OCASO E ESCURIDÃO: IMPACTOS DE ARIETE NA EPIDERME DO DIA

A música popular regional nordestina, essa que facilmente se chama forró, em todas as suas dimensões, assenta-se sobre dois pilares: Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro. O primeiro revela aos olhos da nação as agruras do espaço físico, geográfico, das secas e cheias, de rios efêmeros e fomes perenes, bem como o ambiente político com seus coronéis e padres, o poder paralelo dos cangaceiros e as mortes por vingança, o enxoval do vaqueiro e as festas populares. 

O outro nos apresenta os cabarés e as umbigadas, a ginga da peixeira e as aventuras dos forrozeiros, o amor putânico e o rala-coxa, mais alegre e urbano, enquanto o primeiro é predominantemente rural. Resumem, portanto, ou melhor, sintetizam a mitologia nordestina. 

Temos falado até agora no par semiológico ver/não ver, luz/trevas. Antes, porém, do avanço, relato uma conversa partilhada com o professor Eduardo Portella quando afirmava ele que o povo dos cafundós (sim, lá também existem os cafundós!) da Europa do Leste, dos interiores tchecos, sérvios, húngaros, bósnios e além, sofrem de uma predisposição para a angústia. Tentei inserir uma certa angústia do homem nordestino, mas a conversa não evoluiu. Fiquei inseminado pelo tema e saí perseguindo meus murmúrios. 

Deságua aqui nesta Baía, no coração do Leblon, a minha inquietação. Situações circunstanciais de opressão pelo meio ao que parece podem fomentar uma certa ponta de angústia. Pensei, assim, na aridez da vida dos miseráveis de Canudos que não sabiam, ou não conheciam, ou não viam motivo para tanta guerra. Alastrei meu olhar para os desdentados dos vales profundos, viventes-plantas cujas unhas dos pés nunca arranharam um pedaço de pão quente saído do forno ainda há pouco. Vi alguns migrantes caídos na Cinelândia. Abismando-me com essas paisagens distantes e essas outras presentes, calei. Ver dói, não ver, idem. Isso que senti aportou em Gonzaga e Jackson.

A música mais conhecida de Gonzaga é Asa Branca. Qualquer funkeiro ou rapper, rockeiro ou erudito conhece seus acordes simples, sua letra grave e sua estrutura quadrada. Mas olhemos para a letra com mais demora. Deixemo-la irrigar-nos.

Quando olhei a terra ardendo

Qual fogueira de São João

Eu perguntei a Deus do céu, ai

Por que tamanha judiação

Que braseiro, que fornalha

Nem um pé de plantação

Por falta d'água perdi meu gado

Morreu de sede meu alazão

Até mesmo o asa branca

Bateu asas do sertão

Então eu disse adeus Rosinha

Guarda contigo meu coração

Quando o verde dos teus olhos

Se espalhar na plantação

Eu te asseguro não chores não, viu

Que eu voltarei, viu meu coração.

 Agora vejamos essa outra canção: *Assum preto

Tudo em vorta é só beleza

Sol de Abril e a mata em frô

Mas Assum Preto, cego dos óio

Num vendo a luz, ai, canta de dor .

Tarvez por ignorança

Ou mardade das pió

Furaro os óio do Assum Preto

Pra ele assim, ai, cantá de mió

Assum Preto veve sorto

Mas num pode avuá

Mil vezes a sina de uma gaiola

Desde que o céu, ai, pudesse oiá

Assum Preto, o meu cantá

É tão triste como o teu

Também roubaro o meu amor

Que era a luz, ai, dos óios meu

 Muito bem, as duas são de Gonzaga e Humberto Teixeira. Pensemos em nossos dilemas epigráficos: sofrer por ver e sofrer por não ver, em suas leituras livres. E, agora, volvamos um olhar sobre o título atribuído a esse roteiro: ocaso e escuridão. Se em Asa Branca o ato de ver causa o desespero, porque não dizer a angústia, por poder observar que tudo está sendo devorado e que o dilema se instaura (partir ou morrer), em Assum Preto dá-se o contrário: não ver proporcionará o cantar mais lindo. 

A reflexão vai bem mais além quando se prefere trocar a luz dos olhos pelas grades da prisão. Agora intelectualizemos o par opositivo: diante da luz, a angústia, longe da luz, o belo. Parece-me o paradoxo ditado e vivido por Homero, em si próprio, fundando toda a literatura universal, inclusive a metamorfose coleóptera de Gregor Samsa. Agora pairemos sobre esta outra canção cantada por Jackson:

 *Lamento cego

Irmão, que está me escutando

Preste bem atenção.

