Os saberes da Caatinga: mulheres sertanejas preservam as práticas de orações, cantos, raízes e garrafadas

Da terra de Padre Cícero à terra de Luiz Gonzaga leva-se menos de uma hora de carro por uma estrada que atravessa a linda Chapada do Araripe e divide o  Ceará de Pernambuco...A pernambucana Exu tem pouco mais de 30 mil habitantes e é bem mais pacata que a cearense Juazeiro do Norte, do Padim Ciço, que já soma mais de 270 mil almas.

Da praça da matriz ao Sítio Baixio do Meio, onde mora a parteira Nazaré, são 17 quilômetros por uma estrada de chão cheia de pedras. “Ô de casa!” Chamamos por Nazaré, e logo ela aparece, emoldurada pela janela da casinha de taipa, com um sorriso tímido no rosto, desconfiada com a visita inesperada.

Sentamos à sombra de um umbuzeiro para conversar. Cabelos grisalhos, miudinha, 63 anos, Maria Nazaré de Jesus conta que já “pegou” 12 meninos. O primeiro, homem feito, já tem de 18 a 20 anos.

*Como você virou parteira?
Minha mãe era parteira e eu via ela conversando. Ela dizia tudo como era, como se cortava o umbigo, como ajeitava a barriga da muié. Ela fez muitos partos, ia pra todo canto, o povo vinha buscar de cavalo, de bicicleta, de tudo. Ela fez os partos das minhas filhas, de cinco delas, só não fez da derradeira porque a mãe morreu antes, quando eu estava com três meses de gravidez. 

Graças a Deus, todos os partos foram normais. Se o menino está atravessado, se está sentado, aí corre logo para um hospital. Eu até posso ir, se me chamarem, pra fazer um chá enquanto arrumam um carro, mas não mexo, não. Também sou curandeira. mas só de ferida de boca, que outras coisa eu não aprendi não.

Nazaré tem dez filhos. Quantos netos? Ela não sabe botar na mente, não. Mas tenho quatro bisnetos. Não sou casada, mas o pai dos meus filhos taí, ela diz apontando uma casa. Não queira saber a minha vivência, que é longa. Já pedi esmola no Bodocó, no Ouricuri, pra criar meus filhos. Eu vendo rosário de coco-catulé, umbu, milho, maxixe, o que tiver. Planto, vou buscar no mato e vendo. Faço uns remédios também. Cozinho jatobá e imburana-de-cheiro, cebola e alho. Acaba com a gripe.

No Sítio São Raimundo, Maria do Socorro Silva Moreira, devota de São João Batista, tinha acabado de voltar do mato com as mãos vazias. Eiiita, a seca matou tudo. Com sete anos de seca, não tem raiz que não morra, até a batata-de-teiú.

A caminho da casa de Dona Socorro, na zona rural de Exu, a gente passa pela histórica igreja de São João Batista do Araripe, que completou 150 anos em junho do ano passado.

A igreja foi construída pelo Barão de Exu como pagamento de uma promessa ao santo. Em 1863, uma epidemia de cólera atingiu o Crato, cidade vizinha, e Gualter Martiniano de Alencar Araripe, o barão, proprietário das fazendas Araripe e Caiçara, fez uma promessa a São João Batista: se a doença poupasse Exu, ele iria à França buscar uma imagem do santo e construiria uma igreja para abrigá-la. 

A bisavó do Rei do Baião se abrigou na Fazenda Caiçara durante a peste de cólera.

Socorro é raizeira e prepara as famosas garrafadas, populares em todo o Nordeste. Não se sabe exatamente a origem das garrafadas, preparadas com raízes e plantas medicinais, mas alguns pesquisadores acreditam que elas possam ser derivadas de formulações feitas pelos jesuítas no século XVI, conhecidas como Triaga Brasilica, à base de vinho, mel e ingredientes secretos. As garrafadas também estão presentes na medicina indígena e nos ritos afro-brasileiros.

O teiú é um lagarto que vive no sertão. Quando picado por cobra, ele busca se curar do veneno mascando uma batata. O tubérculo é usado pelas curandeiras para tratamento de inflamação.

Socorro só busca suas plantas na mata. Não adianta plantar. As plantas que os outros veem não servem pra nada, diz. Elas têm de ser nativas. Tiú, cipó-de-vaqueiro, manjerioba, jurema-branca, jurema-preta.

Curioso, eu penso: a alquimia dos jesuítas também tinha essa dimensão sagrada, secreta. Quem te ensinou a fazer garrafadas?

Ninguém ensina nada a gente, não. A gente já nasce ensinado. Desde pequena eu já tinha visão de fazer remédio. 

*Como você escolhe as raízes?
É intuição que vem da minha cabeça. Quando chego na mata eu converso com as plantas. Olho pra elas, aliso e digo olha, eu tenho tanta dó, mas eu vou pedir a vocês uma casca, uma plantinha só. Eu não estou enricando, não tenho ganância por nada. Eu só quero que uma pessoa fique boa, tem uma pessoa sofrendo tanto, uma doença comprida. Eu posso tirar uma casca? Eu sei que você não é minha, não lhe plantei. Eu prometo que não lhe mato.

