A VERSATILIDADE POÉTICA NA VOZ DE LUIZ GONZAGA PARA ALÉM DO NORDESTE, AMOR E DO SOCIAL

A obra do cantor, compositor e sanfoneiro Luiz Gonzaga já influenciou diretamente três gerações de músicos brasileiros que o colocaram na titularidade de Rei do Baião. Adjetivos à parte, Luiz Gonzaga colocou o Nordeste no cenário principal da MPB moderna e figurou no panteão da cultura brasileira ao lado de Noel Rosa e Tom Jobim.  Gonzaga ganhou novos aliados que regravaram suas canções e homenagens diversas que perpassam pelo seu nascimento a 13 de dezembro como também o aniversário de sua morte em agosto de 1989.

Constantemente, estudado por pesquisadores de música, já foi tema de dissertações e teses acadêmicas inclusive fora do Nordeste. A dimensão da figura do artista atravessa particularidades que vão além da música, da poesia  e dos meios de comunicação. Gonzaga entrou em cena quando o rádio era o veículo do momento, no qual todo artista para ganhar fama e fãs tinha de passar por seus auditórios e mostrar sua arte ao vivo. Fora o rádio, os jornais e revistas, bem antes da TV, davam o tom as estrelas da música. E no rádio ele apareceu para o mundo. Fez programas de auditório e, através dos discos de 78 Rotações e do LP, fez suas canções chegar aos ouvidos de milhares de nordestinos e gente de outras regiões que antes  torciam o nariz para sua arte.

"Lua" foi um apelido ampliado pelo ator Paulo Gracindo(1911-1995) na Rádio Nacional. O cantador e sanfoneiro de Exu reinou em muitos outros territórios, os quais desbravou pessoalmente, ultrapassando as fronteiras, instituindo a língua oficial de cada região e suas manifestações.  Em sua canções, o filho de Januário foi versátil  para além das polifonias criativas que dão suporte a arte de cantar. Falou do amor não correspondido, de traições e de romances que extravasam nas telenovelas. Descreveu as amarguras da seca e as epopéias dos sertanejos. Falou do canto dos pássaros antes e depois das invernadas, das cheias que provocaram destruição em pleno sertão e da saga dos retirantes para os grandes centros.

Gonzaga cantou através dos versos de vários parceiros sobre a territorialidade e as pessoas da Paraíba, Bahia, Ceará, Alagoas, Maranhão e Pernambuco. Cada canção com uma pegada diferente e inovadora. Ressaltou a força de seu povo, suas manifestações culturais e sua culinária principalmente nesse período de festas juninas em que os banquetes vão  do milho cozido ou assado à canjica, pamonha, carne de charque ou de sol. Da cachaça ao quentão.

O sanfoneiro falou de religião sem fanatismo, mas com uma certa poética que percebia desde a infância nas novenas por entre as rezadeiras do Sertão. Cantou com maestria a Ave Maria Sertaneja, onde mais uma vez enfatiza a fé e sofrimento de seu povo:  "Quando batem as seis horas/ De joelhos sobre o chão/ O sertanejo reza a sua oração/ Ave Maria/ Mãe de Deus Jesus/ Nos dê força e coragem/Pra carregar a nossa cruz". O músico católico, por força e educação religiosa dos pais, declarou sua fé no Padre Cícero do Juazeiro, abençoado pelo Papa João Paulo II, com quem teve um encontro que lhe marcou a carreira.  Declamou poesia dos cantadores e cordelistas do Nordeste.

Politizado e antenado sobre as questões do Nordeste, em meio as canções mandou recados aos políticos pedindo barragens para seu povo. O amor esteve presente nas letras pelos vários pontos de vista: saudade, banzo, paixões não correspondidas e  traições.  Lampião, Antônio Conselheiro  e os coroneis do Sertão também entraram nas crônicas das canções. O meio ambiente soou como preocupação em vários momentos. Até as guerras travadas no Sertão foram pontuadas em suas denúncias ( como a briga das famílias Alencar e Saraiva), ocorrida na década de 1970 na sua terra natal que fez o filho ilustre de Exu pedir intervenção ao governo do Estado.

O vaqueiro sempre foi um personagem real lembrado em seu cancioneiro. Um dos fatos mais marcantes envolvendo esse profissional da caatinga nordestina, foi o assassinato de seu primo Raimundo Jacó - ocorrido entre as cidades de Serrita e Exu, em Pernambuco, o que fez Gonzaga compor para os versos de Nelson Barbalho um grito por justiça e reconhecimento: "Bom vaqueiro Nordestino morre sem deixar tostão e o seu nome é esquecido nas quebradas do sertão".  Desde a década de 1970, no mês de julho é celebrada a tradicional Missa do Vaqueiro no Sítio Lajes, com festa e forró que duram três dias.

Ainda nem se falava em canção de protesto que ganhou fôlego durante e depois da era dos festivais do final dos anos 1960, Luiz Gonzaga já fazia seus protestos. Foram muitas letras que denunciavam as armadilhas sociais do país. Vale observar parte dos versos de Vozes da Seca, que compôs com Zé Dantas:  "Seu doutô os nordestino têm muita gratidão/ Pelo auxílio dos sulistas nessa seca do sertão/ Mas doutô uma esmola a um homem que é são/ Ou lhe mata de vergonha ou vicia o cidadão/ É por isso que pedimos proteção a vosmicê/ Home por nós excluído para as rédeas do poder/ Pois doutô dos vinte estados, temos oito sem chover/ Veja bem, quase a metade do Brasil tá sem comer(...)".

A música se traduz numa mistura de discurso político e manifesto. Uma forma poética de denunciar o descaso e a omissão dos governantes no que se refere ao combate à seca. Mais de meio século depois, “Vozes da Seca” continua sendo uma “tapa de luva” na classe política brasileira, principalmente a nordestina.

O jornalista e crítico de música Luiz Antônio Giron escreveu certa vez : "mestre" não é  só aquele que faz a história perder-se de si mesma", aquele que reinventa o passado. Com seu jeitão simpático e carregado de humor (que nunca o abandonou), fruto de uma coerência difícil  de ser encontrada em artistas de seu porte, mais de uma vez  declarou: "Não sou modesto não. Eu não invento só o baião, mas também o forró, as marchinhas juninas, as coisas que Moraes Moreira canta. Tudo isso se chama arrasta-pé, tudo isso tem Luiz Gonzaga que não dá para calcular (Caderno 2, o Estado de São Paulo, 1989).

Em uma de suas últimas entrevistas da década de 1980, ainda em atividade fazendo shows pelo país Gonzagão declarou:  "Não é preciso que a gente fale em miséria, em morrer de fome. Eu sempre tive o cuidado de evitar essas coisas. É preciso que a gente fale do povo exaltando o seu espírito, contando como ele vive nas horas de lazer, nas festas, nas alegrias e nas tristezas. Quando faço um protesto, chamo a atenção das autoridades para os problemas, para o descaso do poder público, mas quando falo do povo nordestino não posso deixar de dizer que ele é alegre, espirituoso, brincalhão. Eu sempre procurei exaltar o matuto, o caboclo nordestino, pelo seu lado heróico. Nunca usei a miséria desvinculada da alegria".

*Coluna Do Texto ao Texto (Letras e sons) por Emanuel Andrade, jornalista, professor do curso de Jornalismo em Multimeios e Doutorando em Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Trabalhou como Repórter no Jornal do Comércio e foi pioneiro no jornalismo cultural na região, ao assinar a coluna de Literatura e Música  para o Gazzeta do São Francisco na década de 1990 e para rádios do Vale do São Francisco. 

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