LUIZ GONZAGA, ALMA MUSICAL DO BRASIL

Eu tinha umas asas brancas, asas que um anjo me deu, que, em me eu cansando da terra, batia-as e voava ao céu". *Almeida Garrett

Luiz Gonzaga não precisou, como Almeida Garrett, que um anjo lhe desse asas. Ele confeccionou sua própria Asa Branca e com ela fez uma ponte entre" a Terra e a eternidade.

Voou para o céu. E lá, a esta altura, já deve ter localizado o Nordeste do infinito, substituindo as harpas por sanfonas nos coros celestiais, hinos novos de louvor a Deus.

Pernambucano? Nordestino? Ou simplesmente brasileiro? De ponta a ponta o ,Brasil se orgulha de seu filho e o inclui entre os gênios que melhor souberam interpretar e traduzir sua alma. O País todo chorou sua morte e exaltou sua glória. Brasileiro de Pernambuco - Estado que ouviu seu primeiro balido e lhe absorveu o último suspiro -, Luiz Gonzaga é intrinsecamente telúrico. 

Grandes cantores e compositores nordestinos, que ganharam fama além-fronteiras, ficaram contidos ao círculo de sua vivência. Caymi, tão perto do mar, e toda uma geração dos chamados "baianos" são exemplos.

Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, foi o nordeste universalizado. Cantou o mar, a caatinga, a mata e o sertão com a mesma força telúrica. A música teluricamente nordestina de Luiz Gonzaga, antecipadamente precursora da música popular brasileira, é assim algo que, embora não possa ser entendida como música engajada, "uma denúncia de protesto"; é, contudo, politicamente comprometidacom a busca da solução regional nordestina, com o perseguir para o nosso País de um desenvolvimento nacional mais homogêneo - sem distorções; mais orgânico, menos injusto. portanto.

Pois é evidente que se quiseRnos resolver a questão do desenvolvimento do País, precisamos encontrar respostas para os desafios regionais.

O Brasil não é um só, singular; é múltiplo, multirregional. "A unidade brasileira", lembra Gilberto Freyre, é do que se nutre para ser O espantoso fenômeno sócio-ecológico que é: da diversidade de regiões do Brasil no plural que se interpenetram. completando-se no Brasil, no Brasil singular".

Gonzaga era um telúrico sem ser provinciano, pois o telurismo é manter-se preso às circunstâncias locais sem perder a visão das questões nacionais ou até internacionais. Tampouco se pode confundir telurismo, regionalismo com separatismo, pois isso seria negar a grande aspiração à unidade nacional que pressupõe a integração inter-regional.

Luiz Gonzaga, que cantou as alegrias e o sofrimento de sua gente, em ritmos até então desconhecidos, tinha exata consciência de que "o homem nasce para a sociedade e tem deveres para com os seus semelliantes", como entendeu outro visionário da causa regional, Frei Joaquim do Amor Divino Caneca.

Sua sensibilidade para com os problemas sociais era enorne, sobretudo nas músicas em parceria com Zé Dantas. A sua música, se não pode ser classificada como "de protesto", é prenhe de inconformismo, do abandono a que ainda hoje está sujeita pelo menos um terço da população brasileira mormente a que vive no chamado semi-árido, para usar expressão redescoberta pelos tecnocratas, ou no polígono das secas, no jargão do legislador.

Por isso não estaria exagerando se dissesse que, embora Gonzaga não tivesse militantemente exercido atividade política ou partidária, foi um político na ampla acepção do termo. Política bem  o sabemos, é a realização de objetivos coletivos e não se efetua apenas através dos partidos políticos ou, sequer, através do exercício de cargos póblicos, que ele nunca os teve.

Política, dilucida com propriedade Alceu de Amoroso Lima, é saber, virtude e arte do bem comum.

Não foi graças a sua voz que o drama nordestino, especialmente das secas e estiagens, adquiriu uma consciência nacional e transfornou-se em questão a exigir atenção e atuação do poder central?

A seca. como é notório, não é um fenômeno novo, mas, recorde-se, a música de Gonzaga ajuda a convertê-la em desafio para os governantes.

Bem antes dele, Euclides da Cunha, no início do século, enfatizara:

"As secas do extremo norte delatam, impressionadoramente, a nossa imprevidencia, embora sejam o único fato de toda a nossa vida nacional ao qual se possa aplicar o princípio da previsão."

E prossegue:Faz-se mister que este problema urgentíssimo, as secas, seja um motivo para que demos maior impulso a uma tarefa, que é o mais belo ideal da nossa engenharia neste século: a defInição exata e o dominio franco da grande base física da nossa nacionalidade."

Não foi diferente o reclamo de outro nordestino como Gonzaga, esse o único a chegar à Presidência da República pelo voto direto - Epitácio Pessoa. que diz em histórico discurso, em

São Paulo:.....Penetaí naquela fornalha ardente; lançai as vistas sobre aqueles campos calcinados onde as plantações desapareceram de todo. onde a vegetação feneceu e mirrou, e os bebedouros se ressequiram, sob a centelha comburente do sol impiedoso; ide e percorrei aqueles chapadões intérminos, onde o silêncio apavorante das quebradas apenas interrompe de longe em longe pelo mugido desesperado do gado sequioso e faminto..."

