João do Vale o compositor, o poeta do Povo

“Carcará pega, mata e come”. Celebrada na voz de Maria Bethânia no lendário show Opinião, em 1964, a música “Carcará” é de autoria de um homem pobre e pouco letrado: João Batista do Vale. Ele compôs mais de 400 músicas ao longo de sua vida, que marcaram a história da música brasileira.

João do Vale nasceu em Pedreiras, próximo de São Luís, no Maranhão. Dono de uma voz grave, de uma poesia contestadora, era conhecido como compositor de protesto.

O cantor era gago, neto de escravos e quinto filho de oito irmãos. Na infância, João Pé de Xote, como era conhecido, ajudava em casa vendendo doces feitos por sua mãe. Frequentou a escola até o 3º ano primário, quando teve que interromper os estudos para ceder lugar a outro aluno, filho de
um coletor de impostos. Este episódio deixou marcas nas suas composições.

A paixão pela música começou ainda na infância ao integrar um grupo de bumba-meu-boi, o Linda Noite, como amo, sendo o responsável por fazer os versos e cantar as toadas principais. Aos 12 anos, mudou-se com a família para a capital São Luís e, aos 14, fugiu para Teresina, mas seu sonho era conhecer o Rio de Janeiro e ter uma vida melhor. Arranjou emprego de ajudante de caminhão e viajou para Fortaleza, Teresina, Salvador. Com 17 anos, chega ao Sudeste, mais precisamente em Teófilo Otoni, em Minas Gerais, para trabalhar no garimpo. Sem muito sucesso, vem para o Rio e consegue trabalho de pedreiro, na Zona Sul.

Em 1950, começou a frequentar a Rádio Nacional para mostrar seus baiões e conhecer outros músicos, entre eles Tom Jobim, companheiro de música e bebidas. Como figurante, participou do filme "Mão sangrenta" (1954), dirigido por Carlos Hugo Chrisansen, e “No mundo da luz” (1958), de Roberto Farias. Além disso, em 1969, João do Vale compôs a trilha sonora de “Meu nome é Lampião”, de Mozael Silveira.

O primeiro sucesso de João do Vale como compositor foi “Estrela miúda” em parceria com Luiz Vieira, gravada pela cantora Marlene, em 1953. Destacam-se em seu repertório também as canções “Pisa na Fulô” (com Silveira Jr. e Ernesto Pires), “O canto da Ema” (com Ayres Viana e Alventino Cavalcanti) e “Coronel Antônio Bento” (com Luiz Wanderley), imortalizadas nas vozes de cantores brasileiros. 

Para seu biógrafo, Marcio Paschoal, João era um desses fenômenos inexplicáveis, não possuía nenhum tipo de formação acadêmica mas era capaz de compor verdadeiros hinos políticos.

Com sua simpatia e simplicidade, o cantor conviveu com diferentes personalidades, de políticos a escritores, como Ferreira Gullar, Bibi Ferreira, Fagner, Geraldo Azevedo, Caetano e Gilberto Gil. Muitos intérpretes da MPB gravaram canções escritas pelo compositor maranhense.

 João do Vale teve músicas gravadas por Dolores Duran, Luiz Gonzaga, Elba Ramalho, Tim Maia, Alceu Valença, Caetano Veloso, Chico Buarque, entre tantos outros artistas. Para o cantor Zé Ramalho, João do Vale, Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro formavam o tripé da música nordestina. “Com ele se foi a última parte”, disse Zé Ramalho sobre a morte de João do Vale, no dia 6 de dezembro de 1996, vítima de um derrame cerebral.

Na década de 1960, João se apresentava no famoso Zicartola, bar de Cartola e dona Zica, onde compositores se reuniam para cantar. Em 1964, surgiu a ideia do espetáculo musical Opinião, no Rio, escrito por Oduvaldo Viana Filho, Paulo Pontes e Armando Costa. João do Vale dividiu o palco com Zé Keti e Nara Leão, que depois foi substituída por Maria Bethânia, cuja interpretação imortalizou a música de protesto “Carcará”, uma parceria de João do Vale com o compositor José Candido. O show era um dos símbolos de contestação ao regime militar, uma tentativa de resistência cultural. Dez anos depois, ele participou da remontagem do espetáculo.

Durante a ditadura militar no Brasil, algumas de suas músicas e apresentações foram censuradas.

No final dos anos 70, João do Vale se apresentava no Baile Forró Forrado, no Catete, Zona Sul carioca, convidando outros artistas a participarem, lotando o espaço com freqüência. Em 1994, Chico Buarque volta a reverenciar João do Vale e reúne artistas para gravar o disco “João Batista do Vale”, que recebeu o Prêmio Sharp de melhor disco regional.

Marcio Paschoal lançou o livro “Pisa na Fulô mas não maltrata o Carcará” (2000), biografia sobre João do Vale. A obra é uma referência sobre o cantor e compositor, que narra a ascensão do maranhense. O livro traz ainda depoimentos de outros artistas, cópias de contratos, a musicografia e diversas fotos da sua trajetória. Em 2006 foi lançado o espetáculo musical “João do Vale – o poeta do povo”, peça de Maria Helena Künner, com direção de Marco Aurêh, baseada na biografia escrita por Paschoal.

João do Vale passou seus últimos anos com a saúde muito debilitada. O cantor tinha dificuldades para andar e falar, além de enfrentar dificuldades financeiras, devido a dois derrames que lhe deixaram seqüelas neurológicas. O compositor morreu em São Luís. Celebrado na MPB, com inúmeras canções registradas, ele faleceu quase no anonimato. Sua trajetória foi um espelho da cultura popular e do dia-a-dia dos brasileiros, sendo um representante autêntico dos nordestinos.

Fonte: Adriana Lima-O Globo.
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