Maria da Cruz, Ana das Carrancas e Luiz Gonzaga


Ana Leopoldina dos Santos, Dona Ana, ficou conhecida como Ana das Carrancas e, numa legitimação de sua fidalguia, também é reconhecida como a "Dama do Barro". Sua dura história de vida, sua sabedoria, feita também de muita humildade, marcaram sua arte fundamentada na simbologia das carrancas, dando-lhes outro significado em material: o barro, sua segunda natureza.

Conheci Dona Ana na década de 80, numa Petrolina menos grandiosa. Dona Ana estava sempre disposta a contar, recontar sua vida...uma afirmação dela mesmo, de sua vida oprimida socialmente até ser considerada "Cidadã Petrolinense", passando por "Patrimônio Vivo de Pernambuco" e recebendo a Ordem do Mérito Cultural diretamente do Presidente Lula em 2005.

Nascida em Santa Filomena, distrito de Ouricuri-PE, em 1923, passou por Picos Pi e chegou às margens do Rio São Francisco, em Petrolina, na década de 60. Em fala poética se assumia filha da terra e das águas em almágama: Mamãe terra e papai barro...assim carinhosamente, falava dos elementos básicos de sua arte. Acrescento: o ar que seca o barro, o fogo que queima as peças, forjando sua durabilidade, complementam uma relação atávica e ancestral com a natureza e os mistérios da vida.

Começou menina, ajudando a mãe como louceira, fazendo potes, panelas de barros. Mas, certo dia, já adulta, teve uma iluminação: esculpiu uma barquinha com uma carranca na proa e a chamou de gangula. Nome criado por ela, talvez uma epifania de sua origem hídrida, entre negros e caboclos destes confins, numa súplica que deu a virada fundamental para sua vida. Reza poderosa, mulher de fé, Dona Ana, em momento de quase desespero, suplicou a Padim Ciço, Nossa Senhora da Conceição e São Francisco das Chagas, na beira do rio São Francisco, para lhe mostrar uma maneira de vencer com sua arte, de torná-la visível aos olhos do mundo.

Esta súplica também revela um ato de amor e de respeito pelo outro. Seu segundo marido, José Vicente, conhecido como Zé do Barro, cego de nascença, pedia esmolas pois não tinha alternativa...Na frente da farmácia Santa Terezinha, que ficava no centro de Petrolina, ainda o vi cantar, sentado na calçada, com uma latinha de lado, versos em melodia que bem depois ouvimos em Circuladô de Fulô, de Caetano Veloso..."Circuladô de fulô ao Deus ao demondará que Deus te guie porque eu nao posso guiar...

Deus certamente guiou mãos habilidosas e pés operários. Tanto Ana foi se firmando como "artista popular", como José Vicente tinha agora uma profissão: amassar o barro com os pés, balançando seu corpo miúdo, como sempre fizera, sem precisar pedir esmolas. Dos pés para as mãos de Ana, as loiças para vender na feira e carrancas em forma de vasos...caíram no agrado, e de boca em boca, seu ateliê/barracão virou referência. Para turistas e gente além da feira...

Uma arte agora visível, com traços inconfundíveis, com identidade. Sabemos quais são as carrancas de Ana, invariavelmente penteadas... uma boniteza, como requer sua divindidade e respeito.

E aí vem mais uma poética do agradecimento desta mulher sensível. Suas carrancas passam a ter os olhos vazados, num gesto criativo e finalizador de suas peças de barro. Seu Zé Vicente não pôde abrir os olhos, ela os marca em sua obra, para sempre lembrados.

A arte em barro de Dona Ana das Carrancas também dialoga nestas margens com a arte em madeira das antigas figuras de proa nas barcas do Rio São Francisco. As carrancas são simbolos de proteção...

Muito antes de falecer, em primeiro de outubro de 2008, Ana Leopoldina dos Santos, Ana das Carrancas, já era conhecida como artista. Autodidata como muitos artistas de origem similar, irmãos oprimidos, nestes confins sertanejos de outrora e que se perpetua nas periferias das cidades. Ela conseguiu e nos deixa uma lição de dignidade e de um estatuto exemplares.

Fica satisfeita também que alguma coisa venha mudando nesta cidade...um novo olhar, talvez uma nova conjuntura tenha permitido isso...Se Dona Ana conheceu o mundo pelo barro, deu-lhe forma e marcou presença com sua obra, o mundo a reconheceu. Eternizou-se...
(Texto: Elizabeth Gonçalves Moreira-Professora)
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