E concluía:

..... Dizei depois se se trata de questão que interessa apenas ao Nordeste ou se, pelo contrário, não se trata de problema eminentemente nacional."

Gonzaga interpretou o sofrimento e também as poucas alegrias - de sua gente emquase duzentas canções, em ritmos até então desconhecidos; além do baião, o forRÓ, as marchinhas juninas, o xaxado e tantos outros.

Mas através de Asa Branca - não há ódio ou mágoa, a sua Asa era a pomba branca da paz -, Gonzaga elevou à condição de epopéia a questão nordestina.

Tal a importância dessa música, ela se converteu em símbolo da região inteira. Certa feita Gilberto Freyre disse que o frevo "Vassourinhas", que parece estar nos glóbulos do sangue pernambucano, era nossa "Marselhesa". Que dizer da Asa Branca? Não será o Hino

do Nordeste?

Convivi, Deus me deu esta ventura, com Luiz Gonzaga. Fui seu amigo, observei sua permanente preocupação com a sorte de sua terra e sua gente. O Nordeste de modo geral; o sertão de modo particular, sua Exu, especialmente.

Efetuei, como governante, um amplo projeto integrado de melhoria do semi-áridopernambucano que compreendia ações no plano de perenização dos rios, eletrificação rural, estradas, inclusive vicinais, crédito rural, assistência à agropecuária , a que dei o nome de "Asa Branca".

Ele reconhecidamente me retribuiu a justa homenagem, acompanhando-me na mobilização  popular necessária à execução do projeto.

Talvez por isso muito me distinguisse, sempre afetuosamente como por exemplo

ao chamar-me de "patrão". Ele mesmo em entrevista à revista Veja disse certa feita: "Sou como vaqueiro de coronel. Você pergunta em quem vai votar e eu respondo: no patrão, em quem o patrão mandar. Eu tenho o meu patrão, que se chama Marco Maciel".

Outro aspecto político, posso também dizer, da presença de Gonzaga reside no resgate da música popular brasileira.

O vigor de suas melodias tonificou a nossa música, retirando-a do empobrecimento cultural que atravessava há cerca de quarenta anos atrás. Não podia o Brasil, com tanta riqueza musical, deixar-se agredir e violentar com modelos exóticos, xerocando música e importando padrões sem vinculação com as nossas coisas, desconhecendo a capacidade critica de nossa gente.

Hoje, os críticos asseveram que o velho ··Lua"além de inventar tantos ritmos brasileiros e nordestinos, foi o precursor do rock'n roll. Essa é, por exemplo, a opinião , estampada na Folha de S. Paulo do mês passado:

"Luiz Gonzaga antecipou em 10 anos no Brasil o forró nos anos 40. A questão não é rítmica neste quesito o forró tem mais similaridade como reggae. Trata-se da dinâmica que ele imprimiu à sanfona, os acordes simples e estruturas repetitivas. 

Luiz Gonzaga criou um ritmo próprio para a dança, tal qual o rock.

Não é à·toa que o ritmo faça tanto sucesso hoje no Nordeste quanto Madonna no resto do mundo. Quem ouve Gonzaga não precisa de Madonna".

Não é diferente o parecer de José Ramos Tinhorão também cientista e historiador ao opinar em O Estado de S. Paulo: "No Brasil, existem poucos·criadores. Luiz Gonzaga foi um criador'. Teve, portanto, a sua músÍca um viés nacionalista, ou melhor, brasileiríssimo - que impediu lavrasse um processo deperda de nossa identidade cultural. Não foi também essa uma contribuição, insisto, de natureza política que o rei do Baião quase imperceptível nos legou?

Não foi uma música teluricamente nordestina, apenas, mas o foi assim genuinamente nacional, posto que de defesa de nossas tradições e evocação de nossos valores.

Isso ajuda a explicar, como afirma Herminio Carvalho, o fato de não se conhecer "outro artista DO Brasil que tenha criado tantos filhos musicais quanto os que ele gerou".

Gonzaga, rei do baião, ao lado de Padre Cícero, Antonio Conselheiro, o de Canudos, Lampião, outro rei do Cangaço, embora AnibaI Torres conhecido por Ascenso Ferreira, fez crescer o rico acervo cultural popular nordestino: primitivo, porém extremamente denso; simples, rustico, mas autêntico.

Através de sua obra ele está vivo e vive no sertão, no pampa, na cidade grande, na boca do povo, no gemer da sanfona, no coração e na alma da gente brasileira.

Pois ele nos legou através da música a sua mensagem, e, diz Fernando Pessoa, que quem morrendo "deixa escrito um belo verso, deixou mais ricos os céus e a terra, e mais emotivamente misteriosa a razão de haver estrelas e gente".  (Discurso Marco Maciel-Setembro 1989)


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