PROCISSÃO: A POÉTICA DE GILBERTO GIL E A RELIGIOSIDADE

A poética tropicalista gilbertiana teve seu início a partir da linha evolutiva propagada pela Bossa Nova que incorporou, para sua formação, outras manifestações musicais como jazz, be bop (concepção jazzística surgida por volta de 1945) e o cool jazz, que, ao contrário do hot jazz, trazia intérpretes-músicos de apurado conhecimento técnico que enriqueceram o jazz com recursos eruditos. (Campos, 1993).

A internacionalização da Bossa Nova foi devida à absorção de uma diversidade de estilos musicais que passa pelo jazz americano, por suas variações, chegando ao samba brasileiro e estabelecendo, assim, um profícuo diálogo entre eles. 

Embora, desde seus primórdios, a música popular no Brasil tenha se formado pela incorporação de recursos estrangeiros, oriundos principalmente da Europa e da África, pode-se afirmar que a grande aceitação internacional de um produto cultural tupiniquim, como o da BN, se deu pelo pioneirismo inovador de sua estética e pelo seu caráter globalizante.

Uma nova tendência musical foi introduzida pela Bossa Nova, na qual houve a inclusão de acordes com notas estranhas à harmonia, conhecidos, popularmente, como dissonantes (Campos, 1993), além de uma preocupação com o uso de letras que possuíam um caráter mais literário e poético. Observa-se uma ruptura com os padrões tradicionais vigentes e também a busca de uma nova concepção estética.

Implantada pela BN, a nova estética sofisticada e harmônica afluía para duas direções: uma voltada para o aperfeiçoamento rítmico e harmônico e outra que propunha um enfoque mais crítico dos problemas brasileiros que eram resgatados pelas letras.

A segunda vertente caminhava na direção das mesmas propostas propagadas pelo Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE, que, entre outros objetivos, buscava a popularização da cultura, sua aproximação ao povo e a renovação dos tradicionais padrões culturais brasileiros, que permeavam as ideias difundidas pelo CPC e por seus membros.

Uma das músicas de maior sucesso do período anterior à Tropicália de Gilberto Gil, “Procissão”-19643, trazia uma determinada carga ideológica alinhada a uma interpretação marxista da religião, que estava direcionada ao abandono do homem do campo que residia no sertão nordestino e ao descaso do governo para com as causas sociais, e, por conseguinte, para com uma das camadas mais simples e esquecidas, residentes em uma área das mais carentes do País.

“As ideias da classe dominante são em cada época as ideias dominantes, isto é, a classe que constitui a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força intelectual dominante. A classe que dispõe dos meios da produção material detém ao mesmo tempo o controle sobre os meios de produção espiritual, de tal modo que, em geral, as ideias daqueles que carecem dos meios da produção espiritual ficam sujeitas a esta classe.” (Eagleton, 1999, p. 16-17).

Através da música “Procissão” – marco da produção musical anterior ao período tropicalista – inicia-se a consolidação da criação artística a ser desenvolvida por Gil, que, a partir de então, apresenta em suas composições uma elevada consistência poética. A seguir, transcreve-se a letra dessa música que marcou esse importante período e que acabou por contribuir para o aperfeiçoamento da produção cultural gilbertiana:

Olha lá vai passando a procissão

Se arrastando que nem cobra pelo chão

As pessoas que nela vão passando

Acreditam nas coisas lá do céu

As mulheres cantando tiram versos

Os homens escutando tiram chapéu

Eles vivem penando aqui na Terra

Esperando o que Jesus prometeu

E Jesus prometeu vida melhor

Pra quem vive nesse mundo sem amor

Só depois de entregar o corpo ao chão

Só depois de morrer neste sertão

Eu também tô do lado de Jesus

Só que eu acho que ele se esqueceu

De dizer que na Terra a gente tem

De arranjar um jeitinho pra viver

Muita gente se arvora a ser Deus

E promete tanta coisa pro sertão

Que vai dar um vestido pra Maria

E promete um roçado pro João

Entra ano, sai ano, e nada vem

Meu sertão continua ao deus-dará

Mas existe Jesus no firmamento

Cá na Terra isto tem que se acabar

Essa obra poética de Gilberto Gil não somente se tornou um marco no conjunto de sua obra, mas, também, nos permite mostrar a relação estreita existente entre a literatura e a religiosidade.

