VEM VER O VENTO QUE É O VERSO DAS POETAS DO PAJEÚ

– Vamo?:

Se eu pudesse não via

um canário na prisão

É de cortar coração

quando ele canta mêo dia

Quando é de noite ele chia

sentindo o cheiro das pranta

Tempera sua garganta

canta sem tá com vontade

E pra matar a saudade

um passarin preso canta (Severina Branca, maio de 2019, em Mundo Novo)

Severina Branca (1945) nasceu pra explicar que o feminino de poeta só pode ser poesia. Com essa resposta como princípio, saímos em maio de 2019, acompanhadas de outras perguntas: O que faz do Pajeú um território tão associado à prática da poesia? Por que existe uma ode a ela no cotidiano? Como uma comunidade aprende a defender o valor de se ensinar poesia? Quando foi que a poesia surgiu no imaginário da população? Desde quando a poesia mora na rotina desta região? Como nascem tantos poetas em uma mesma geografia? São poetas as mães que gestam na barriga os poetas? Onde estão as poetas deste território marcado pela poesia? Com esse mapa de perguntas, iniciamos a trajetória do projeto As poetas do Pajeú, que vem se desenvolvendo ao longo dos últimos três anos.

QUEM PROCURA, ACHA: Nas livrarias, nas publicações, antologias e coletâneas de literatura pernambucana, nas mesas de glosas, na boca das pessoas, quando pedimos referências de poetas do Sertão do Pajeú: quase não encontramos mulheres. Dizemos que nossa inquietação nasce ao notar a escassez da presença, para dizer que sentíamos mesmo muita falta das poetas no palco da palavra do Pajeú.

A partir disso é que organizamos uma busca por rádio, carros de som, intervenções públicas com faixas, batendo na porta das casas das pessoas, conversando com professoras, no supermercado, por telefone, e-mail, no Instagram, no Facebook, no WhatsApp, de carro, percorrendo comunidades rurais e 17 cidades, além de outras ativações de uma equipe de cinco mulheres em imersão, com a contribuição de tantas outras, nessa busca.

Nosso ímpeto em empreender uma iniciativa que desse maior visibilidade às mulheres poetas do Sertão do Pajeú, considerando produções dos últimos 100 anos, configura, de fato, uma pesquisa audaciosa, que está em andamento ainda e que esperamos que continue para além dessa ação. Consideramos fundamental questionar o lugar ocupado pelas poetas no cenário do Sertão do Pajeú, assim como compreender a realidade social, as diferentes gerações, a diversidade de enunciações, de características temáticas, formais e o desenvolvimento da poesia nas modalidades falada ou escrita, por exemplo.

O projeto, que propõe uma fissura na suposta harmonia estabelecida no uso da nomenclatura poetisa frente ao vocábulo poeta, encara o ruído em experimentar diante da tradição como um traço inerente à natureza de nossa proposta. Reivindicando uma reestruturação da linguagem, uma reconfiguração do imaginário e do olhar, vivemos e registramos um sertão plural, verde, líquido, narrado por mulheres.

Dessa forma, contrapomos um sistema histórico e socialmente organizado que tende a inferiorizar e invisibilizar as mulheres através da narrativa de um sertão masculino, seco, árduo. Com o entendimento que a pesquisa possibilita não só a criação de uma narrativa focada na produção das poetas da região, mas também uma reflexão analítica que pretende confluir na palavra poeta, como termo que comporta a existência e produção poética das pessoas, sem enquadrá-las em binarismos, atitude que pode provocar debates, transformação e reordenação das estruturas de convivência.

Como se pode notar, no processo de pesquisa, houve cuidado para reunir estratégias de entrecruzamentos, encontros, contatos para podermos aprender sobre a poesia do Pajeú, reverberar esse patrimônio cultural e produzir conhecimento a partir dele com uma equipe formada exclusivamente por mulheres. A metodologia de investigação permitiu traçar dois caminhos para encontrar a poesia feita por mulheres no Pajeú, atentas à multiplicidade de manifestações do fazer poético: debruçamo-nos sobre material bibliográfico e transitamos tanto pelas cidades mais conhecidas como por estradinhas de terra de povoados de difícil acesso para encontrar vivências plurais.

