LUIZ GONZAGA JUNIOR: O GRITO DE ALERTA E ESPERANÇA COM POESIA

Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior, mais conhecido como Gonzaguinha, nasceu no Rio de Janeiro, no dia 22 de setembro de 1945, e morreu no dia 29 de abril de 1991, aos 45 anos, após sofrer um acidente de carro na estrada de Renascença, no Paraná, quando voltava de uma série de shows. Filho adotivo do cantor e compositor Luiz Gonzaga, o “Rei do Baião”, com a dançarina Odaléia Guedes, o menino Gonzaguinha foi criado pelos padrinhos Dina e Xavier, no Morro de São Carlos, onde conheceu, por exemplo, Luiz Melodia. 

Com Ivan Lins, Aldir Blanc, Paulo Emílio, César Costa Filho e outros, criou o MAU (Movimento Artístico Universitário), que visava promover a música da nova geração de compositores. Combativo e aguerrido em sua postura contra a ditadura militar, Gonzaguinha compôs músicas de impacto, como “Comportamento Geral”, “Pequena Memória para um Tempo Sem Memória”, “A Fábrica de Sonhos”, dentre outras. Ao todo, teve 54 canções censuradas. 

Gonzaguinha também se especializou em músicas românticas, que ganharam as vozes de Maria Bethânia, Simone, Elba Ramalho, Fafá de Belém e Elis Regina. No final da vida, Gonzaguinha se mudou para Belo Horizonte em busca de sossego, e morou na região da Lagoa da Pampulha. Entre seus grandes sucessos está “Com a Perna no Mundo”, que fala, justamente, sobre suas origens.

Abertura. Por trás da expressão carrancuda, do semblante de poucos amigos e da barba que lhe escondia a chance de um sorriso mais largo, havia um coração pronto a explodir do menino que desceu o São Carlos para colocar o dedo na ferida dos problemas sociais e afetivos de mulheres e homens. 

Filho do “Rei do Baião”, da dançarina Odaléia e da música popular brasileira que o acolheu com tamanha propriedade, a cara de Gonzaguinha era a de um Brasil que não se entrega e não deixa de apontar as mazelas que atingem seu povo. Com a camisa aberta e o peito à mostra, ele escreveu, através de suas músicas, um retrato sensível, por vezes raivoso, outras vezes irônico, de sentimentos universais e em decadência. Era um grito de alerta, e, ao mesmo tempo, de esperança.

O inconformismo de Gonzaguinha já denunciava, logo no primeiro disco, o peso de suas “canções de protesto”. Identificado como “compositor-rancor” por críticos e detratores de sua obra, o filho de Luiz Gonzaga, que no início da carreira ainda assinava Luiz Gonzaga Júnior, nunca aceitou a mediocridade, fosse política, social, de gênero e, principalmente, de felicidade. 

Basta dar uma rápida olhada em seu vasto e complexo repertório para perceber como o autor de canções sensíveis e perspicazes busca retratar o sexo, a desilusão, as relações afetivas e de trabalho com um aguçado senso de justiça e grandeza. 

É valendo-se da habilidosa ironia, que o calo da vida no morro de São Carlos e a ausência do aclamado pai lhe deram, que Gonzaguinha extirpa uma a uma todas as hipocrisias perpetradas através dos anos pelo costume, a tradição e a intolerância da raça humana com o seu semelhante, na brilhante e ousada letra de “Comportamento Geral”, lançada em 1973, como um dardo afiado, no alvo.

Ao longo do repertório de “Planeta Fome”, Elza Soares reflete sobre um Brasil deitado e sem berço. “Só canto o que é atual”, diz ela, que registrou novas versões para “Comportamento Geral” e “Pequena Memória para um Tempo sem Memória”, ambas compostas por Gonzaguinha durante a ditadura militar. “Passei pela ditadura, me lembro daquele momento e vejo que hoje é mais ou menos parecido. O Brasil está passando por uma soneca, mas vai acordar, sou esperançosa”, afirma Elza. 

