LIVRO A MULHER NA CANÇÃO DESTACA COMPOSITORAS QUE ATUARAM NA ÉPOCA DE OURO DO RÁDIO NO BRASIL

Quem conhece Lina Pesce, Dilú Mello ou Bidú Reis? Elas são compositoras que fizeram sucesso em suas épocas e depois desapareceram na história da música brasileira. Madalena Cantarella Pesce (1913-1995) foi uma compositora e pianista paulistana, admirada pela imprensa brasileira e considerada talento excepcional por Villa-Lobos, autora de 200 composições, entre músicas instrumentais e letras, incluindo Bem-Te-Vi Atrevido, que alcançou oito países. 

Maria de Lourdes Argollo Oliver (1913-2000), com mais de 100 composições, fez sucesso como cantora, instrumentista e compositora a partir das inúmeras rádios em que atuou e das várias regiões e cantos remotos que visitou, dentro e fora do Brasil, arrastando multidões e alçando voos na televisão, onde comandou um programa só seu. 

Já Edila Luísa Reis (1920-2011) foi cantora, compositora, instrumentista – tocava piano, violão e gaita –, radioatriz, poetisa, escritora, autora de 93 canções, como letrista e melodista, com uma voz que ganhou destaque como solista nos muitos grupos vocais de que participou, além de ser a “queridinha” da Rádio Nacional, onde trabalhou por 30 anos.

Essas e outras histórias de cantoras e compositoras estão no livro A Mulher na Canção – A Composição Feminina na Era do Rádio, da pesquisadora, cantora e compositora Denise Mello, que foi lançado no dia 30 passado no Centro Maria Antonia da USP. Publicada pela Machine Editora, a obra tem título emprestado da famosa valsa de Zica Bergami – também retratada no livro –, imortalizada na voz de Inezita Barroso. 

No total são 18 compositoras, poucas delas reconhecidas ainda hoje, como Chiquinha Gonzaga, a primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil e, nas palavras de Denise, “a primeira musicista com grande reconhecimento como compositora, que ganhou prestígio também como instrumentista, fato bastante raro na história da nossa música”, e Dolores Duran, que morreu no auge de sua carreira, aos 29 anos, “quando se destacava com suas composições, gravadas por inúmeros intérpretes – poucas por ela mesma –, cantora versátil, interpretando em sete idiomas e que até hoje tem seu lugar garantido na história musical e alguns sucessos que se perpetuaram”.

Segundo Denise, as três primeiras mulheres que abrem a obra foram selecionadas como representantes do início da composição feminina no Brasil: Tia Ciata (1854-1924), Maria Firmina dos Reis (1822-1917) e Chiquinha Gonzaga (1847-1935). As outras 15 mulheres tiveram atuação na “época de ouro” do rádio, obtendo grande prestígio em vida.

 “As compositoras do rádio foram divididas em três grupos, levando em consideração as datas de suas primeiras composições registradas por fonogramas ou anunciadas pela mídia”, explica Denise. O primeiro grupo é de compositoras que iniciaram suas composições nas décadas de 20 e 30: Carolina Cardoso de Menezes, Lina Pesce, Laura Suarez, Marília Batista e Dilú Mello; o segundo grupo compôs a partir da década de 40: Aylce Chaves, Linda Rodrigues, Carmen Costa e Stellinha Egg; e o terceiro grupo agrega compositoras a partir da década de 50: Bidú Reis, Dora Lopes, Almira Castilho, Zica Bergami, Dolores Duran e Maysa.

BOSSA NOVA: Formada em Psicologia pela USP em 1989, Denise Mello trabalhou como psicóloga durante 13 anos e, deixando a profissão, passou a se dedicar à gravação de jingles e locuções publicitárias. Foi assim que se tornou professora de canto popular e musicalização infantil, violonista, cantora e compositora. 

O processo de pesquisa do livro, conta, começou no curso de pós-graduação em Canção Popular, que concluiu em 2017 na Faculdade Santa Marcelina, em São Paulo. Na época ela tinha reunido cerca de 30 compositoras brasileiras, que foram divididas por épocas e principais gêneros musicais, do final do século 19 até a bossa nova. Depois da conclusão do curso, ela continuou a pesquisa por conta própria. Com a pandemia de covid-19, o projeto ganhou lives no Instagram e podcasts – Denise fez um podcast piloto sobre Tia Ciata e outros, sobre Alaíde Costa e Chiquinha Gonzaga, já estão prontos –, além de gravações compartilhadas na plataforma Youtube, entre elas dois discos inéditos das compositoras Dilú Mello e Zica Bergami, “obtidos através de contatos preciosos”, como lembra a pesquisadora. 