AS REZADEIRAS: Uma espada branca de madeira é o principal instrumento da rezadeira no congá. Ela coloca a espada de São Jorge e Santa Bárbara na testa da pessoa. Sempre eu tive visão das coisas, só que eu não entendia o porquê dessa sabedoria que Deus estava me dando. Eu peço ajuda aos guias da mata.

Às terças e quartas-feiras, é dia de reza na casa de Maria Anunciação Barros, a Dona Neta, de 61 anos, na rua Eufrazio de Alencar, no centro de Exu. No congá (altar) de Neta há imagens de São Jerônimo, do Doutor Tarcio, um médico da cidade que morreu nos anos 70, e da Santa Joana Darc, santa padroeira da França e uma das chefes militares da Guerra dos Cem Anos.

Eu não incorporo, eu rezo e peço iluminação. Os guias encostam em mim e me dão poder. Isso aqui é um sofrimento. Pra receber os poderes dos guias da mata, não posso pecar, tenho de ser como uma criança de 10 anos.

No topo da Serra do Arapuá, no município de Carnaubeira da Penha, Pernambuco, a mestre Joaquina, de 97 anos, canta suas toantes, uma das tradições do povo Pankará. Ela já perdeu a conta de quantas crianças nasceram em seus braços (dizem que cerca de 800), inclusive netos e tataranetos.

Eu não sou mestre, eu não sou nada. Sou um viajeiro errante nessa estrada, canta Joaquina, que é a mais idosa detentora dos saberes ancestrais da tradição Pankará. Parteira, rezadeira, benzedeira e raizeira, ela atribui seus feitos aos “encantadores da natureza”. 

Reverenciada pelos quase 4 mil indígenas que vivem naquela serra, ela é conhecida como a “mãe de todos”. Joaquina durante muitos anos foi tachada de feiticeira e macumbeira pelos brancos e obrigada a praticar seus rituais às escondidas. Hoje, muitos vão à serra procurar ajuda da curandeira indígena.

Os médicos nordestinos são os primeiros a reconhecer a importância das parteiras para o Sertão. O obstetra Zé Dantas, parceiro de Luiz Gonzaga, dedicou às comadres uma de suas mais lindas e longas canções. A versão completa de “Samarica parteira”, com dez minutos de duração, foi gravada em 1973 por Luiz Gonzaga.

Capitão Barbino, apavorado com a dô de menino de sua mulher, Juvita, manda seu peão Lula montar na bestinha melada e riscar ligeiro para buscar a parteira. Quando ele já ia riscando, Barbino ainda ameaça: olha, Lula, vou cuspi no chão, hein! Tu tem que vortá antes do cuspe secá!

E lá se vai Lula atrás de Samarica, abrindo cancelas, atravessando lagoas, sapecando a pobre égua, na maior carreira, até chegar à casa da parteira. Samarica, é Lula... Capitão Barbino mandou vê a senhora que Dona Juvita tá com dô de menino.

E risca de volta, com a parteira, à fazenda. Piriri tic tic piriri tic tic piriri tic tic nheeeiim... pá! Piriri tic tic piriri tic tic bluu oi oi bluu oi, uu, uu. Patateco teco teco, patateco teco teco, patateco teco teco.

Samarica chegou, ele grita para o Capitão. Samarica sartou do cavalo véi, cumprimentou o Capitão, entrou prá camarinha, vestiu o vestido verde e amerelo, padrão nacioná, amarrou a cabeça c’um pano e foi dando as instrução: acende um incenso. Boa noite, D. Juvita. A moça reclama da dô. É assim mermo, minha fi’a, aproveite a dô. Chama as muié dessa casa, p’a rezá a oração de São Reimundo, que esse cristão vem ao mundo nesse instante. Capitão Barbino, bote uma faca fria na ponta do dedão do pé dela, bote. Mastigue o fumo, D. Juvita. Aguenta nas oração, muié.

Ai, Samarica, chora Juvita. Se eu soubesse que era assim, eu num tinha casado com o diabo desse véi macho.

Pois é assim merm’ minha fi’a, vosmecê casou com o vein’ pensando que ele num era de nada? Agora cumpra seu dever, minha fi’a. Desde que o mundo é mundo que a muié tem que passar por esse pedacinho.

Nasceu, é menino (choro de criança). E é macho!  Ah, se é menino homem, olha se é? Venha vê os documento dele! E essa voz! Capitão Barbino foi lá detrás da porta, pegou o bacamarte que tava guardado há mais de oito dia, chegou no terreiro, destambocou no oco do mundo, deu um tiro tão danado que lascou o cano. Lascou, Capitão? Lascou, Samarica. É, mas em redor de 7 légua não tem fi’ duma égua que num tenha escutado. Prepare aí a meladinha, ah, prepare a meladinha, que o nome do menino... é Bastião.

* BRUNO BLECHER* - FOTOS: JOSÉ MEDEIROS, DE EXU (PE) Matéria publicada originalmente na edição de março de 2019 da Globo Rural
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