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Moenda Engenho seu Aluisio |
A moenda está em dia, parecendo uma escultura da pós-modernidade. Essas rodas moveram o mundo brejeiro em certo tempo. Fizeram a vida girar, fizeram a vida voltar ao ponto de partida a cada volta. As tachas de ferro, da maior à menor, iam fervendo a garapa, o caldo da cana, até que, na última e menor delas, se formava o mel, o melado, grosso e escurecido, cheiroso e doce, mas carregado de suor.
Dessa tacha menor, o mel era levado para uma outra tacha, fria. Alguém de braço forte e ágil deveria trabalhá-lo com uma espátula, em giros rápidos, cobrindo e recobrindo, molhando a mesma espátula na água para não grudar. À medida que esfriava, o mel ia tomando uma textura mais pastosa. Antes de endurecer era deitado nas tábuas de rapadura, formas de madeira, onde, descansado, transformava-se em rapadura. Foi a rapadura nossa maior guloseima, nossa mais antiga paixão.
As noites foram sempre agitadas nos engenhos, o serão, as conversas de assombração, as visagens, os malassombros, todo o fio da “puxa” estava recheado dessas reinações. A noite foi mais forte e o breu mais agudo. Nascemos, nós do brejo, rodeados pela história dos engenhos, ladeados por engenhos fazendo história, acompanhados pela triste história de homens cujos suores adoçaram o fel de nossas vidas.
2. O sol fugidio suspirava arquejando, assassinado pela rotação da Terra, ilusão louca. Em sua falsa caminhada pelo céu, ele, o sol, entra pelas portas, janelas e corpos, vivos e idos, da casa grande e abandona-a ainda a pino, no zênite. Entra, mas não sai, visto que, em um segundo turno, entrará novamente, para desfazer-se em sombras logo mais às 18 horas.
2. O sol fugidio suspirava arquejando, assassinado pela rotação da Terra, ilusão louca. Em sua falsa caminhada pelo céu, ele, o sol, entra pelas portas, janelas e corpos, vivos e idos, da casa grande e abandona-a ainda a pino, no zênite. Entra, mas não sai, visto que, em um segundo turno, entrará novamente, para desfazer-se em sombras logo mais às 18 horas.
A estrada de barro vermelho e alaranjado, percorrida nos cavalos da motocicleta, é sempre declive, escorregando pelo flanco dos morros, demarcada por cercas de arame farpado em troncos de sabiá. A chuva deixou escrita sua letra em forma de vala curvilínea, sensual e traiçoeira.
Na primeira encruzilhada, a Casa Grande sorri amarelada pelo sol da História Colonial e suas nuanças. O fausto de suas linhas humilha a solitária senzala à frente. Mas seus dias de glória e poder decaíram como um todo, acompanhando os momentos decisivos do brejo. Lembro, com estremecimento, que meu pai comandou essas terras, capataz e feitor.
O engenho está calado e mudo, seus bois de carro perderam-se no canavial da ilusão, seus escravos foram alforriados pela morte, seus senhores obrigaram-se a escalar as paredes escorregadias do desengano. Linda Baixa Verde, bela arquitetura: qual guardião zelará por ti o resto da vida inteira? Enquanto estive em tua presença, ouvi muitos dos teus desabafos, compreendi teu silêncio e reverenciei tua longevidade.
3. No final da estrada que dá para Pilões, vindo das terras da antiga usina Santa Maria, à esquerda, inicia-se a estrada que terminará em Serraria. Estrada de barro, veredas bem marcadas. Também do lado esquerdo dessa estrada encontraremos dois engenhos de fogo morto, caldeira fria, mudas moendas, bagaceira livre. Um é o engenho Boa Fé. E mais adiante vemos apenas o que sobrou do antigo e opulento Poções.
