Laurus: o derramamento de um eu em memórias – passado e presente em diálogo

Diz a sabedoria universal que o homem se faz completo quando dá existência a um filho, planta uma árvore e produz um livro. Coerente a asserção, pois aí está o ideal de semente, e, portanto, de perpetuação. Certamente, o filho, a árvore, o livro sobrevivem ao tempo e seguem suas multiplicações.  
      
Recorri ao Dicionário Latino-Português de Airto Coelin Montagner e Amós Coelho da Silva – meus ex-professores. O primeiro, muito próximo, amigo, e hoje, compadre. Tempos da velha Universidade do Estado do Rio de Janeiro – e lá o verbete está vivo, possante, imponente: Laurus. Loureiro. Louro. Coroa de flores. Triunfo. Vitória. 

Loureiro é árvore forte, vital, milenar, arraigada ao solo, firme, majestosa. Da simplicidade de suas folhagens procede a tradição do coroar atribuído aos gregos. Atletas das mais variegadas modalidades, fortes, vencedores, se deixavam aureolar de louro.

Laurus, “filho” das entranhas poéticas de Clarissa Loureiro, tem sustentação na busca pela origem, pela matriz, no sentido mesmo da investigação do “quem sou”, para a continuidade, a afirmação, o enraizamento dos Loureiro, na ânsia do não se perder. A ascendência, o tronco familiar, o passado lá estão como perguntas não somente para encontrar a resposta, mas para encontrá-la e mantê-la. Mantê-la, e não preservá-la, pois preservar denota o que se estar a perder. Constata-se na narrativa a procura pela perenidade que se confirma no ancestral. Prenhe do simbólico, o romance transita por culturas como a grega, a oriental, a judaico-cristã e a brasileira, com incursões em suas mitologias como representação do buscar e do guardar.  

Mircea Eliade assevera: “Toda história mítica que relata a origem de alguma coisa pressupõe e prolonga a cosmogonia. Do ponto de vista da estrutura, os mitos de origem homologam-se ao mito cosmogônico” (p. 25). A cosmogonia tanto explicita a possível busca do universo, do Cosmo e da nossa origem no mundo, naquele sentido mais abrangente, como de nosso universo particular, de nossa família, de nossa casa. Buscar a origem particular é sair à nossa busca, nosso enraizamento. É nesse enraizamento que estão a estrutura, a sustentação, o profundo reconhecimento de nós mesmos. 

Em seu Laurus, Clarissa, esta busca se dá em:
A Casa Grande está começando a acordar com suas vozes e hábitos. E eu e Kanã finalmente nos aproximamos dela num alvorecer suplicado pelos ancestrais Loureiro. Dentro do silêncio de uma terra envelhecida pelo esquecimento, as vozes começam a se misturar dentro de mim. E uma pluma começa a sair vagarosamente de minhas asas, fundindo-se às folhas secas e amareladas que se dispersam ao vento, quando meus pés tocam pela primeira vez o chão sujo daquela varanda da Casa Grande (Laurus, p. 21-22).

Na verdade, com o acordar da casa grande, para a qual se volta não por um caminho, mas por caminhos, há um despertamento das personagens de sono da perda, do esquecimento, que agora se fazem procura em súplica pelos ancestrais. As vozes que se misturam no dentro da personagem são às de outro tempo, àquele de antanho que grita no homem. Voz que é a do passado, mas também do presente. 

Uma voz que grita por e para se guardar memória e outra que grita, apela em nós, para que façamos isto: procurar e guardar, de fato, a memória. Tocar o chão da casa grande é tocar a grande casa que devemos arrastar conosco: nossa ancestralidade que justifica quem somos hoje e até o que seremos. O chão sujo daquela varanda é a marca que não deve apagar. É a impregnação, a marca, a memória.

