É PRECISO MORRER PARA VIVER

É preciso morrer para viver. Na manhã do dia 5 de setembro de 1989, há 30 anos, minha sobrinha Netinha bateu em minha porta para me dizer que minha mãe acordara de um sono que durava já três dias. Era uma terça-feira e aquilo me soava como uma ressurreição.

 Ela havia voltado de um coma anterior de 20 dias para me dizer que estivera com seus pais em um plano paralelo ao nosso. E naquele dia mesmo me dissera a quantidade de pessoas que estava presente na enfermaria onde só estávamos eu e ela. O médico chamou-me e foi sucinto: "Pode levar sua mãe para casa e fazer-lhe todas as vontades. Nossos recursos acabaram." Foi o que fiz.

Na casa do meu irmão, improvisamos um cômodo perto da cozinha e lá ela sentou-se na cama e pediu para que matássemos um capão (um galo novo) e preparássemos um pirão com as vísceras, uma receita de família que ela guardava com muito carinho. Assim foi feito. Ela comeu com tanto prazer que fiquei comovido. Lambia os dedos numa atitude que me deixava sempre irritado, mas nesse dia eu sorria com aquela cena maravilhosa de minha mãe comendo e saboreando com todas as papilas e olhares o mesmo prato amigo de minha infância. Depois lavamos suas mãos e sua boca, ela deitou-se, puxou o cobertor e dormiu por três dias.

Acordou para dizer que havia caminhado pelos velhos caminhos de criança. Tomara banho no Rio do Brás, atravessara o riacho de Pinturas, subira à chã de Independência, passara pelo engenho São Francisco, percorrera as veredas de Cantinhos e conversara animadamente com Tio Bastião. E, pela primeira vez em 25 anos, falara o nome de meu pai, que eu não conhecia nem nunca suspeitara que fosse o mesmo homem de quem todos tinham medo naquelas terras de meu Deus.

Minha mãe morreu com muita doçura e fantasia aos 58 anos de idade, de acordo com o registro civil, mas eram 60, pelo batistério. No dia 17 de setembro, doze dias depois de seu sepultamento, sonhei com ela me balançando na rede. Acordei com a certeza de que a única pessoa que realmente me amou, acima de tudo e contra tudo, desaparecera para sempre. Desde então me sinto só e choro desgraçadamente.

Fonte: Aderaldo Luciano -professor doutor em Ciencia da Literatura

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