“Formei uma banda exclusivamente com instrumentistas mulheres para gravar um CD com algumas de suas canções – a maioria com um único registro e pouco conhecidas pelo público”, revela. Além disso, Denise faz palestras musicadas e já adianta que está planejando um show só de composições das mulheres destacadas no livro.

Foi só em 2020, ainda durante a pandemia, que Denise resolveu escrever o livro. Para isso, ela se aprofundou na pesquisa de jornais e revistas da época, utilizando principalmente os recursos da Hemeroteca Digital Brasileira da Biblioteca Nacional. No final daquele ano, seu projeto A Mulher na Canção ganhou subsídios do Programa de Ação Cultural de São Paulo (Proac).

Para o livro, Denise fez um recorte temporal, reunindo três compositoras do século 19 e a maioria da época do rádio. “Elas eram compositoras cantoras, como Marília Batista e Dilú Mello, e compositoras instrumentistas, como as pianistas Lina Pesce e Carolina Cardoso de Menezes”, relata, acrescentando que muitas delas foram esquecidas ao longo da história. Mesmo aquelas que continuaram a fazer sucesso, diz a pesquisadora, não poderiam ficar fora do livro, caso de Dolores Duran, que Denise considera uma compositora “incrível”, que precisou enfrentar preconceitos como mulher musicista e negra. 

“É um livro escrito por uma cantora pensando principalmente na canção”, destaca. “O mais importante para mim é, além de trazer a história delas, fazer com que as pessoas conheçam as canções. É por isso que no livro eu coloco links para a escuta e trechos de letras”, destaca. Dado o grande número de compositoras, a pesquisadora não se propõe a analisar as letras e as melodias, embora não tenha resistido a fazer algumas observações sobre elas. 

Outro dado relevante é o momento histórico vivido pelas compositoras. “Elas enfrentaram com coragem muitas dificuldades para superar o machismo e o preconceito de ser mulher ao apresentarem seus pensamentos e produções. Carmen Costa e Dolores Duran, por exemplo, tiveram que enfrentar o racismo; Dora Lopes e Linda Rodrigues, a homofobia”, conta Denise. Ela dá como exemplo um trecho de uma música de Marília Batista, datada de 1943, que diz: “A mulher tem razão, ninguém vai proibir/É justo que ela queira dar um giro por aí”. 

“Ela fala da necessidade de se respeitar a mulher, da liberdade da mulher, coisa que ela não tinha porque naquela época era totalmente submissa ao marido”, diz Denise, lembrando a Constituição de 1937, que estabelecia que a mulher, para abrir uma conta bancária, precisava da permissão do marido. “De certa forma, o livro traz essa trajetória do feminino e de como a mulher lidou musicalmente com essa sociedade patriarcal.”

Denise lembra que, em cem anos de rádio no Brasil – ele chegou ao País oficialmente em 7 de setembro de 1922 –, a história da música ficou marcada pela existência de compositores. “A notícia que se tem nos livros e no meio acadêmico é que nós só tivemos cantoras, as ‘rainhas do rádio’, e não compositoras. Mas nós tivemos muitas, inclusive as ‘rainhas do rádio’ também compunham, como Ângela Maria”, informa. “Como disse recentemente a ministra Cármen Lúcia (do Tribunal Superior Eleitoral), as mulheres não eram silenciosas, mas foram silenciadas. Eu falo muito disso no livro.

 A mulher, sim, tinha voz através das suas composições, da instrumentação e do canto, mas era uma voz que não tinha uma repercussão tão grande como a do homem, porque era uma época em que a mulher não podia se expor. Muitas das compositoras usaram pseudônimos porque não ‘pegava bem’ ser compositora e dizer o que pensava”, analisa. 

“O livro fala dessas vozes todas, que ficaram silenciadas, mas que não foram silenciosas”, afirma. Para Denise, o projeto A Mulher na Canção vai além da recuperação da trajetória de compositoras eclipsadas. Ele traz à tona a voz de mulheres protagonistas que ainda estão marginalizadas na história do Brasil.

A Mulher na Canção: A Composição Feminina na Era do Rádio, de Denise Mello, com ilustrações de Luisa Mello (Machine Editora, 520 páginas, R$ 60,00). 

FONTE: Jornal da USP Texto: Claudia Costa

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