MACIEL MELO: O HOSPEDEIRO

Sou seu hospedeiro; ela é minha inquilina. Dentro de mim, ela pode se achar e se perder em meus atalhos, de bandeira em punho, de espada em riste, sem temer a morte, sem zombar da sorte, sem bater continência, sempre alerta, mantendo a postura e mudando o jeito da posição de sentido. Falo de minha poesia. Já rompi mares, amansei procelas, fiz das tempestades um remanso e ancorei num cais desenhado numa folha de papel, quando ainda precoce, via a vida bem pra lá do horizonte.�Mas hoje, a calmaria me assusta; tudo deserto, o medo nas ruas, nenhum barco à vista; o amor e o ódio formam dunas de dúvidas e amontoam-se às margens de um rio seco. 

Descobri que o deserto não é só calmaria, a solitude não é solidão, viver só não é ser único, e estar em turma não é ser multidão. Soltei a âncora, içei as velas e deixei os ventos me levarem. Aparei as arestas, degolei a inveja, chutei o pau da barraca, e não vou sossegar enquanto o último pingo d’água não transbordar o pote do meu nascedouro. 

Me isolo, me deito, me levanto; perambulo pela casa; a noite demora a amanhecer, não consigo dormir, e essa vacina não chega. Os pensamentos voam longe, vão lá nas profundezas dos grandes sertões, e voltam pelas veredas de Guimarães trazendo rosas para enfeitar a minha sala de estar, que desde o princípio dessa pandemia não espera uma visita sequer. Nasci lá, nos rincões das caatingas, à beira do Rio Pajeú. 

O Brasil ainda engatinhava quando fui gestado por uma paraibana. Nasci raquítico, pirralho, magro; a carne era por dentro do osso. Minha mãe fez um rosário de contas, pendurou no meu pescoço; depois, uma rezadeira me benzeu com três galhos de arruda, e cá estou, malazarteando, teimando, arengando com a sorte. Até agora consegui escapar desse vírus; mas até quando? Até quando iremos contabilizar, quantos mortos serão sepultados hoje, amanhã e depois? Até quando iremos esperar que se percebam a pressa que é preciso para chegar essa vacina? Quando irei voltar a sentir orgulho de ser brasileiro?

Espero que não demore muito! 

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