Cego Aderaldo: o homem, o cantador e o mito. "Cultura contemporânea” e os modernos meios de comunicação de massa são injustos em não divulgá-lo

Já conhecia a fama e o mito de Cego Aderaldo (Aderaldo Ferreira de Araújo) desde a década de 1960, quando eu ainda estudava nos seminários e nas escolas públicas das cidades do Crato e Juazeiro, a partir de referências eruditas e populares. No seminário, a leitura de Homero me marcou de forma mais profunda, não apenas pelos seus versos, mas pela lenda contada de que ele era um cego e teria vivido uma poesia ainda imersa na oralidade e na tradição, grávida de mitos fundadores e explicadores da grande peleja dos homens com os deuses na construção do destino. Desde então, quando eu me lembrava do Cego Aderaldo, vinha-me sempre à mente a figura de Homero segurando uma rabeca ou uma viola, em vez de sua rústica lira.

Não custou a perceber, logo depois, que, nos meios culturais do Ceará, pouco se falava sobre o grande poeta-cantador, afora uns poucos e obstinados escritores. É como se o Ceará tivesse criado uma bolha de esquecimento da obra e da vida do grande artista, sendo ele assim quase completamente varrido da “cultura contemporânea”, não apenas pelos modernos meios de comunicação de massa e pela indústria cultural, mas também pelos círculos mais cultos.

Diante desse quadro, considerei urgente a missão de aprofundar a visão sobre a história e a obra do Cego Aderaldo – o homem que adotou e criou 26 crianças pobres, que cantou nos seringais da Amazônia, do Peru e da Bolívia (no início do séc. XX), que teve marcantes encontros com Lampião, que foi recebido por grande intelectuais e presidentes da República, que rodou todos os sertões nordestino encantando plateias com a beleza dos seus versos e com a magia do seu cinema.

Cego Aderaldo foi poeta, cantador, músico (que tirou o baião da viola e o orquestrou, antes de Luiz Gonzaga), projecionista de filmes, empresário, negociante, propagandista, cantador e apologista de cantadores sertanejos nos grandes centros urbanos. Deixou, além de uma obra poética preciosa, um testemunho comovente da superação das contingências existenciais e dos limites sociais impostos pela pobreza e pela deficiência física. Cego Aderaldo é um exemplo da superação e da grandeza humana, cuja obra influenciou músicos, escritores, cantadores, cineastas e dramaturgos de todo o país.

Durante dez anos, dediquei-me à pesquisa, até que concluí (em 2014) o livro Cego Aderaldo: O homem, o cantador e o mito, com mais de 800 páginas e mais de 1.000 ilustrações (entre fotos, desenhos e documentos), cujos originais estão à espera de publicação. Realizei ainda, sobre o Cego Aderaldo, um filme de longa-metragem, documentário, em coprodução com a TV Brasil. A nossa esperança é que, em 2017 – no aniversário dos 50 anos da sua morte, sejam finalmente lançados o filme e o livro, ajudando nos esforços para que um acervo precioso da alma popular se transforme em patrimônio cultural e afetivo da nação brasileira.

Fonte: Rosemberg Cariry-Cineasta e escritor
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