José Nêumanne * - O
Estado de S.Paulo
"O sertanejo é antes de tudo um forte",
sapecou Euclides da Cunha em Os Sertões. Os desavisados
reconhecerão na definição o protótipo do cangaceiro, do cabra
macho, do matuto destemido que não leva desaforo para casa. Ledo
engano. Como o próprio Euclides deixou claro, essa força não
reside na coragem, na valentia ou no destemor, mas repousa na
improvável força interior contida no termo euclidiano
Hércules-Quasímodo. O sanfoneiro, compositor e cantor Dominguinhos
encarnou o lado sensível, belo e pungente dessa força,
contrapondo-o à valentia da cabroeira que dormia ao relento e lutava
contra as tropas da lei e da ordem. Lampião era o
sertanejo-mandacaru. Dominguinhos, o matuto-flor: a flor que brota do
cacto com a beleza protegida pela agressividade bélica dos espinhos.
Desde cedo ungido príncipe da música regional
nordestina que o Rei Gonzaga fundou e sustentou com o rebuliço
mágico dos 180 baixos de sua sanfona, o garoto de Garanhuns,
Pernambuco, cruzou as veredas da vida sem trocar de patente nem de
coroa: sempre foi menino, sempre foi príncipe. Consciente da
majestade de seu Lua, legitimada pela dimensão universal de sua
herança, a grandeza dele, caudatária da simplicidade, o tornou
herdeiro perpétuo, impedindo-o de subir ao trono com o
desaparecimento físico do criador do forró.
Não se confunda, contudo, essa simplicidade com
complexo de inferioridade ou desconhecimento do próprio potencial
que levou Gonzaga a lhe transferir sanfona, cetro, reinado e gibão.
Nada disso: mantendo-se na infância, ele preservou o segredo da
beleza e da variedade da obra que o fundador trouxe das brenhas para
transformar no ponto de contato e de solidariedade dos deserdados da
seca no bulício das metrópoles.
Em Dominguinhos comungavam a humildade dos mansos
de espírito e a altivez dos gênios que reconhecem seu valor ao
identificá-lo não nas glórias da fama, mas na consciência da
fidelidade a sua grei, que a retribui com um amor mudo, sincero e
pleno, que vai além do aplauso fácil. Este reconhecimento passou, é
claro, pela unção real, mas se confirmou em todos os contatos que o
artista manteve com seu público, gente com quem partilhava as mesmas
origens e com quem se comunicava pela mudez de cúmplices egressos
dos mesmos roçados nos quais a necessidade e a escassez tornam a
solidariedade gênero de primeira necessidade. Esse povo aprendeu a
linguagem das pausas longas e o reconhecimento da labuta na textura
áspera da pele da palma da mão acostumada com a soleira que ofusca
e a aridez do solo de pouca água.
Se o Rei do Baião fez de Asa Branca, com
a letra do urbano Humberto Teixeira, o hino da diáspora nordestina
pelo mundo afora, o príncipe da sanfona compôs em Lamento
Sertanejo, com a letra-síntese de Gilberto Gil, negro e
interiorano qual Gonzaga, a saga do retirante aculturado. "Quando
o verde dos teus olhos se espalhar na plantação, / eu te asseguro,
não chore não, viu, / eu voltarei, viu, pro meu sertão":
Gonzaga e Teixeira cantaram o mito da volta do homem à terra,
bastando que caia a chuva do céu. "Por ser de lá, / na certa
por isso mesmo, / não gosto de cama mole, / não sei comer sem
torresmo. / Eu quase não falo, / eu quase não sei de nada. / Sou
como rês desgarrada / nessa multidão boiada caminhando a esmo"
- na melodia de Dominguinhos, Gil decretou a saga de um
Ulisses-Quasímodo que não retorna a Penélope, mas faz do
desassossego solitário o jeito de ficar onde estiver, construindo
Ítaca em si mesmo.
A Odisseia do cantor do Vale do Araripe,
nos confins onde Pernambuco acaba no Ceará, foi registrada no
percurso do peixe em Riacho do Navio, com letra do parceiro
Zé Dantas, partindo do Atlântico na direção do paraíso idílico
perdido nas margens do riacho da Brígida, contra a correnteza. Essa
busca do cordão umbilical enterrado na porteira do curral avoengo se
expressa na utopia do desterrado: "Pra ver o meu brejinho, /
fazer umas caçada, / ver as 'pegá' de boi, / andar nas vaquejada, /
dormir ao som do chocalho / e acordar com a passarada, / sem rádio e
sem notícia / das terra civilizada".
A Ilíada do sanfoneiro da "Suíça
nordestina" mantém o desterrado no desterro, universo
transportado de Garanhuns para os guetos nordestinos nas metrópoles
- o Brás em São Paulo, o Campo de São Cristóvão no Rio...
Nesses lugares, o cavalo de madeira transporta o
retirante para os ambientes urbanos, tornando-o uma espécie de
extraterrestre adaptado aos hábitos e à cultura da Troia que
desconhecia. O retirante pede água, busca o amor e vai ficando: a
obra de Dominguinhos é a consciência de que todo lugar é sertão e
o sertão é aqui mesmo, reconhecido nas manchas de suor tornadas
mapas da solidão que virou ritual de encontro. Como cantou em Tenho
Sede, com letra de Anastácia, sua mulher e parceira de origem:
"Traga-me um copo d'água, tenho sede / e essa sede pode me
matar. / Minha garganta pede um pouco d'água / e os meus olhos pedem
teu olhar".
* José Neumanne- Jornalista
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