Sua chaminé aponta para alguma constelação oculta no céu, pois até a lua se esquiva do seu bolorento olho. O tempo, pelo brejo paraibano, passou rápido, rasteiro e devastador. Ninguém se deu conta desse tempo réptil e muitos cultuam a ascensão, maldizendo a queda, o tombo ribanceira abaixo. O brejo é rico em histórias de assombração. O brejo é pródigo em histórias reais, moldadas pelo lodo, pelos fungos, pelo esquecimento. No Poções, a engrenagem sonha oxidada.
Quando as trevas desceram, os antigos engenhos de cana-de-açúcar e seus senhores tornaram-se o espectro esquálido do seu passado de poder, ouviu-se o grito da terra, cobrando seus domínios. Calaram-se as moendas, suas bocas engolidoras fecharam-se para sempre. Suas imensas tachas, onde se preparavam o mel e a rapadura, vomitaram o fogo das caldeiras sobre o dorso dos seus donos. Os agregados e trabalhadores alugados (cortadores de cana, cambiteiros, tangedores, carreiros) viram-se asfixiados na derrocada dos seus patrões.
O fogo-morto instalou-se geral. A capoeira invadiu as cumeeiras, a vida abandonou as vigas, o verme (eita, Augusto) operou meio às ruínas. Hoje, a roda da moenda reflete meditativa sua sobrevivência solitária. O bueiro, vestido de autoridade desautorizada, mantém-se como marco do que foi e nunca mais será. Os odores da garapa cozendo são tão fortes quanto o cheiro da “puxa”: mas resta apenas o almíscar do abandono sob o som da última lágrima do derradeiro senhor.
4. O casarão de José Rufino está lá, assentado à beira do precipício. Suas vetustas paredes, pestanas e ventosas, observam o vale de imensidão. Tenho certeza que vê os revoltosos de 1817, cansados, caminhando à margem do riacho, subindo até o início da Rua do Bonito. A senzala, o pátio, o tronco desaparecido, tudo carcomido pelo tempo. Se houve gritos, o chicote rasgando as carnes, ou se houve gemidos, os senhores se lambuzando no sexo violento, o chão de pedra e o éter acima os guardarão para sempre.
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Areia Paraíba Casarão José Rufino |
Mas esse Casarão nos fala loquazmente de severas lembranças. Um tempo de fausto e opulência, um tempo doce para os senhores, um tempo amaro para os sem nada. Sem nada pois suas vidas e até suas almas pertenciam aos primeiros. Parece, por pequenos indícios, que Areia, a Terra dos Bruxaxás, onde nasci, contraiu grande dívida secular, paga a cada dia com sangue e surpresas. Mas também parece que essa dívida não foi assinada pela raia miúda. As mãos do homem comum não assinaram o fatídico pacto.
Indiferente, como marco e marca desses tempos, o Casarão se assina carrancudo. Suas subdivisões, cômodos, escadas, assoalho, fogão, sótão, janelas e luminárias retiveram energias estranhas. Esse Casarão poderia ser mais alegre, ter mais vida, mais cor, mais canções. Adquiriu os ares e as faces de repartição pública.
Indiferente, como marco e marca desses tempos, o Casarão se assina carrancudo. Suas subdivisões, cômodos, escadas, assoalho, fogão, sótão, janelas e luminárias retiveram energias estranhas. Esse Casarão poderia ser mais alegre, ter mais vida, mais cor, mais canções. Adquiriu os ares e as faces de repartição pública.
À noite, me disseram, um cavaleiro apeia a sua porta, bate três vezes com a aldrava, ninguém lhe abre a pesadíssima madeira. Decepcionado, monta novamente em seu cavalo paramentado e risca em desabalado trote em direção a Pilões de Dentro. Deixa um risco de fogo e fumaça. Os moradores o observam pelas frestas dos postigos. Quando ele some no mundo, vão dormir em paz com seus pesadelos.
(Texto: professor doutor em Ciência da Literatura Aderaldo Luciano-Revista Kurumatá)
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