Já vi um cego contando

Sua história num rojão.

Quem vê a luz deste mundo

Não sabe o que é sofrer.

Que sofrimento profundo

Querer ver e não poder.

Irmão, mais triste eu fico

Com tanta ingratidão

Dois gravetos de angico

Me tiraram a visão.

Por isso nós tamo aqui

Eu e minha viola.

Por Jesus vamos pedir

Meu irmão, me dê uma esmola

Que Deus recompense então

A sua caridade

E lhe dê sempre a visão

Saúde e felicidade.

É uma composição de Jackson e Nivaldo Lima. Se em Asa Branca ver é tomar consciência das próprias catástrofes e ser obrigado a optar sobre um dilema, em Assum Preto, não ver é proporcionar a manifestação do Belo. Aqui neste lamento há o maldizer por não poder enxergar ou como diz a letra “que sofrimento profundo querer ver e não poder.” Mas, afinal, que sofrimento é esse? Qual o seu nome? Onde se instala? Nossa sociedade globalizada é de alma visual. A visão sobrepõe-se ao tato e ao metafísico. O fim do pensar. 

A velocidade. A banalização da sexo, da violência e da literatura são ferramentas poderosas no processo de massificação e homogeneização cultural. As nossas empresas de telefonia celular sabem disso. Suas máquinas não mais só falam, elas fotografam, elas transmitem ao vivo. O cego de Jackson sofre por miseravelmente não poder ver, não sentir-se inserido nas cores. Roga a esmola e em contrapartida oferece como paga a recompensa de Deus com a visão eterna, com a saúde e com a felicidade. 

Contraditoriamente, já que estamos dialogando sobre dilemas, o fim das promessas do progresso e do bem-estar oferecido pela tecnologia e pela técnica, as benesses do paraíso, o leite e o mel, esses dons assinados pelo mesmo Deus, não nos presenteiam mais com saúde e felicidade. Veja-se o colapso da saúde nos países periféricos e a escassez do emprego em todo o mundo. 

O dilema de Hamlet passaria de ser ou não ser a ver ou não ver. A angústia da Europa Oriental não é maior lá ou cá. Não há predisposição deste ou daquele povo. Se há algum tempo a Ilustração nos ofereceu a Luz, a pós-modernidade nos apresenta a conta e a Light, extensão do Mundo-Capital-Consumo, foi privatizada.

Ainda nos resta o diálogo dos dois cegos citados por Leonardo Mota em seu Cantadores. Diz o primeiro:

 Tenham pena deste cego,

Filhos da Virge Maria;

Eu sou cego de nascença,

Nunca vi a luz do dia!

 Ao que o outro respondeu:

 Quem nasceu cego da vista

E dela não se lucrou,

Não sente tanto ser cego

Como quem viu e cegou!

Um embate sobre a maior miséria. Agora ouçamos: perguntei a um desses policiais que participaram do massacre do Carandiru qual jacaré seqüestrara minha lâmpada de Aladim. Veio-me a resposta como uma bala: surda, certeira e devastadora extraída do poema de Drummond:

Nesse país é proibido sonhar.

 Findo, senhores, com uma canção do Cego Aderaldo, um parvo cuja angústia foi ver demais:

*As três lágrimas

Eu ainda era pequeno

mas me lembro bem

de ver minha pobre Mãe

em negra viuvez.

Meu pai jazia morto

Estendido em um caixão

 E eu chorei então

Pela primeira vez!

 E a pobre minha Mãe

Daquilo estremeceu:

De uma moléstia forte

A minha mãe morreu.

Fiquei coberto em luto

E tudo se desfez

E eu chorei então

Pela segunda vez.

 Então, o Deus da Glória,

O mais sublime artista,

Decretou lá do Céu,

Perdi a minha vista.

Fiquei na escuridão,

Ceguei com rapidez

E eu chorei então

Pela terceira vez.

Meus prantos se enxugaram.

Das lágrimas que corriam

Chegou-me a poesia

E eu me consolei.

Sem pai, sem mãe, sem vista,

Meus olhos se apagaram;

Tristonhos se fecharam

 E eu nunca mais chorei.

 (Fonte: Aderaldo Luciano, professor mestre e doutor em Ciência da Literatura, músico, poeta)

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