MAURICIO FERREIRA E O MUNDO DA FEIRA DE OURICURI

A meninada, depois das peregrinações semanais pela Carregadeira – Feira do gado –, na quinta-feira, e pela “Matança”, na sexta, ansiava pelo dia do deslumbre maior: O sábado. O dia já nos acordava diferente. A claridade, os sons, o bulício das novidades, o teor das vibrações... Tudo já prenunciava que a cidade já tinha descambado “lá pra baixo”; pro quadro da igreja – pro campo de convergência dos encantos do nosso mundo: A Feira.

A primeira missão era ajudar a mãe a carregar a cesta com a feira da casa – quando se aproveitava pra ir barganhando as delícias de nossa preferência: macaúba, jatobá, rosário de coco catolé, pitomba, tamarina, amendoim, laranja da Bahia... e garantir uns trocados pra depois, na volta triunfante, se esbaldar com picolé, garapa de cana, pão com doce de leite, quebra-queixo... 

Nessa primeira incursão, com todos os sentidos em alerta, já íamos sondando as maravilhas daquele universo: As bancas de quebra-queixo e uma constelação de outros doces e bolos do Sertão; as rodas em volta dos pedintes, dos cordelistas, do homem da cobra, das bancas de jogo de azar; o vuco-vuco do açougue; a boataria acesa nas barracas de comida; o cheiro de picolé e caldo de cana, no Palanque – onde, encostado numa pilastra, um cartaz do cinema antecipava cenas da matinê...

Os pedintes, que geralmente já eram velhos conhecidos de todos, e tinham os pontos cativos nas calçadas do açougue, do Grupo Telésforo Siqueira, da Pracinha da Casa Paroquial; no meio da feira, na Praça dos Voluntários e em outras sombras e recantos; nos atraiam pela “cantilena” com que apelavam à misericórdia da “freguesia” circundante, nas suas fainas de penosa e humilhante mendicância. 

A sombra da castanhola da esquina de Teófilo Lins com a Bodega de Babá,  que também era ocupada por sapateiros que faziam consertos sentados nos tamboretes por trás das suas envelhecidas banquetas; era dos espaços mais emblemáticos por ficar na passagem entre a feira e a área “lá de cima”, da cidade; e confluindo com o movimento das bancas de comida, bares, barbearias e armazéns da rua da ladeira do São Sebastião; sendo marcada pela energia concentrada pelo abandono das vidas que ali se entregavam à mendicância, à labuta, ou a simples vadiagem.

...Era um dos pontos onde mais retiniam as vozes e as músicas viscerais de cegos e outros pedintes com suas rabecas, violas, sanfonas, ganzás, pandeiros... que, com suas cantigas e versos da tradição popular nos prendiam por horas a fio, infiltrados no círculo de curiosos que ali esqueciam os motivos de terem ido à feira; sendo retidos, como nós, pelo inevitável magnetismo daquelas ressonâncias ancestrais.

Uma difusora do Sistema de Autofalantes Estrela D’alva, do Cine Santa Terezinha, do alto do poste desta esquina, misturava as vozes de Gilvan, Gilson, Quinquinha ou Climério bradando o pregão do cinema – com pérolas como: “Somente hoje, essa maravilhosa película, em cinemascope colorido! ... Um grande faroeste italiano, revivendo o Velho Oeste norte-americano de outrora! ... e o som de músicas de Luiz Gonzaga, Jacson do Pandeiro, Marinês, Teixeirinha, Roberto Carlos, Jerry Adriani, Nelson Gonsalves, Agnaldo Timóteo... ao burburinho efervescente daquela encruzilhada de eflúvios e elementos que nos marcariam para sempre.

As barracas de comida eram pontos de passagem e de encontro. A partir da esquina de Babá com o ponto de ervas de João Penteado, a entrada da rua era tomada pelos sabores das panelas fumegantes e do converseiro desenfreado; sendo cortadas pelo entrançado de gente indo e vindo e animadas pelo festival de enfezamento de Zefa Tiba que, junto com outras como Ana “Culete” e Luzinara cozinhavam e vendiam, no meio da rua – com a freguesia sentada em bancos de madeira – pratos de cuscuz, feijão, fava, mungunzá (pintado), buchada, Baião de dois, bode, galinha de capoeira... 

No campo de Monta, pros lados do Açude da Nação, e nos Algarobas – não muito longe do quadro principal e que eram atrações periféricas do dia da feira e do universo do açougue; íamos curiar a compra, venda e troca de bodes, carneiros, porcos, jumentos e cavalos; já conhecendo compradores como Zé do Guirro, Arlei, Zé Félix, Sebastião Sá, Everaldo de Zé Alves e tantos outros, naquele rude manejo e puxa-encolhe de “rolo” com animais; que arrebatava a nossa curiosidade, levantava o odor dos animais estropiados e evidenciava a esperteza de homens astuciosos.

O Beco do Romeirinho não era só um dos acessos àquele campinho de futebol; já era, normalmente, uma artéria que, embora curta, era marcado sombra de uma energia envelhecida. Nos dias de feira se tornava válvula de escape do movimento – à altura da larga e clara feira da farinha. O beco refugiava e ambientava uma das mesas de baralho mais movimentadas da cidade.   

Outro beco, o da Torrefação era um antigo veio de acesso à feira, e ligava esta aos “Algarobas”, que era um quadro arborizado onde, no sábado, se amarrava e negociava animais e periodicamente abrigava Circos, Parques de diversão, rinhas de galos, acampamentos de ciganos...

Varávamos o dia escruvitiando pela Feira, “fuçando” cada palmo daquele festival de vidas em profusão; malinando em brinquedos e outros artigos nas bancas e esteiras com variedades; nas bancas de frutas; nas lonas de ferramentas e utensílios domésticos; e, por vezes, se arriscando na aventura de pequenos furtos como de carretel de linha, de biliro, de pente, de bila... 

E era ainda, a Feira, o lugar e o dia mais certo de encontrar figuras como Bibibi, Valdeci, Coringa, Rosa Doida, Ló, “Antôi” Praga, Pitó, Mariano Catita, Bulu, Mané Luca; que faziam a festa da meninada.

A Feira era, pra nós, uma grande represa de sensações; um descomunal parque de diversão. 

Era o Sertão se expondo e se encontrando.

Maurício Ferreira-poeta, escritor e fundador Sebo Rebuliço

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