Essa imersão no cotidiano do Pajeú nos presenteou com momentos de franca beleza, como escutar as irmãs do Sítio Serrinha – Maria de Lourdes, Maria Valderisa e Ana Maria – declamarem versos passados de geração em geração na família, escutar os poemas enquanto juntas debulhávamos feijão verde e víamos a feitura do queijo coalho. Registrar Jéssica Caitano, cantando junto ao pandeiro, na Cachoeira do Pinga, no sertão verde e fértil, nos alimentou com paisagens, situações, experiências poéticas,para além do Triunfo dos versos.

Da geração mais antiga de mulheres da zona rural de São José do Egito, fomos para a comunidade quilombola de Brejo de Dentro, em Carnaíba, ler e ouvir a jovem Beatriz Eduarda, que na sombra de um cajueiro também compartilhou seus afazeres e desejos de poeta, conectados às pisadas e ao ritmo do coco cultivados pelo pai, José Josinaldo, que fez questão de dançar e cantar um pouco de sua arte.

Vento de ventilador

Que não vence a maresia

Moleque dentro da rede

Fazendo “estripulia”

Gavião voando solto

Ou brigando com galinha

O matuto do sertão,

Feijão, arroz e farinha

A festa de fim de ano,

Conversa do dia a dia

A mãe, o pai, a criança,

Avó, cunhada e tia

Os “bebo” no meio da rua

Desafiando a polícia,

A melancia na rama,

Macaxeira com linguiça,

A pega de boi no mato

E reunião de família

Isso tudo e um pouco mais

É que faz a poesia!!! (Isso tudo e um pouco mais é que faz a poesia, Beatriz Eduarda, 2004)

Atravessamentos típicos do Pajeú, região que se conecta pelo rio, onde há um diálogo e interação intersemiótica entre as artes, o que podemos ver de forma bem potente nas rimas do rap-coco-cibernético de Jéssica Caitano, no teatro de Odília Nunes, nas canções e nos poemas que marcam as apresentações de As Severinas, banda composta por Isabelly Moreira, Marília Correia e Monique D’Angelo, por exemplo.

Essa efervescência artística que encontramos no Pajeú configura-se a partir da heterogeneidade que marca a relação particular de cada um dos 17 municípios pajeuzeiros com a experiência poética. Há inegavelmente um maior quantitativo de poetas em cidades como São José do Egito, Tabira e Afogados da Ingazeira, por exemplo; no entanto, houve um cuidado na organização do acervo de poemas em ter acesso às poetas de cidades que possuem um menor quantitativo populacional e também apresentam um número mais reduzido de poetas encontradas, como Flores, Solidão e Brejinho.

Configurou-se, portanto, como um dos objetivos do projeto trazer além de nomes já consolidados, como o de Bia Marinho e o de Beatriz Passos, os de poetas ainda pouco conhecidas dentro do território do Pajeú, ou até mesmo que nunca foram publicadas, ou recitadas, já que nesse contexto cultural a prática de oralizar publicamente a poesia é bem mais recorrente quando comparada à de publicar. Se, por um lado, o registro escrito permite essa possibilidade de apreensão do poema de outrora, por outro, o contato aprofundado com a poesia do Pajeú nos fez pensar que pode ser limitada a experiência de, algumas vezes, ler os versos em um livro ou em uma tela de computador, já que há um destaque à presença do corpo na construção de sentidos do fazer poético sertanejo, que delineia uma poesia pensada para um público que escuta, não apenas lê.

QUEM NÃO LÊ, LEMBRA: Antes de ser letra, a poesia do Pajeú é voz, distante de uma composição ou leitura silenciosa, ela chama a música até mesmo na arte de declamar, com um propósito de partilha, encontro público. Constatamos que as marcas da oralidade estão tanto nos poemas escritos quanto nos falados, seja através da rima, do ritmo, da escolha vocabular que remete à fala na modalidade escrita, seja a partir da entonação, da cadência, da ênfase sonora, das pausas marcando som e silêncio, nos gestos, na dramatização de uma poeta performando seu poema na modalidade falada da língua. Dessa forma, a oralidade é uma das características constitutivas da poesia do Pajeú.

Nesse sentido, trata-se de uma experiência absolutamente distinta escutar, por exemplo, Severina Branca dizer seus poemas e de uma forma única performar, com musicalidade e trabalho de voz específicos, agregando sentido ao oralizar as composições. Há uma vivência de corpo, de voz, de olhar, de boca e de ouvidos que exercitam a poesia ora memorizando para compartilhar ora escutando com atenção, revelando-se uma prática comunitária da habilidade poética. Como Severina, outras poetas da geração antiga, Rafaelzinha e Luzia Batista, por exemplo, configuram-se como artistas na tradição oral, cultivam essa poesia que pode ser percebida através da memória como artifício, ao produzir e reproduzir os versos sem apoio da escrita e com elaboração poética de excelência.