Kanã, para alguns, bobo, para outros, um alienado, no entanto, tio amado para a personagem que com ele investe na procura, de início representa marcas que não somente remetem à vida quanto ao tempo. Emblemáticas marcas que se dão, a meu ver, por dois vieses, um a reverberar a vida, o outro, o tempo pretérito a que não se deve olvidar:

Atrás dele, o céu desenhava de vermelho e cinza uma coroa de louros, que pousava delicadamente sobre seus cabelos. Baixei os olhos, ainda tonto de tanta cor, e sussurrei: “Por que?”. Ele sorriu com a alegria de uma notícia dada entre crianças: “Sua avó quer” (Laurus, p. 20)

O amálgama vermelho-cinza dá as pistas, com o vermelho a lembrar a vida em seus agoras. O cinza leva ao passado que não apenas o traz, mas referenda a origem. O passado, com apelo na afirmação familiar, traz o tio, (descendência), que se sustenta na avó (ascendência), para a resposta precisa à indagação de quem não continha a gargalhada: Sua avó quer. Neste Sua avó quer está o grito do passado para o presente: guarde. 

O mar, arquétipo de ambientação litorânea, não necessariamente representa a cidade grande, mas quase sempre, a simbologia do moderno, do avanço, do mais contíguo à civilização urbana. O açude, diametralmente oposto, é modelo do interiorano, do afastado, mas pertencente, a uma civilização, a rural. Em carro antigo, partem ao interior, vão para dentro Kanã e o outro.

 O deslocamento do eu de fora (mar) para o eu de dentro (açude), só podia se revelar no paradoxal carro antigo a conduzir os novos ao velho (tradição). A busca por este interior, por este dentro se faz na simbologia do carro antigo e naquela do afastado para o distante: “Entre o mar e o açude, há um universo de cores inusitadas. O carro antigo se deixa levar estrada afora como um barco carregado pela brisa” (p. 21). O carro antigo, moto contínuo, não estagna.

Narrativa bakhtiniana, naquele sentido de que o romance evolui, Laurus pode se enquadrar ainda naquilo a que nos anos de 1970, o francês Serge Doubrovski cunhou de autoficção, lançando mão da estratégia autoficcional baseada na construção polifônica de vozes e nas diferentes perspectivas narrativas (AZEVEDO, 2008, p. 37).

Em Laurus há essa polifonia de vozes, por meio da qual havemos de constatar, tanto o presente da narrativa quanto aquilo que resulta procura do passado por vários ângulos de tempo e espaço: o curral, as botas de Hermes a batucar a cantiga das mulheres com bacias à cabeça, a estrada, pela qual se vai e vem, a casa grande, sua varanda, a figura da avó, (marca de outros tempo e espaço), o velho automóvel, com seus passageiros joviais (outra perspectiva do tempo), como busca por autoconhecimento. 

O contar, no entanto, no romance novo de Clarissa Loureiro, pelo viés do auto-olhar, por mais verdadeiro, é fingimento pessoano, uma vez que aquilo que achamos que somos, não somos, pois nos falta, como nos diz Doubrovski. E nos falta muito. Fingimos a dor, mas esta vai além de nós, fingimos a alegria ou a tristeza, mas estas vão além de nós. 

Serge Doubrovski, citado por (Laouyen, s. d) afirma que autoficção inscreve-se na fenda aberta pela constatação de que todo contar de si, reminiscência ou não, é ficcionalizante, e que todo desejo de ser sincero é uma fraude: “eu me falto, ao longo de mim”, reforça o romancista francês. O desejo de ser sincero é uma fraude não no sentido daquilo que não é verdadeiro, mas naquilo que não completamos, pois não somos completos ao longo de nossa vida. Há muito de nós do complexo de Dédalo, já que criamos nosso labirinto, nos perdemos nele, mas o desafiamos ao criar asas à fuga, e de novo, nos perder no voo. Não nos completamos, precisamos fingir e havemos de fazê-lo para não enlouquecer. 