Lançada originalmente por Gonzaguinha, em 1973, “Pequena Memória Para Um Tempo Sem Memória” foi cantada por ele durante a turnê que empreendeu ao lado do pai, Luiz Gonzaga, no ano de 1981, intitulada “Vida de Viajante”. A música também recebeu uma versão comovente do grupo “As Chicas”, que a interpretou em dezembro de 2008, na capital Rio Branco, no Acre, em homenagem ao grande líder ambientalista Chico Mendes. 

“Contos de Fadas” (MPB, 1975) – Gonzaguinha: Não espanta que, no terceiro disco de Gonzaguinha, o clima sombrio se imponha. O Brasil sofria o período da ditadura militar e o compositor era um dos mais hábeis em reportar essa situação na forma de metáforas sensíveis e ásperas. Uma das canções do álbum de 1975 engana no título, e traz ironia semelhante à da canção “Comportamento Geral”. A música “Contos de Fadas” alude a brincadeiras típicas do “Dia das Bruxas”: “Balas, doces, chocolates/ Brindes, prendas e anzóis/ (…) Dorme bem minha criança/ Se não essa bruxa avança/ Corta língua, olhos e ouvidos/ Faz da vida escuridão”.

“Geraldinos e Arquibaldos” (samba, 1975) – Gonzaguinha

No ano de 1975, Gonzaguinha se esquiva das garras da censura imposta no Brasil em razão da ditadura militar, com um samba irônico e divertido, cuja sinuosidade da letra é acompanhada de perto pelo ritmo. 

“Geraldinos e Arquibaldos” traz, ainda, uma homenagem às pessoas humildes que frequentam os estádios de futebol nos lugares mais baratos, a “geral” e a arquibancada, além de lançar mão de expressões típicas do esporte mais popular do país, como “cama de gato”, e outros ditos populares, como “angu que tem caroço”. 

Lançada num dos primeiros álbuns de Gonzaguinha, “Plano de Voo”, já mostrava o poder de crítica e a acidez construtiva dos versos de Gonzaguinha, além da inventividade formal.

“Começaria Tudo Outra Vez” (bolero, 1976) – Gonzaguinha

Ao som de bolero, samba, baião ou toada. Assim Gonzaguinha escreveu seu nome na canção brasileira. Um nome que já tinha peso antes mesmo de ele nascer, e que foi aos poucos penetrando nos ouvidos das pessoas com aquele diminutivo. O menino esguio que falava de dramas, amores e problemas sociais, cresceu e continuou menino. Continuou falando, cantando, observando aquilo que o tocava com o cuidado de quem enxerga uma fruta madura no pé da árvore. 

Gonzaguinha no palco era solto, espontâneo, como se estivesse em casa, mas quando escrevia era incisivo, agudo, enfático, dando a medida lhe que cabia da força dos relacionamentos humanos em sua vida. Não imaginava ele que, em 1976, só estava no começo, mas ainda assim decidia: “Começaria tudo outra vez/ Se preciso fosse, meu amor…”. 

“Espere por Mim, Morena” (toada, 1976) – Gonzaguinha

Moleque arisco, e interessado em conhecer o mundo, Gonzaguinha decidiu, aos 16 anos, que queria cursar Economia. Como os padrinhos Dina e Xavier, conhecido como Baiano do Violão, não tinham condições de pagar seus estudos, o menino resolveu por conta própria que iria morar com o pai. 

Depois de um começo de relação atribulada, com Gonzaguinha desentendendo-se constantemente com a madrasta e Luiz Gonzaga por conta de posições ideológicas, os ânimos se acalmaram, e a convivência entre os dois foi aos poucos melhorando. 

Gonzaguinha foi matriculado em um colégio interno e conseguiu concluir o curso que tanto queria. Mas a herança que pulsava em suas veias era a da música. Em 1967, seu pai gravou pela primeira vez uma composição sua: “From United States of Piauí”, canção bem humorada e crítica acerca dos americanismos na língua portuguesa. 

Mas somente em 1976, ele assumiria de vez as influências e a importância do pai em sua trajetória. No disco intitulado “Começaria Tudo Outra Vez”, gravou “Asa Branca”, um dos maiores sucessos de Luiz Gonzaga, e a toada “Espere por Mim, Morena”, grande êxito popular que trazia à tona o lado romântico e saudoso de um Gonzaguinha doce e leve, que falava de rede, cobertor e sol.

