SOLIDÃO, SOLITUDE E ARTE DO ISOLAMENTO CRIATIVO

Solidão: 1. Estado de quem se acha ou se sente desacompanhado ou só; isolamento. 2. caráter dos locais ermos, solitários. Há quem já tenha expressado que fulano ou sicrano vive “em meio à solidão do deserto". A psicologia observa que, entre seus diversos fatores, a solidão pode ser normal e é um indicador de doença subjacente somente quando os sentimentos se tornam excessivos, obsessivos e interferirem na vida cotidiana. 

A solidão sempre foi uma parede imensa na rotina dos criadores das diversas linguagens das artes, mas com suas janelas capazes de serem abertas à maneira de cada personagem. O poetinha Vinícius de Moraes contestava as condições do ato solitário com humor, como forma de negar a ideia de se estar só, mesmo que em momentos intensos, e observou: “É melhor se sofrer junto  que viver sozinho”.

No livro O Dilema do Porco Espinho (2019), o filósofo Leandro Karnal, viaja pela modernidade liquida e também analisa a solidão no mundo virtual, a ponto de contemplar tanto temas como amigos imaginários das crianças até pensamentos de filósofos. Aristóteles pregou certa vez que a solidão criava deuses e bestas. Para Karnal , amor, ódio, paixão, ambição e solidão são temas recorrentes na literatura mundial e facilitam esteticamente a identificação do leitores com o “eu” dos personagens. A literatura pode ser a chave para o autoconhecimento. 

A música idem, só que é um campo em que se brinca através da sonoridade, ritmos e harmonias, com as palavras e o imaginário coletivo como forma de se tentar instigar o que se pensa/sente pelo horizonte da “solitude”, ou seja, o estado de privacidade de uma pessoa, não significando, propriamente, estado de solidão.

Para o cineasta Oscar Wilde “O homem nasce só, vive só e morre só”. Um dos personagens eternos da literatura mundial, Dom Quixote - o cavaleiro de Miguel de Cervantes, personifica a solidão idealista de um fidalgo arruinado. “Desiludido com o mundo, enamorado de livros de cavalaria, leitor voraz dos feitos e glórias de outrora, torna-se solitário em seus sonhos", como relata Karnal. No romance literário, Robson Crusoé também traduz-se no seu isolamento forçado e imposto ao personagem em decorrência de um naufrágio.

Em A paixão segundo G.H., Clarice Lispector desvenda a trajetória de uma mulher madura, solitária, escultora nas horas livres e provavelmente entorpecida para a realidade. O que imaginar sobre o que se passa entre os personagens de Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marques? E de O Velho e o Mar, de Hernesto Hemingway, levando em conta o sofrimento solitário deste homem numa ilha? São obras quer falam de solidão, feito nas tempestivas noites e dias de solidão criativa, sem falar em ócio. 

Na Música Popular Brasileira, as palavras solidão e amor, talvez, sejam dois substantivos mais presentes e cantados das várias formas, por diversas vozes e sentimentos diante da liberdade poética de quem produziu suas letras em momento solitário ou não. Há solidão de dor, tristeza, banzo, vazio e ausência de algo ou alguém. Também há a solidão na multidão e até mesmo em meio a alegria do carnaval. 

O cantor e compositor pernambucano Alceu Valença, em 1984 arrebatou com seu disco “Mágico”, recheado de forró, repente e maracatu. A balada meio blues "Solidão" nasceu em meio à leitura de Cem anos de Solidão. O artista descreveu em caráter biográfico momentâneo, seus sentimentos numa madrugada contemplativa em Minas Gerais. 

"A solidão é fera a solidão devora/É amiga das horas prima irmã do tempo/E faz nossos relógios caminharem lentos/Causando um descompasso no meu coração/A solidão dos astros/A solidão da lua(...). 

A música desabrochou num momento solitário após um show. “A solidão é inerente a todo ser humano. Compus esta canção na varanda de um  hotel contemplando a lua sozinho. Comecei a pensar a minha solidão após uma apresentação com a casa lotada. Comecei a divagar sobre os dois momentos. Solidão  faz com que nosso relógios caminhem lentos e a gente que passar por esse tempo".

Paulinho da Viola compilou sua ideia sobre o assunto em "Dança da Solidão", um requintado choro gravado por Marisa Monte no disco Verde, Anil, Amarelo, Cor-de-Rosa e Carvão (1984). O sambista carioca alinhou o sentimento solitário com desilusão como enfatizou em parte da letra: 

"Solidão é lava que cobre tudo/Amargura em minha boca/Sorri seus dentes de chumbo/Solidão palavra cavada no coração/Resignado e mudo/No compasso da desilusão/Desilusão, desilusão/Danço eu dança você/Na dança da solidão"

Desde os anos 1970, Chico Buarque passou a dar voz às mulheres em inúmeras  composições, com suas narrativas poéticas em clima de relações conturbadas e caráter psicológico intenso. Em "A Mais Bonita", gravada por Maria Bethânia e outras intérpretes a voz ativa se exprime contra a solidão e provoca: 

"Não, solidão, hoje não quero me retocar/Nesse salão de tristeza onde as outras penteiam mágoas/Deixo que as águas invadam meu rosto/Gosto de me ver chorar/Finjo que estão me vendo/Eu preciso me mostrar/Bonita, Pra que os olhos do meu bem/Não olhem mais ninguém/Quando eu me revelar/da forma mais bonita".

A dor de cotovelo por sofrer por um ex-amor, expressão tão repetida hoje, ficou popular por causa de Lupicínio Rodrigues. Ele sabia o que cantava: os momentos de sofrimento envolvendo as mulheres não foram poucos, e eram matéria-prima de canções cheias de lamento e solidão. Abandonado por elas, Lupi – como era chamado desde a infância – transformava a dor em belos versos. Quem pensa que o coração magoado se fechava, enganou-se.

 O gaúcho era vingativo para com a solidão. Deixava um lugar especial para as arrependidas: ‘Castigo’, ‘Remorso’, ‘Calúnia’, ‘Amigo ciúme’, ‘Caixa de ódio’ eram títulos de músicas que dão uma ideia da turbulenta vida amorosa de Lupicínio, que garantia que todas as letras eram inspiradas nas próprias experiências.

Solidão não tem gênero, nem cor, nem crença. É um substantivo abstrato que parece torturar coisas concretas da vida humana. Mas sempre foi na arte que disseram muito e ainda dirão. Imagine em tempo de pandemia e isolamento social? Quantas telas foram pintadas para retratar a solidão do pintor artístico e mais alguém? (Fonte: Multiciência/Agência de Notícias)

*Coluna Do Texto ao Texto (Letras e sons) por Emanuel Andrade, jornalista, professor do curso de Jornalismo em Multimeios e Doutor em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Trabalhou como Repórter no Jornal do Comércio e foi pioneiro no jornalismo cultural na região, ao assinar a coluna de Literatura e Música  para o Gazzeta do São Francisco na década de 1990 e para rádios do Vale do São Francisco (Fonte: Multiciência/Agência de Notícias)

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