A ligação entre essas duas grandes áreas do saber – literatura e religião – se faz perceber logo no título da obra: “Procissão”. Ao dar esse título a sua composição, Gilberto Gil deixa explícito que sua poesia tem como base um aspecto específico da religião católica romana: uma procissão. É exatamente nesse cortejo religioso que o artista encontra ocasião para desenhar e criticar a vida sertaneja. É nesse momento solene de devoção a um santo, ou à Santíssima Trindade, em que o coração dos religiosos está cheio de fé e a boca cheia de cânticos, que Gilberto Gil sentiu que os devotos, na realidade – caminhando pelas ruas estreitas e tortuosas do sertão – estavam “penando, esperando o que Jesus prometeu”. Gilberto Gil mostra, de alguma forma, que esse momento – propício à espiritualidade, quando os olhos estão focados em uma imagem, seja ela de um santo, seja do próprio criador – diminui o poder de questionamento do penitente e o interesse deste pela transformação da realidade material; ele – o penitente – esquecido das coisas desta vida, fica como se embriagado estivesse com as coisas lá do céu.

Olha lá vai passando a procissão

(...)

As pessoas que nela vão passando

Acreditam nas coisas lá do céu

Gilberto Gil é nessa canção um sacerdote às avessas: ele se vale da religião para criticar uma sociedade imersa na religiosidade. Ele não é um sacerdote que tem a finalidade de elevar os olhos dos devotos aos céus, pelo contrário, ele quer que os mesmos baixem os olhos para a terra, para a realidade em que vivem. Ele não é um tipo messiânico que diz:

Não andeis cuidadosos quanto à vossa vida, pelo que haveis de comer ou pelo que haveis de beber; nem quanto ao vosso corpo, pelo que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o mantimento, e o corpo mais do que o vestuário? (Evangelho de Mateus 6:25).

Ele está mais inclinado à inversão:

“Olhai para as aves do céu, que nem semeiam, nem segam, nem ajuntam em celeiros; e vosso Pai celestial as alimenta. Não tendes vós muito mais valor do que elas?” (Evangelho de Mateus 6. 26). No entanto, vocês, que trabalham de sol a sol, continuam penando aqui na terra à mercê das autoridades cegas, mudas e surdas ao clamor das necessidades.

A ligação entre a crença, a religiosidade e a situação de abandono da população do sertão nordestino e seus problemas é marcada de forma direta. Há uma relação entre as carências de uma parcela discriminada e esquecida da população e a sua necessidade de encontrar um estímulo para continuar a percorrer seu caminho, a fim de conseguir transformar sua condição miserável numa situação melhor. Nesse afã, os promesseiros colocam suas esperanças no além, no pós-morte, na vida desencarnada, na pátria celestial, no reino das luzes, no paraíso eterno.

Eles vivem penando aqui na Terra

Esperando o que Jesus prometeu

E Jesus prometeu vida melhor

Pra quem vive nesse mundo sem amor

Só depois de entregar o corpo ao chão

Só depois de morrer neste sertão

Ainda na segunda estrofe, podemos perceber que a presença da fé persiste por ser de certa forma a única fonte de esperança para a solução do grande carma do povo nordestino: a seca.

E Jesus prometeu vida melhor

Pra quem vive nesse mundo sem amor

Apesar do aparente cansaço pela demora em conseguir a melhora da situação, nota-se um contínuo sentimento religioso e a entrega total à fé e à Terra, na esperança da conquista das melhorias desejadas, ainda que para isso houvesse um alto custo – a morte.

Só depois de entregar o corpo ao chão

Só depois de morrer neste sertão

Desde seu início, a canção “Procissão” sugere forte relação entre a crença popular dos nordestinos do sertão e a esperada solução de seus problemas, como o da falta de chuva, que acarreta o sério problema da seca, que se procura amenizar através da religião. O sacerdote do mundo de cá, – Gilberto Gil –, sem a pretensão de descaracterizar a religião, por meio de sua canção, mostra que a religiosidade tem feito com que o povo vivesse anestesiado, em profunda dormência, esperando em Deus justamente aquilo que se deveria esperar das autoridades.

Eu também tô do lado de Jesus

Só que eu acho que ele se esqueceu

De dizer que na Terra a gente tem

De arranjar um jeitinho pra viver

Em sua terceira estrofe, o poema tece uma crítica às pessoas3 que se aproveitavam da difícil situação vivida pela população do sertão, por sua simplicidade4 e fragilidade sentimental, que mais afloravam quando era vislumbrada qualquer possibilidade de salvação, ou seja, de melhoria da situação estabelecida. A crítica se dirige àqueles que, a todo custo, tiram proveito das circunstâncias adversas.