“Explode Coração” (MPB, 1977) – Gonzaguinha

Contestador por natureza, em 1975, Gonzaguinha havia dispensado seus empresários para fundar depois seu próprio selo, Moleque, que também seria o nome de seu álbum de 1977. Nesse ano, “Explode Coração” tornou-se um dos maiores marcos de toda a carreira de Maria Bethânia. Intitulada inicialmente como “Não Dá Mais Pra Segurar”, a música é um desabafo lento, progressivo, um exercício de confissão e entrega em que o compositor se despe de seus medos e aceita todos os desejos. 

Em “Explode Coração”, Gonzaguinha se descortina para que a vida entre sem pedir licença. Um ano depois, em 1978, outra canção de temática parecida e com a mesma palavra pungente no título. “Diga Lá, Coração” recebeu a interpretação sensível de Simone e do próprio Gonzaguinha. “Diga lá, meu coração/ Da alegria de rever essa menina/ E abraça-la/ E beijá-la...”, canta. 

“Artistas da Vida” (MPB, 1978) – Gonzaguinha

Gonzaguinha é um desses artistas que jamais descolou a preocupação social de sua obra, a exemplo de Sérgio Ricardo e Taiguara. Em 1978, ele já havia superado o estigma de “cantor-rancor”, com os sucessos românticos do bolero “Começaria Tudo Outra Vez” e da intensa “Explode Coração”, espalhada Brasil afora pela voz de Maria Bethânia, quando colocou na praça “Artistas da Vida”, em que, de forma menos agressiva que em outros momentos, não deixava de tocar nas profundas feridas sociais do país advindas de sua imensa desigualdade social. Na visão de Gonzaguinha, todos entravam nesse circo e precisavam de malabares. A música foi regravada por Emílio Santiago, Marília Barbosa e Marília Medalha, reforçando o seu poder de identificação ao público. 

“Recado” (MPB, 1978) – Gonzaguinha

No dicionário, “pasquim” significa “jornal difamador, folheto injurioso”, e foi por esse motivo que o cartunista Jaguar sugeriu o nome para batizar o semanário fundado em junho de 1969, do qual ele faria parte ao lado de nomes como Ziraldo, Tarso de Castro, Millôr Fernandes e Sérgio Cabral, pai do ex-governador do Rio de Janeiro, preso desde 2016. 

A ideia de Jaguar era se defender antecipadamente de prováveis críticas, além da evidente ironia. Para a história, “O Pasquim” se transformou num dos principais ícones da resistência à ditadura militar, aliando humor, política, crítica social e de costumes, e passou a ser sinônimo de uma imprensa livre e independente. Durante um período, a trupe pôde contar ainda com o auxílio luxuoso de Paulo César Pinheiro, letrista que colecionava parceiros tão diversos como João Nogueira e Baden Powell.

Numa das músicas mais incisivas escritas contra a ditadura no país, Paulo César Pinheiro afirmava em “Pesadelo” (parceria com Maurício Tapajós): “Você corta um verso/ eu escrevo outro/ você me prende vivo, eu escapo morto/ de repente olha eu de novo/perturbando a paz, exigindo troco”. “Recado”, de Gonzaguinha, lançada em 1978, seguia a mesma toada: “Se me der um tapa eu brigo/ Se me der um grito não calo/ Se mandar calar mais eu falo”. 

“Com a Perna no Mundo” (samba, 1979) – Gonzaguinha

Filho de vários pais e de várias mães, Gonzaguinha teve história parecida com a de muitos brasileiros. Nasceu no ventre da cantora e dançarina da noite Odaléia e foi registrado pelo expoente maior da música nordestina levando seu nome. Com a morte da mãe quando ele tinha dois anos, vítima de uma tuberculose, Luiz Gonzaga do Nascimento Júnior foi entregue aos carinhos de dona Dina e seu Xavier, para que o pai pudesse cumprir sua vida de viajante. 

Luizinho, como passou a ser chamado no Morro de São Carlos, no Rio de Janeiro, logo aprendeu a tocar violão com seu padrinho, a sacar as malícias das ruas, e a ter vontade de conhecer outras bandas. Essa epopeia comum a tantos brasileiros, Gonzaguinha cantou “Com a Perna no Mundo”, de 1979, em que deixava um caloroso recado à madrinha querida: “Diz lá pra Dina que eu volto/ Que seu guri não fugiu/ Só quis saber como é, qual é/ Perna no mundo, sumiu…”. 

