A noite é de São João. A história tece com a força da própria vida

Mês de junho! A última apresentação em vida de Luiz Gonzaga foi realizado em 6 de junho de 1989, no Teatro Guararapes do Centro de Convenções de Recife. Na oportunidade já cansado e muito doente Luiz Gonzaga chorou e pediu "prá não deixar o forró morrer".

Lembrei que estive em Exu, no período junino. Não vi os olhos raros que enxergam além dos que veem. Na terra onde nasceu Luiz Gonzaga, a mensagem não se fez ouvir.


Joquinha Gonzaga, neto de Januário e sobrinho do Luiz Gonzaga, lamenta a injustiça de em plena noite de São João não haver em Exu, Pernambuco, um forró pra lembrar o inventor do Baião, aquele que um dia deixou o seu pé de serra e embrenhou-se pelos emaranhados da busca e do sonho e que foi o começo de uma grande empreitada e de uma desafiadora lição de vida e vivência.

Mas a vida é realizada nos extremos. O  amor e o ódio. O real e o fantástico, a dor e o prazer, a amizade e a covardia, o breu da incerteza e a luminosidade da esperança, o medo e a ousadia, o erro e a redenção, o pecado e o perdão, a fé e a crendice, a tristeza e a festa.

Na Serra do Araripe, divisa com o Ceará, o passado ainda está presente, e o presente simboliza o futuro. Luiz Gonzaga vive!

Na fazenda Araripe um dos mais valiosos símbolos da obra e vida de Luiz Gonzaga, a família Alencar guarda construções que marcaram a vida de Luiz Gonzaga. A casa onde morou os pais do Rei do Baião, Januário e Santana, a igreja de São João Batista, a residência do Barão de Exu...a terra, o fogo, o ar e água tudo ali lembra Luiz Gonzaga.

Na Chácara Frei Damião, distante 26 km do Crato-Ceará, próximo a Exu, "Seu Cosme e dona Maria Cavalcante de Souza" entregam-se a essencia da alma e faz da noite junina um sentimento mais humano.

A família, amigos e vizinhos, medem palmo a palmo a vastidão do imaginário popular e desvendam a perfeição dos sonhos e anseios, a fé e as várias conquistas.

Na casa da família Cavalcante Souza havia mesa fartura de pamonha feita com manteiga da terra. A buchada e a cachaça, a galinha de capoeira. O milho, a rapadura e a fogueira, a manifestação plena da essencia humana e grandiosidade da noite de junho.

No alpendre da casa escuto a professora Antonia Ladislau de Sousa, no balançar da rede, contar fatos que são ao mesmo tempo belos e misteriosamente encantados. Professora Antonia me faz compreender as figuras humanas mais humanas, a criaturas belas, mais belas, a natureza das pegas de bois, as origens de Cocaci, os Inhamuns-Ceará.

Professora Antonia ao falar, os olhos faíscam de astros a escuridão da noite humana e se faz perceber entre vaga lumes e querubins a essência que reluz do que havia se perdido e ali encontrava as respostas para a própria razão de sonhar e viver.

Seu Cosme acompanhado de seu Zé Lira me levou ao sitio Salva Vidas. Nome sugestivo quando vi o povo a rezar a Novena de joelhos. Havia ali a Capela São Francisco e escutei histórias de muitos que vieram ao mundo pelas mãos da parteira do local.

Tudo isto me fez lembrar da profecia do professor, danado e cantador, quase vidente, Aderaldo Luciano quando diz que o Nordeste continuaria existindo caso Luiz Gonzaga não tivesse aterrissado nestas paisagens há mais de cem anos.

O Nordeste teria e seria o mesmo complexo de gentes e regiões. Comportaria os mesmos cenários de pedras e areias, plantas e rios, mares e florestas, caatingas e sertões.

Luiz Gonzaga, mais que ninguém, brindou-nos com uma moldura indelével, uma corrente sonora diferente, recheada de suspiros, ritmos coronários, estalidos metálicos. Luiz Gonzaga plantou a sanfona entre nós, estampou a zabumba em nossos corpos, trancafiou-nos dentro de um triângulo e imortalizou-nos no registro de sua voz.

Vi em Exu, Chácara Frei Damião, Sitio Salva Vidas, Crato, Vi galos anunciando o dia, sabiás acalentando as horas, acauãs premeditando as tristezas, assuns-pretos assobiando as dores, vens-vens prenunciando amores.

Enfim, compreendi que a história vem se tecendo com a força da própria vida. E por isto, disse o cantador Virgilio Siqueira: daí não ser possível guardar na própria alma a transbordante força de uma causa. Daí não ser possível retornar, afinal, a gente nem sabe ao certo se de fato partiu algum dia...

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