Muita gente se arvora a ser Deus

E promete tanta coisa pro sertão

Que vai dar um vestido pra Maria

E promete um roçado pro João

Entra ano, sai ano, e nada vem

Meu sertão continua ao deus-dará

Mas existe Jesus no firmamento

Cá na Terra isto tem que se acabar

Nesse caso, ainda que os tempos sejam outros, não podemos deixar de lembrar a passagem bíblica em que Jesus expulsa os vendilhões do Templo (Evangelho de Marcos, capítulo 11), os quais, também, não mediam esforços para tirar proveito das circunstâncias. Há de se recordar, também, do profeta Habacuque, que, vivendo em uma época em que a decadência moral era extrema, acreditava não haver coerência entre a existência de um Deus que vê, mas não se importa e um Deus que é justo, mas que não intervém, colocando um basta nas injustiças que dominavam sobre a justiça. Habacuque, também, entendia que “Cá na terra isso tinha que se acabar”.

1.Oráculo que o profeta Habacuque viu. 2. Até quando Senhor, clamarei eu, e tu não escutarás? Ou gritarei a ti: Violência! e não salvarás? 3. Por que razão me fazes ver a iniquidade, e a opressão? Pois a destruição e a violência estão diante de mim; há também contendas, e o litígio é suscitado. 4. Por esta causa a lei se afrouxa, e a justiça nunca se manifesta; porque o ímpio cerca o justo, de sorte que a justiça é pervertida. (Habacuque. 1. 1-4)

“Procissão”, mesclada com a religiosidade, apresenta-se como uma produção de característica inspirada pela estética bossa-novista e pela convergência das ideias difundidas pelo CPC. A necessidade da modernização da MPB fez com que surgisse certa proximidade de ideias entre ambas, que posteriormente desembocariam no realismo socialista do Centro Popular de Cultura e, por conseqüência, na expressão da politização da estética.

De acordo com esse programa, o artista deveria assumir o papel de um militante político, capaz de interferir na História através de suas armas espirituais, em prol da libertação material e cultural do nosso povo. E, paralelamente, preconizava a autonomia da obra de arte como algo equivalente a um discurso que anunciava, com antecedência, transformações sociais a serem implantadas, futuramente, pela revolução social. Em contrapartida, o artista despolitizado, defensor da arte pela arte, transformava-se numa presa fácil ou numa vítima dócil, ou ainda, num instrumento da classe dominante, em função da produção de obras sintonizadas com o status quo, ou antipopulares. Além disso, os ideólogos do CPC admitiam a possibilidade de um artista reacionário ou alienado modificar seu comportamento, graças à sua conscientização política sobre o ideal de arte revolucionária (...). (Contier, 1998, p. 22-23).

Gilberto Gil e outros representantes da nova MPB abriram ampla discussão sobre a necessidade da modernização da Música Popular. Muitos se uniram às ideias revolucionárias, entre eles Caetano Veloso, Torquato Neto, Tom Zé, Capinan5. Embora tivesse parcerias com músicos da BN, o poeta Capinan encontrava-se bem alinhado à estética inspirada pelo realismo socialista do CPC de Salvador.

Observamos não só a presença do realismo socialismo mas também a convergência dessas características com as do socialismo religioso que aparece como consequência quase natural de ordem prática da teologia da cultura e seu ideal de promover a síntese entre religião e cultura. O movimento era pautado como colaborador e não adversário do marxismo; Assim, pretendia-se conferir à análise e à prática marxistas aquilo que para os marxistas era considerado quase irrelevante, passageiro e circunstancial: o fundamento religioso. 

Posto que a cultura, digo, a produção cultural apresenta-se substancialmente religiosa e intencionalmente cultural, enquanto a religião apresenta-se substancialmente religiosa e formalmente cultural, o marxismo é considerado religioso em sua essência, mas, antirreligioso em sua intenção. (Calvani, 1998, p. 62). Dessa maneira, observamos que a produção cultural de Gilberto Gil, em particular a presente na canção “Procissão”, incorpora características do socialismo religioso que aparecem como tentativa de síntese a apontar para a possibilidade de uma teoria e uma prática marxistas que sejam, ao mesmo tempo, substancialmente religiosas e intencionalmente culturais.

(Revista Brasileira-Danilo Sérgio Sorroce)

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