“O Preto Que Satisfaz” (MPB, 1979) – Gonzaguinha

Em clima de festa, Gonzaguinha convida o papai, a mamãe, o filhinho e a filhinha para comerem o famoso feijão brasileiro, “O Preto Que Satisfaz”. A música, composta por ele em 1979, faz uma verdadeira homenagem ao feijão, uma das refeições preferidas dos brasileiros, e ainda o mistura ao arroz, ao pão, à farinha e ao macarrão, aproveitando para falar também da união que se faz entre as pessoas na hora de apreciarem o feijão, “famoso pretão maravilha”. A música foi tema de abertura de novela na voz das Frenéticas e invadiu os lares brasileiros, assim como o requisitado ingrediente, provando que Gonzaguinha estava certo: “Dez entre dez brasileiros preferem feijão!…”.

“Grito de Alerta” (samba-canção, 1980) – Gonzaguinha

No ambiente universitário, Gonzaguinha passou a ter contato com Ivan Lins, Aldir Blanc, César Costa Filho e outros, com quem formou o Movimento Artístico Universitário, conhecido como MAU. O grupo se reunia com frequência na casa do psiquiatra Aluízio Porto Carreiro para longas conversas e rodas de violão. Passaram então a participar de festivais, e no ano em que foi vencedor com a canção “O Trem (Você se lembra daquela nega maluca que desfilou nua pelas ruas de Madureira?)”, Gonzaguinha recebeu uma das maiores vaias de sua carreira. 

Apenas em 1973, ele conheceu o sucesso. Ao entoar “Comportamento Geral” no programa de Flávio Cavalcanti, Gonzaguinha chocou os jurados, esgotou o disco nas prateleiras e foi censurado pela ditadura. Além do espírito combativo, as reuniões na casa de Aluízio renderam-lhe seu primeiro casamento, com Ângela Porto, mãe de seus dois primeiros filhos.

O discurso do embate político cedia espaço, em 1980, para um envolvente Gonzaguinha, que, acostumado a ouvir na infância Jamelão, Lupicínio Rodrigues e músicas portuguesas, entregava para Maria Bethânia consagrar um samba-canção de sua autoria, em que discutia as difíceis questões do coração. Deixando de lado a razão, “Grito de Alerta” era uma tentativa sincera de se desapegar de questões menores e amar de portas abertas. A música foi inspirada em um caso de amor vivido pelo cantor Agnaldo Timóteo, amigo de Gonzaguinha, que a registrou. 

“Sangrando” (balada, 1980) – Gonzaguinha

No início da década de 1980, Gonzaguinha passou a morar em Belo Horizonte com sua segunda esposa, Lelete. Desse casamento nasceu a sua caçulinha, Mariana, irmã de Daniel, Fernanda e Amora, filha do relacionamento do cantor com a Frenética Sandra Pêra. Nessa época, ele vivia sua melhor fase e já desfrutava dos sucessos de “Ponto de Interrogação”, “Grito de Alerta” e “Sangrando”. 

A balada imortalizada por Simone revelava um desenho autobiográfico e pungente do compositor que não se dizia cantor, mas intérprete de suas emoções. Na letra de “Sangrando”, o intérprete se rendia por inteiro. Começava soltando a voz com um delicado pedido, para depois consentir que a música se apoderasse dele e exprimisse a vida em sua plenitude. “Ponto de Interrogação”, outra pérola de 1980, abordava o sexo de uma maneira até então inédita na MPB, apelando à sensibilidade dos homens. 

“E Vamos à Luta” (samba, 1980) – Gonzaguinha

Durante a sua trajetória, Gonzaguinha conviveu com a pobreza na favela, problemas de saúde como as duas tuberculoses que teve, e a falta de liberdade imposta pela ditadura. Apesar disso, deu um jeito de driblar as armadilhas para conquistar o que achava que tinha direito. “E Vamos à Luta” é talvez o samba mais animado, emblemático e contagiante de sua obra. 

