As histórias dessas cidades haverão de ser contadas e anotadas, revistas e ampliadas, selecionadas e inventadas por homens e mulheres que contam ou narram suas próprias histórias. Seus olhos e corpos são feridos e marcados pela luz e pelas trevas, pelo fogo e pelo gelo de seus próprios pelos. Dessa forma, no abissal ano de 1862, uma peste colérica varreu a cidade, dizimou centenas e arrastou outras centenas para o desespero. Semelhante a hoje, quando nos trancafiamos em nossos muros e tetos, abertas apenas as janelas tecnológicas, assim foram aqueles dias, relembrados por Antonio Borges, em sua sala na capital.
Talvez você queira começar a ler essas Narrativas de Areia por A Entrevista, cujo personagem síntese citei no final do parágrafo anterior. Ou talvez você já tenha iniciado a leitura e nem saiba enquanto está lendo esta nota introdutória, em sua primeira frase. Veja: há alguns anos, 1999, no auge de minhas dores mais densas, Janaína Azevedo publicava o seu livro-labirinto Marias. Aquele não era um livro de estreia, era um livro abre-alas. Compreendíamos a reunião de contos como o resultado de algum caminho já percorrido, de alguma estância existente, de uma cidade de letras que se rompia em vida, de um barracão-ateliê onde os maçaricos trabalharam com dedicação extrema.
Mesmo que você tenha lido Orquídea de Cicuta, vou repetir-lhe a máxima: ninguém deve morrer levando consigo uma história. É um imperativo da humanidade contá-las, revelá-las, introduzi-las de volta no ouvido e nos óculos dos vivos, mesmo que nas casas onde sejam lidas ou ouvidas existam mais meninos que esperança. Aliás a esperança é uma luz regente nos leitores. Enquanto eu-menino nutro minhas esperanças no texto de Janaína, assenhoro-me do seu destino de autora afinada, afiada e pronta, no auge da maturidade, carregando o peso da leveza, o fardo recheado de ilusionismos reais.
Não sei se vocês já observaram o vento assoviando onde quer e como quer. Atravessa a mata, não escolhe abrigo, desata-se na chã, redemoinha-se nas tocas, levanta as saias, descobre telhados, surrupia chapéus, faz chover de lado, arranca árvores, soterra monumentos, balança a corda da forca, fere a pele do rosto, assanha os cabelos, espalha papéis, arremessa pássaros, confecciona os argueiros, varre as narrativas, molda a areia. Não há um só homem, nem um só amor, nenhuma distância, qualquer presença ou ausência insensíveis ao vento frio. Mas Janaína o doma. Janaína o aprisiona, magia e aplicação, no timbre de sua letra, no seu espectro vogal.
As duas partes de suas Narrativas de Areia não foram apartadas pela ventania. Foram construídas, primeiro com a compra de uma casa até a demolição de outra. Depois com a reunião das almas mortas e a fera manifesta rompendo a geografia acidentada da cidade, revelando seu corpo feminino e uma cabeça de medusa para tantas significações. O caminho de Janaína tem sido o caminho da fera. Escrever e observar, deixar-se habitar no casario da tradição, observando sua demolição e reinvenção, ler e aprofundar-se na com-tradição histórica de um povoado que se sonhou metrópole e se acordou arrabalde.
Depois de reler a obra de Janaína Azevedo, desde aquele já citado Marias, premiado e santo, até este que aqui se sopra, fica-me a certeza mais geral: passou da hora de agradecer-lhe a existência. A única letra acesa na noite brejeira, a última bela face no papel dos desterrados, como eu. Parece-me que há um grande circo armado, debaixo do qual um padre sem batina reza a missa do galo. E uma noiva dispara num choro sem fim, testemunhando as melhores histórias que se pode contar no mundo. Obrigado, Janaína, pela grandeza de reunir aqui a areia que o vento carregou vestida de poeira.
Aderaldo Luciano-Rio de Janeiro, pandemia do novo coronavírus, 2020
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