No entanto, a técnica de criar e registrar apenas na memória também está atravessada pela possibilidade do esquecimento, já que se trata de um material vivo e mutável que abrange o processo lacunoso da recordação, podendo promover adaptações, o que expõe ainda mais camadas da construção do conhecimento e da cultura com base na língua em sua modalidade falada. Nessa trama, demonstra-se a importância de incentivar agentes e trabalhos da memória cultural, ou seja, desenvolver empreendimentos que se respaldam em registrar em diversas mídias a produção oral para que ela permaneça ecoando nas gerações futuras. O projeto As poetas do Pajeú se alinha e fomenta essa perspectiva.

As poetas da poesia falada serviram-se das peculiaridades da modalidade da língua que dominavam e desenvolveram poesia, disseram e cantaram seus poemas, no caso de Severina Branca e Luzia Batista continuam reverberando seu fazer poético. Ao escutar os relatos das mulheres com mais idade, evidenciam-se as dificuldades da cultura patriarcal que fazia com que elas abandonassem as vivências artísticas por conta do casamento ou dos filhos, como nos testemunhou D. Luzia. Por isso, provavelmente, há um número limitado de registros em mídias escritas ou audiovisuais das poetas não letradas, já que seria mais curto o tempo que desfrutavam como poetas. Ademais, constata-se, ontem e hoje, o preconceito que acaba subvalorizando e tratando com demérito essas valiosas contribuições artísticas da oralidade.

Em relação a essa situação, essas produções culturais que vêm de uma contínua reverberação a partir do contato entre as gerações enquanto manifestação oral estão recebendo possibilidades de registro em artefatos da memória cultural, tanto através de iniciativas audiovisuais quanto de publicações literárias.

Por exemplo, D. Luzia Batista, que fez sucesso em sua juventude nos anos 1970 e 1980, nos improvisos das cantorias, mas só aos 66 anos publicou seu primeiro livro, a partir da iniciativa de Isabelly Moreira e Vinícius Gregório de organizar sua produção poética. Também no que se refere às poetas da escrita, há o livro póstumo de Clene Valadares que está no prelo, editado por sua filha Anaíra Mahin.

Empreendimentos como esses se assemelham aos anseios do projeto As poetas do Pajeú, pois permitem uma política da memória contra o apagamento, o esquecimento de poetas que ainda não obtiveram o devido reconhecimento público e podem não ter registros de sua poesia em mídias da recordação. Diante dessa constatação, o projeto pretende disponibilizar o acesso ao acervo construído durante a pesquisa a partir de um arquivo rizomático, em uma pluralidade de mídias – poemas escritos, em áudios e em vídeos – exatamente por entender o caráter plural do Pajeú.

Nessa trilha, precisamos enfatizar outra camada da poesia do Pajeú que está relacionada a uma poesia da oralidade: as mesas de glosas e as cantorias. Populares e prestigiosos são esses encontros de poetas, redutos tradicionalmente pouco ocupados pelas mulheres. Ainda assim, na antiga geração, Anita Catota e Luzia Batista fizeram sucesso nesse cenário.

Por outro lado, a nova geração de mulheres que desenvolve o improviso nas mesas de glosas já conjuga a espontaneidade dos versos articulados em poucos minutos e com motes compartilhados com a experiência da escrita, sobretudo, em coletâneas regionais e nacionais, como é o caso de Francisca Araújo, Dayane Rocha, Elenilda Amaral, Erivoneide Amaral e Milene Augusto.

Observamos que o desejo pelo exercício da poesia elaborada em uma comunicação poética engendrada no “aqui e agora”, no improviso e na fala, não está associado intimamente a ser ou não letrada, senão a uma mais complexa tradição poética compartilhada através da experiência oral e de partilha pública da comunidade. Traços esses que podemos encontrar como ecos em manifestações poéticas que acontecem em diferentes países e culturas, através das batalhas de improviso do rap e do slam, por exemplo.

EM TODO CANTO HÁ UM MUNDO NOVO

Quis fugir do conforto do meu ninho,

Engasguei no silêncio dos meus lábios,

Pois só vi, nas lonjuras do caminho,

Passos tolos buscando rumos sábios.