A música é um recado otimista de persistência e coragem, direcionado aos brasileiros que batalham seu lugar ao sol diariamente, com espaço para uma fezinha especial na juventude. Através dos versos esfuziantes da canção, Gonzaguinha cultiva as delícias da união e do sonho. Gravada por ele em 1980, a música foi apresentada depois em duetos descontraídos com Alcione e Roberto Ribeiro.

“Redescobrir” (MPB, 1980) – Gonzaguinha

Não é preciso muito para compreender que Elis Regina (1945-1982) é a maior cantora brasileira de todos os tempos: basta ouvi-la. Nascida em Porto Alegre, a gaúcha morreu aos 36 anos, vítima de uma overdose de álcool e cocaína. O disco “Tom & Elis”, de 1974, é considerado pelo crítico musical Hugo Sukman como “uma homenagem da nossa maior cantora ao nosso maior compositor”. 

A intérprete, cujo temperamento forte lhe rendeu o apelido de “Pimentinha”, deixou, ao longo da intensa carreira, 25 discos, registrados entre os anos de 1961 e 1982, todos com gravações antológicas. Em 1980, Elis comprovou mais uma vez essa primazia ao lançar “Redescobrir”, de Gonzaguinha, com os arranjos de seu então marido, César Camargo Mariano. 

“O Que É, O Que É” (samba, 1982) – Gonzaguinha

Um clássico de Gonzaguinha é uma das dicas da atriz Teuda Bara para encarar esse momento difícil, que ela chama de “pandemonia”, numa junção até então inédita das palavras “pandemônio” e “pandemia”. Ao telefone, ela cantarola os versos de “O Que É, O Que É?”: “Viver e não ter a vergonha de ser feliz/ Cantar e cantar e cantar/ A beleza de ser um eterno aprendiz”. 

“Estamos nessa luta, mas temos que tentar levar a vida pra frente”, acredita Teuda. Ela conta que estava em plena atividade quando a epidemia do novo coronavírus tomou conta do país. A música foi lançada por Gonzaguinha em 1982, no disco “Caminhos do Coração”, e se transformou em sucesso imediato, sendo regravada por Maria Bethânia, Diogo Nogueira, Alcione e mais.

“Um Homem Também Chora [Guerreiro Menino]” (MPB, 1983) – Gonzaguinha

Gonzaguinha sempre foi considerado um artista de temperamento difícil, não gostava de dar autógrafos e raramente compunha com outros parceiros. Tido por muitos como mal-humorado e arrogante, era, na verdade, um sujeito provocador, despojado, como ele próprio definia: “um grande gozador”, um moleque levado e teimoso que gostava de descumprir ordens. 

No entanto, o comportamento arredio e a desconfiança eram também atribuídos aos conflitos que teve com Luiz Gonzaga. As diferenças entre os dois acabariam se tornando, lá na frente, o elo perfeito para formar uma parceria entre o sambista do morro carioca e o nordestino que inventou o baião, o destino de ambos cruzando o país, Gonzaguinha & Gonzagão. 

Já bem à vontade para tratar de temas do coração, Gonzaguinha teve gravada, na voz de outro nordestino, uma de suas músicas que continham maior ternura. Em 1983, seu compadre Fagner recebeu de Mariozinho Rocha o aviso de que Gonzaguinha havia lhe mandado uma música. O detalhe é que o empresário considerava que ela tinha sido feita “nas coxas” e não valia a pena gravá-la. 

Fagner insistiu, chorou de emoção ao ouvi-la e a transformou no carro-chefe do seu LP daquele ano. “Um Homem Também Chora” delineava com maciez sensações singelas e muito humanas, habituadas a se esconderem atrás de hipocrisias. Gonzaguinha falava sem deixar passar nenhuma farpa da criança que constrói e existe em cada homem, da faceta mais frágil e carinhosa dos guerreiros meninos. E ele era um deles.

“Lindo Lago do Amor” (MPB, 1984) – Gonzaguinha

A cantora Manu Dias conta que “era novinha quando teve o primeiro contato” com versos em forma de fábula que falavam sobre bem-te-vi, sabiá, águia, lua, vento e um sapo que conversavam entre si. “Crianças cantam depois de ouvir uma música pela primeira vez”, garante Manu. 

