NO CENTENÁRIO DE JOÃO CABRAL DE MELO NETO, CONFRARIA O HOMENAGEIA EM EDIÇÃO ESPECIAL

João Cabral de Melo Neto (1920-1999) riscou o seu estilo na história da literatura brasileira de maneira indelével com a ponta de um punhal pernambucano. Ele virou quase que sinônimo de contundência, magreza, aridez, materialidade e essencialidade. Fez os objetos falarem. Inventou uma poesia tesa, com língua de pedra, de faca, de osso, de mandacaru e de fuzil. 

Na passagem do centenário de João Cabral de Melo Neto, o poeta pernambucano ganha celebração brasiliense, em edição artesanal esmerada de antologia poética, publicada pela Confraria dos Bibliófilos do Brasil, com ilustrações de Maurício Arraes e apresentação de Inez Cabral de Melo Neto.

Essa é uma homenagem que João, com certeza, apreciaria, pois ele editou vários livros seus no Recife, na editora Gráfico Amador, com Gastão Holanda, pai do arquiteto Frederico Holanda. Além disso, o próprio Cabral publicou 14 obras artesanais no selo Livro Inconsútil, que criou nos tempos em que morava em Barcelona.

“Falo somente com o que falo/com as mesmas vinte palavras/girando ao redor do sol/que as limpa do que não é faca”, escreveu João Cabral no poema Graciliano Ramos. Pois bem, José Salles Neto, o editor da Confraria dos Bibliófilos, considera João o Graciliano Ramos da poesia: “Graciliano é o nosso maior ficcionista e Cabral é o nosso poeta mais singular”, comenta Salles. “Tem o texto enxuto, contundente e profundo dos romances de Graciliano”.

Salles observa que João também condensa o mundo dos engenhos do Nordeste evocado por José Lins do Rego. O que pode ser ilustrado pelo poema Menino de engenho: “A cana cortada é uma foice./Cortada num ângulo agudo, ganha o gume afiado da foice/que a corta em foice, um dar-se mútuo./Menino, o gume de uma cana/cortou-me ao quase de cegar-me,/e uma cicatriz, que não guardo,/soube dentro de mim guardar-se.”

PERNAMBUCO: As poesias de Manuel Bandeira, de Vinicius de Moraes, de Mário Quintana ou de Cecília Meirelles são de um lirismo mais leve. A de João é uma antipoesia, que critica duramente todo o imaginário romântico e sentimental: “Pernambuco tão masculino/que agrediu tudo de menino/é capaz das frutas mais fêmeas/E de uma femeeza sedenta”.

Salles comenta que João nunca entrou nos álbuns de poesia que as moças e os rapazes faziam: “ O Vinicius ou o Drummond entravam em todas. Cabral não é para apaixonados, deslumbrados. Ler a poesia de João Cabral é exercício crítico, embora ele também seja um poeta sensorial”.

A poesia de João Cabral é fálica, macha, sem ser machista. Expressa a visceralidade nordestina: “Trata-se de uma virilidade mais literária do que sexual”, comenta Salles. “É algo semelhante ao que a gente encontra nos romances de Graciliano Ramos. Acho que essa contundência e aspereza são características do povo nordestino”.

A escolha do ilustrador é um aspecto muito importante nas edições da Confraria dos Bibliófilos do Brasil. Salles acompanha o trabalho dos artistas gráficos de maneira obsessiva. E, quando edita um livro, sempre tem um artista em mira. Já publicou obras com ilustrações de Dariel Valença Lins, Marcelo Grassmann, Millôr Fernandes, Renina Katz, Maria Tomaseli, entre outros.

CORDEL: Maurício Arraes imprimiu um estilo de traços crus e de atmosfera fantasmagórica das gravuras de cordel às ilustrações para a poesia de João Cabral. Mas, a bela capa colorida, evoca as figuras primitivas e meio larvares de Juan Miró, de quem João Cabral era amigo e sobre quem escreveu um excelente ensaio. Maurício seria um Miró do sertão: “Entre os grandes ilustradores, Maurício Arrais é o menos badalado”, pondera Salles. “Sempre procuramos o melhor artista de cada região. A evocação a Miró foi consciente. Ele me mandou um e-mail dizendo que queria fazer uma homenagem à amizade entre Cabral e Miró”.

A Sociedade dos 100 Bibliófilos do Brasil, fundada no Rio de Janeiro, é a mais famosa instituição dedicada a livros artesanais de arte. Durou de 1949 a 1964 e publicou 23 livros. 

Mas, apesar de menos badalada, a Confraria dos Bibliófilos do Brasil, dirigida por Salles, já publicou 70, em 25 anos de atividade. Todos os ilustradores da Sociedade colaboraram com as edições da confraria brasiliense, que publica três livros por ano, dois por votação dos sócios e um por escolha de Salles: “Os sócios votaram em massa em João Cabral de Melo Neto”, observa Salles: “E acho que João Cabral ficaria feliz com essa homenagem da Confraria, pois ele foi um apaixonado editor de livros de arte artesanais”.

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