Matutemos no eu biográfico para percebermos como temos de fingir: 
A autoficção é entendida, então, como um apagamento do eu biográfico, capaz de se constituir apenas nos deslizamentos de seu próprio esforço por contar-se como um eu, por meio da experiência de produzir-se textualmente. Eu descentralizado, eu em falta que preenche os vazios do semioculto com as sinceridades forjadas que escreve (AZEVEDO, p. 36).

Pensemos ainda com Azevedo, que anota:
Aqui, arriscaríamos a dizer que a instabilidade mesma do desmascaramento já provado pela autobiografia é desdobrada na reconciliação com a figura do autor que superou o paradigma da morte: do sujeito, do autor. Nesse sentido, se a desconstrução da ilusão referencial foi necessária, agora podemos fazer as pazes não para restabelecer qualquer centro orientador, mas para investir no jogo de continuar representando (AZEVEDO, p. 38).

Em seu Laurus Clarissa Loureiro/personagem representa muito bem, porque a representação é própria da arte, pela poesia, pelo romance, pelo conto. O autor se mascara por trás do narrador, que aparentemente nos confunde, mas ao leitor atento cabe separar, perceber, observar as entrelinhas, entrever as malícias do texto, limpar “os óculos”, como aconselha o narrador de Brás Cubas, ele próprio. Nas palavras do narrador de Laurus, a constatação: “A serenidade é a máscara dos sábios para ocultar suas dores mais profundas” (p. 29). 

As vozes de um tempo, “daquele tempo, como escrevera Manuel Bandeira, no seu “Profundamente”, estão no ensurdecido silêncio da terra-mãe, daquela que guarda a origem, a ancestralidade: terra envelhecida pelo esquecimento (Laurus, p. 21) e que se vai resgatar, porque vozes assombram, mas assomam de um dentro, de um eu que se avizinha das memórias para buscá-las. Repare-se no que diz o narrador quanto à memória rediviva: “Vó, [...] Lembre-se que eu não sou eu. Sou eu dentro de você. A minha existência está filtrada na sua. Minhas lembranças estão presentificadas nas suas” (pp. 36-37). 

Para quase encerrar, lembremos Carlos Drummond de Andrade com seus “Mortos de sobrecasaca” que dizem bem de Laurus e suas reminiscência, e mais, da vida que há nisto tudo, apesar do passado, apesar da morte, embora o tempo, pois a vida arde quando as memórias vêm á tona. E vêm. Vamos ao poeta de Itabira:
Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis,
alto de muitos metros e velho de infinitos minutos,
em que todos se debruçavam
na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca.
Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes
e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos.
Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava
que rebentava daquelas páginas (Antologia poética, 268).
Os mitos dos primórdios em Laurus “rebentam” como em Manuel Bandeira no seu “Profundamente”:
[...]

Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?
- Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente (Estrela da vida inteira, p. 111).

E para encerrar, de verdade, ouso afirmar, Clarissa, que Laurus é, em boa e certa medida, todos nós, leitores, no instante mesmo em que há a identificação leitor-obra. Lançada ao mundo a obra passa a ser também o leitor e este a completa em seus vazios, brechas, entrelinhas. Lamento por sua perda-ganho. 

Não estava errado Gustave Flaubert quando diante de seus juízes-algozes, moralistas. – que o acusavam de ofender a moral e a religião, com sua Emma Bovary –, ao responder altaneiro, sem medo, com a inteligência dos sábios e até a fingir sobre quem lhe inspirara o romance: “Emma Bovary sou eu”. Defendeu-se, foi absolvido pelo tribunal puritano da de sua época. Ganhou a liberdade. 

Eis por que Laurus, em uma de suas ilustrações, é representado com asas, senhora Clarissa Loureiro. Minha senhora Clarissa Loureiro.

Fonte: Professor Simão Pedro dos Santos Petrolina-PE, 16 de março de 2019.

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