Composta para descrever o sentimento onírico que Gonzaguinha experimentava diante da Lagoa da Pampulha, a canção “Lindo Lago do Amor” inspirou a criação do “Lindo Bloco do Amor”, que desfila pelas ruas no Carnaval de BH. Gonzaguinha morou na capital mineira em seus últimos 12 anos de vida e se tornou amigo de Fernando Brant e Milton Nascimento, com quem gravou “Libertad Mariposa”. “Lindo Lago do Amor” foi lançada em 1984, no LP “Grávido”, de Gonzaguinha. 

“Eu Apenas Queria Que Você Soubesse” (MPB, 1987) – Gonzaguinha

Há uma diferença brutal entre os primeiros e os últimos discos de Gonzaguinha (1945-1991). Pouco restou do compositor experimental, com melodias imbricadas e discurso reativo na fase de maior sucesso do autor de “Eu Apenas Queria Que Você Soubesse” e “Lindo Lago do Amor” – quando ele afirmou que só queria “ver as pessoas assoviando” suas músicas.

Essa distância percorrida por Gonzaguinha ao longo de praticamente duas décadas de carreira foi fundamental para que ele se tornasse um cantor popular. “Eu Apenas Queria Que Você Soubesse” foi lançada em 1987, no álbum “Geral”, e talvez seja o exemplo mais bem-acabado da transição de Gonzaguinha de “cantor-rancor” para a relação harmoniosa que ele passou a travar com a vida. 

“Mariana” (baião, 1987) – Gonzaguinha e Luiz Gonzaga

Aos seis anos, Mariana Aydar andava no shopping ao lado de “uma figura doida”, que ela descreve como “um misto de Papai Noel com superstar”. Mariana queria uma boneca pequenina, mas o tal Papai Noel a presenteou com uma noiva de brinquedo que era maior do que ela. Para completar, ele tinha feito uma música especialmente para Mariana. Ao menos, era o que ela supunha. “Ele não desmentia, era uma pessoa muito generosa e simpática”, relembra a cantora. 

Embora se chamasse “Mariana”, a canção dos versos “Eu vou pra ver Mariana/ Mariana sorrir e dançar/ Mariana brincando na vida/ Tô correndo pra lá”, era uma homenagem para a neta de Luiz Gonzaga, em parceria com o filho Gonzaguinha, pai da caçula nascida em Belo Horizonte, homônima da entrevistada. Filha da empresária Bia Aydar, a cantora paulista teve contato com o Rei do Baião, ainda criança, graças à mãe, que trabalhava com Gonzagão.

“É...” (samba, 1988) – Gonzaguinha

Só mesmo Gonzaguinha para lançar uma música intitulada apenas como “É...”. Aliando a irreverência ao inconformismo, ele compôs, em 1988, mais um samba inesquecível de sua lavra. Com a agilidade dos versos embalados por uma melodia contagiante, o compositor consegue dar naturalidade e beleza a versos desaforados, do tipo: “A gente não tem cara de panaca/ A gente não tem jeito de babaca/ A gente não está com a bunda exposta na janela/ Pra passar a mão nela”. Lançada no disco “Corações Marginais”, foi mais um sucesso imediato que se juntou à extensa lista do compositor de “Ponto de Interrogação”, “Diga Lá, Coração”, “Redescobrir” e outras preciosidades da música popular brasileira, gravadas por Elis, Simone, Bethânia, Fafá e outras. 

*Bônus-“Despejo na Favela” (samba, 1969) – Adoniran Barbosa

Não é por falta de mérito que Adoniran Barbosa é tido e havido como cronista. Além de capturar o sotaque e a prosódia específica da população paulista descendente da colônia italiana que aportou no Brasil, e da qual fazia parte, o compositor se sensibiliza com as questões mais rotineiras e diárias vividas pela população, das trágicas às cômicas, sempre com um toque de incentivo. 

“Despejo na favela”, de 1969, foi lançada pelo sambista Nerino Silva no compacto do V e último “Festival da Música Popular Brasileira” produzido pela TV Record. No samba, fica clara a maneira desonesta e intolerante com que os políticos brasileiros comandam as remoções dos moradores mais pobres. Em 1980, foi regravada por Adoniran em parceria com Gonzaguinha. (Fonte: r Raphael Vidiga/Rádio Itatiaia)

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