adaga, 2012), Romance do Touro Contracordel (Adaga, 2017). Até junho de 2017 manteve uma coluna semanal no programa Sabadabadoo – A Gente Gosta de Sábado na Rádio Globo (Rio e São Paulo): o Cordel de Notícias. Agraciado com o Falcão de Ouro por sua contribuição à cultura no estado de Sergipe.

Kuruma’tá é uma revista online de culturas e afetos compartilhados. É conversa do mundo, das coisas. É pra falar de livros, leituras e leitores. Pra falar da música e do cinema que nos encantam. Falar da troca entre as gentes e suas criatividades.

Confira texto:

Marília Parente um petardo e um sopro

Outro dia, uma declaração de Milton Nascimento causou espanto em nós os orelhudos da música nacionalística. “A música brasileira está uma merda!” ecoou pelas línguas digitais e pelos tímpanos formais da turba atordoada. Eu, membro da patuleia, pensei nas possibilidades miltonianas ao proferir o desabafo. Milton é uma de nossas estacas florais. Mas e talvez nunca tenha ouvido Marília Parente. Aliás poucos a ouviram, pelo menos nos quatro cantos (não confundam com os Quatro Cantos olindenses).

O disco (e eu queria perguntar aos mais agressivos se ainda se pode nominar de disco o edifício musical dos trabalhos dispostos nas plataformas digitais), continuando, o álbum (e repito aquela mesma pergunta) Meu céu, meu ar, meu chão & seus cacos de vidro, disposto nos alfarrábios do Spotify, onde o escuto há dias, repetidamente, foi disponibilizado aos mortais em setembro. Há muito eu gritava como Milton, bombardeado por elementos estranhamente mortíferos. E trombei com Marília.

Lembram daquela mordida que Mike Tyson deu na orelha de Evander Holyfield? Aquela que arrancou um pedaço da cartilagem auricular do fortão dos ringues? Foi assim. A voz, de amplo espectro e poderoso alcance, veio-me do meio do mato caatingueiro, um cardo-petardo. Veio-me também da beira, da terceira margem de algum Riacho do Navio celestial ou do franciscano rio cortando o nordeste em duas metades. Dizem que, no dia seguinte ao da mordida de Mike Tyson, uma empresa de chocolates lançava a orelha de Holyfield em chocolate. Foi assim também comigo.

O grito musical de Marília me fez tremer e me recheou de chocolate, acalmando-me o corpo e a alma. Seus cantos, litúrgicos, benditos, aboios trazem um resumo da música brasileira de primeira. Citações belas, construções inusitadas em melismas, frases tão fortes, instrumentos sertanejos, em cordas e ferros, em céus e praias ensolaradas. Queria que não passasse despercebido, queria que nem passasse, mas se materializasse em shows pelo Brasil e entrasse sem pedir licença na casa de Milton, o nascimento.

Há algo de mantra, há algo de vaqueirama, há algo de urbanidade de inspiração rural. Marília Parente não repete o antigo, nem se mete ao novo, voa pelo céu possível, pelo mar invisível, pelo chão palpável, como o faquir sobre sua cama de vidros ou pregos pontiagudos. Belo caminho aberto entre as pedras que não mais gritam. Nessa situação existencial-política na qual nos metemos e nos meteram, com um diabo-mor de olhar enlouquecido no planalto central do Brasil, ouvir o trabalho dessa pernambucana ousada me fez acreditar na Revolução. (Fonte: Revista Kuruma'tá)
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