AUSÊNCIA DO MEU PAI ME FEZ DUAS MARIANAS

A ausência do meu pai me fez duas Marianas. Era um domingo, 22 de março. O sol se punha no Sertão sofrido, apenas três dias após os festejos do padroeiro da gente sertaneja, São José. Meu pai tinha me dado, há poucos minutos, as notícias de uma chuvarada boa que a Serrinha tinha recebido no dia 19.

 Prometeu canjica e pamonha do milho que ele mesmo havia plantado. Fazia plano, me perguntava da vida e questionava sobre a recém chegada pandemia que já estava nos obrigando a interromper os abraços e alongar as distâncias. Das tantas dúvidas, a certeza do amor prevalecia adubando a esperança de dias melhores. 

Minutos depois, o mesmo telefone tocava. Já não era sua voz. Eu perdia meu pai de um infarto, nos braços de minha mãe e no solo sagrado da sua história e da sua poesia: a Serrinha de São José do Egito. Foi questão de segundos. A mesma velocidade do seu repente inconfundível que lhe permitiu ser consagrado em vida como a metralhadora dos versos e uma das maiores expressões do Repente de todos os tempos. E isso não é apenas amor de filha: é constatação de quem continua a beber da fonte da cultura nordestina. 

Pelo arrojo, pelo timbre de voz inconfundível, pela melodiosa criação de versos que tão bem soube congregar arte, conteúdo e mensagem e a defesa intransigente da identidade do Nordeste e da cultura popular, Valdir se eternizou em tudo que fez muito antes de deixar a vida terrena. 

Aos 64 anos, 40 desses dedicados ao pinho, aos pés de parede, aos congressos de repentistas, ao povo. Uma vida inteira marcada pela superação do menino que ficou órfão aos 11 anos de idade e se tornou homem e arrimo de família desde então. Do matuto da pele queimada, de chapéu e óculos de grau que nasceu paraibano e se eternizou pernambucano nos ouvidos e nas almas de um Brasil inteiro, Painho deixa uma saudade silente e uma ausência sem par. 

Deixa também uma constatação: Onde chegou o repente, chegou a voz de Valdir. Foi um guerreiro das estradas, sem recuo de trabalho - era um aficionado pela viola, pelo aboio, pelas tradições mais legítimas da nossa pátria Nordeste. E como defensor e voz de cada uma dessas linguagens, se fez imenso em todas elas. Mas foi o verso de improviso ao som de viola que foi responsável por lhe eternizar nas páginas da arte e das memórias do Sertão e nos ouvidos do povo nordestino. 

Nesses dois anos de saudade todos os dias, recebemos as mais bonitas homenagens pela sua trajetória. Faltou calculadora para contabilizar os milhares de amigos e fãs espalhados Brasil a dentro.  Nesse mesmo período, precisei assistir a reinvenção de toda minha família e a minha, contornando os dias nebulosos de saudade e se agigantando na celebração e na gratidão que foi tê-lo entre nós. Sustentados na fé em Deus e no amor de Nossa Senhora seguimos tornando a saudade doce e não por isso, menos espinhosa.

Painho marcou a existência como um cometa de rara aparição. Simples, de poucas palavras, dono de humor fino e uma presença de espírito dentro de casa que fizeram de sua companhia algo festejado a todo instante. Tenho o privilégio de ser fruto da sua verve. Mas mais que isso, pude partilhar e dedicar 25 anos de minha existência à sua. Meu pai continua sendo em tudo que eu sou. 

Seu exemplo continua a arrastar meus passos. Dois anos de sua ausência é uma eternidade que me fez duas Marianas. Uma, no colo e na sombra do pai que seguindo os ensinamentos de D. Helder “ajudou no voo, sem jamais ousar tomar o lugar das asas”. Sem ele, até as minhas asas perderam o colorido e o impulso do voo. 

Minhas memórias invocam um tempo de amor sem medidas e de uma formação que me ajudou a crescer em criatividade e respeito. Foi lá em casa e com ele que aprendi a pensar e a divergir, a criar e a sonhar, a ser antes de ter.

A sua chegada em casa sempre foi festa, no céu não seria diferente. O céu em festa celebra dois anos de um cometa raro. A terra menor e mais triste escuta um baião de viola em preces e entrega a Deus o descanso de quem mesmo em vida, sempre foi muito mais do céu do que da terra.

Obrigada, Painho. Sua luz de tão firme e imensa continua a nos iluminar e apontar os nossos caminhos. Nos encontraremos em breve em um palco eterno, de aplausos sem pausa e de poesia sem fim.

*Mariana Teles-Advogada e poetisa

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