Voltei sem explicar essa magia...

Pois só sei contemplar a Poesia

Sendo ela que em tudo me completa,

Entre tantas razões, por ser perfeita...

E, pra tentar desvendar do que foi feita,

Sonhos às vezes, meu Deus, que sou Poeta! (Trecho de poema de Francisca Araújo, 1995)

Quando pensamos o local e o global, os desdobramentos se multiplicam em distintas gradações e caminhos. Assim, podemos notar uma articulação da tradição poética da região com novas formas de produzir, divulgar, apreender poesia, conjugando as características locais com perspectivas nacionais e globais do cenário literário, dissolvendo barreiras, promovendo contatos e se espalhando pelo mundo.

Atualmente, essa característica parece estar mais evidente, embora poetas como Clene Valadares já apresentassem traços rizomáticos e multiculturais, ao produzir poemas em inglês sobre experiências em diversos países. Junto a ela e mantendo a poesia como tradição de família – outra característica do Pajeú –, a sua filha Anaíra Mahin também explora a subjetividade em relação a um território familiar, marcando o encontro entre mãe e filha através de uma casa-ruína e de um país no desamparo.

Na minha casa brotou uma mata

Os espíritos de ferrão defendem a ruína

Por toda parte há estilhaço

Como se a casa estivesse nas entranhas

me habita uma borboleta de madeira com cheiro de chuva

Ouço dentro o som da panela que ampara essa goteira antiga

Ouço a louça frágil

como uma guerra que findou

sem socorro

Com os olhos secos

a vista traga mormaço

O vento cisca as telhas

Esfrego as janelas

A casa assim é palavra ao avesso (Anaíra Mahin, 1986)

Como evidenciamos na pesquisa e podemos ver nesta reflexão crítica, a produção das poetas do Pajeú está fortemente ligada às práticas da tradição oral, seja na poesia de bancada (das poetas que não improvisam), seja na das mesas de glosas, ambas poetas costumam dizer, declamar, performar seus poemas. Há uma variedade formal, ainda que se cultivem muito as formas fixas, com versos e estrofes metrificados, a presença do soneto se destaca, nesse sentido, junto aos poemas de verso livre, mais exercitados pela nova geração quando comparada com as gerações anteriores.

Quanto às temáticas, as poetas meditam sobre um universo complexo, sobre uma infinidade de assuntos, por exemplo: a própria vida, no sentido filosófico de poemas ontológicos de Carmen Pedrosa, Dulce Lima e Maria Cinthia Pio; a paisagem e o território na poesia de Elenilda Amaral, Verônica Sobral e Rafaelzinha; as particularidades da mulher nos poemas de gozo e maternidade de Dayane Rocha; a sociedade e a política nos versos de Celeste Vidal e Maria Samara; a metalinguagem presente na poesia de Thaynnara Queiroz. Essas constituem um pequeno panorama para citar alguns nomes do amplo universo poético das mulheres do sertão do Pajeú, que também tratam de amor, desilusão e saudade, dentre tantos outros aspectos da existência.

I

Quando é de manhãzinha

No tempo da trovoada

Canta alegre a passarada

Lá nas matas da serrinha

Vê-se logo a andorinha

Voando sem direção

Quando vê preparação

Muito cedo se levanta

Toda passarada canta

Quando chove no Sertão

II

Nem bem amanhece o dia

O xexeú se acorda cedo

Canta lá no arvoredo

Sua linda melodia

O concriz com alegria

Também faz sua canção

O bacurau pelo chão

Pulando de planta em planta

Toda passarada canta

Quando chove no Sertão

III

Canta o “galo-de-campina”

Canário e salta-caminho

Canta todo passarinho

Quando vê uma neblina

Todo pássaro faz buzina

Quando a chuva cai no chão

Lá na lagoa o carão

Prepara sua garganta

Toda passarada canta

Quando chove no sertão

IV

A jaçanã na lagoa

Vai logo se sacudindo

Quando a chuva vai caindo

Ela acha ser uma boa

Toda passarada voa

Causando admiração

Até mesmo o mergulhão

Dentro d’água se levanta

Toda passarada canta

Quando chove no Sertão (Efigência Sampaio de Lima Bezerra, 1935-1999)

*TEXTO MARIANA DE MATOS, ROSE LIMA, THAYS ALBUQUERQUE E UILMA QUEIROZ-REVISTA CONTINENTE 2018

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