Eliane Brum: O Adeus de Ana das Carrancas a Zé Vicente (2008)

Fonte: Jornal Zero Hora- Eliane Brum, com fotos de Denise Adams-2008)

Denise Adams
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Ana Leopoldina Santos Lima era o nome dela. Isso muito antes de o barro moldar seu destino lhe dando por amor um homem que não tinha olhos para enxergá-la. Os monstros gerados pelas mãos de Ana eram cegos como o companheiro de sua vida. Com um golpe rápido, certeiro, ela vazava os olhos de suas criaturas com a ponta de um pedaço de pau. Com Ana era assim, a desgraça virava épico. Ao morrer, na quarta-feira passada (1º/10), aos 85 anos, a maior carranqueira do São Francisco voltou ao barro que a fez. E deixou Zé dos Barros, pela primeira vez, na escuridão.
Ela era uma mulher de solenidades. Não falava, entoava. “Minha vida é extensa...”, era a frase com que iniciava a narrativa. Analfabeta, fazia literatura pela boca. E mesmo limitada por uma seqüência de derrames, parte dos dedos com que tocava a lama do mundo paralisados, Ana era grande. Carregava nos gestos uma largura de alma. E o rio era seu espelho em mais de um sentido. A mulher que moldava o barro do chão só pisava o reflexo do céu. 

Ana das Carrancas costumava dizer que sua arte era a síntese de seu amor por um cego que via o mundo mas não era visto por ele. Entre ela e Zé dos Barros nunca se soube quem era criador, quem era criatura. Ela já veio ao mundo retirante, na cidade pernambucana de Ouricuri. Mas diferente de quase todos, nunca lamentou a terra estéril sob seus pés. A estirpe de mulheres da qual era continuidade moldava pratos, panelas, vasos. Ana aprendeu com a mãe, e antes dela a avó, que do barro se arranca tudo, até a vida.
Uns poucos anos depois dela, José Vicente de Barros nasceu em Jenipapo, outro canto sertanejo. Desembarcou na vida sem olhos, por culpa do amor incestuoso entre primo-irmãos. Desde cedo a ele ensinaram que “quando Deus faz uma criança sem vista é porque quer que ela sobreviva como pedinte”. Para se localizar na escuridão, desde menino ele balançava a cabeça. E nesse de lá pra cá, de cá pra lá, encontrava equilíbrio mesmo nas trevas.
Ana e Zé só cruzaram seus pés descalços quase trinta anos mais tarde. Ana tornara-se viúva desde que seu marido despencara de um pau-de-arara. Conheceu Zé pedindo esmolas na feira de Picos. Ele balançava guizos, cantava cantigas. Mas era um cego desaforado por anos ouvindo os meninos mangando dele, pegando nele. Ana, não. Era resignada, como costumam ser as mulheres com fome e filhos para dar de comer. Ana dava comida a Zé sem que ele precisasse implorar.
Como Zé acreditava que homem sem olhos não tinha direito à mulher, Ana precisou criar ela mesma o enredo de seu romance. Era uma Sexta-Feira da Paixão, tempo prenhe de possibilidades, já que até Cristo ressuscitaria em seguida. Ana aproveitou-se da data e aconselhou a Zé: “Peça uma esposa no modelo de Nossa Senhora. Uma que seja mãe e mulher”. Zé não entendeu bem, mas não quis discutir com amiga tão prestativa. Por três vezes clamou, como manda a tradição: “Minha virgem Nossa Senhora, vosso bento filho ressuscitou agora. Eu quero que me dê uma esposa no vosso modelo. Mãe e mulher”. 

Nem assim Zé compreendeu. Oito dias depois pediu a irmã de Ana em casamento. Mesmo sendo “moça-velha”, a escolhida renegou. “Se eu quisesse casar, teria casado com um de vista. Não quero saber de homem que balança a cabeça”, recusou a eleita. Ferida de morte, Ana sentenciou: “Não se orgulhe, minha irmã, que cego não é demônio. Cego é humano como qualquer cristão”. Desta vez, Zé despertou. Pediu a moça certa em matrimônio. E passaram a dividir teto e misérias: Ana na feira, Zé nos guizos.
Um dia a vizinha abordou Ana na rua. “Desenteirei açúcar do meu filho para dar esmola a Zé”, queixou-se. O rosto de Ana queimou de vergonha. Tirou uma nota do bolso e retrucou: “Enteire de novo o açúcar do seu filho. Por Zé ele não vai passar fome”. Naquela noite não dormiu. Sua tristeza não coube na rede que dividia com Zé. Quando acordou, chamou o marido e anunciou: “Meu velho, nunca lhe fiz um pedido. Mas hoje lhe peço. De agora em diante, você não vai mais pedir esmola". Assustado, Zé rebateu: “Deus me fez sem vista para que eu pedisse esmola”. Ana fincou pé: “De hoje em diante sua vista é a minha. Você pisa o barro, eu faço a peça. Nós vamos levar para a feira, nós vamos ser felizes”.
Ana pegou a enxada e caminhou até as margens do São Francisco, em Petrolina. Diante da fartura de líquidos, invocou o espírito do rio: “Meu grande Nosso Senhor São Francisco. Pelo poder que ostenta, pelas águas que estão correndo, do próprio barro melhore a nossa vida”. Ao terminar, juntou um bolo de lama e fez, sem que até hoje saiba como, a primeira carranca. Começou levando na feira, suportando calada riso e maldades. “É tão feia quanto a dona”, cutucavam. No dia seguinte, em vez de uma, Ana levava duas. Até que caiu nas graças dos turistas e dos ricos da cidade e, de lá, suas obras ganharam o mundo. Ela então deixou de ser Ana do Cego e virou Ana das Carrancas. E ele virou Zé dos Barros.
Denise Adams
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As carrancas de Ana são diferentes de todas as outras que, desde o final do século XIX, apontaram a face horrenda na proa das barcas do São Francisco. A maioria dos carranqueiros célebres esculpe em madeira, Ana, em barro. Mas a maior singularidade são mesmo os olhos vazados do seu monstro. São eles que dão a expressão melancólica, contendo mais sofrimento do que ameaça, à obra de Ana. É do feminino que Ana tira sua carranca dilacerada diante da dor do mundo.
“Os olhos vazados da carranca são uma homenagem a ele. O Zé pisa o barro, prepara o bolo, faz a forma no pensamento. Eu moldo. Furo o nariz, as orelhas. Então, toco um pedaço de pau bem feitinho no olho”, me contou ela, anos atrás. “Não me sinto bem furando os olhos. Furo com pena, com dor. É como estar judiando dele. Porque todas são ele. Então, digo: '‘Olha, meu velho, homenagem a Zé Vicente de Barros'. Fico aliviada, porque lembro que faço por amor a ele." Sacudindo a cabeça para lá e para cá, Zé dos Barros concluía: “Eu era um bicho. Virei gente. Esta mulher me fez”.
Os traços deformados das carrancas de Ana expressam, pelo avesso, a perfeição de seu amor. É este sentimento avassalador que tomava conta de Ana, anos atrás, quando ela começou a pressentir que o fio de sua vida atingia seu cumprimento. “O barro é como gente. Tem o barro ruim e o barro bom. E até o barro regular. Conhecendo o barro se conhece o mundo”, sussurrava ela. “O barro é o começo e o fim de tudo. Sem ele não sou ninguém. Foi ele que me deu o direito. Não me separo dele pra coisa nenhuma, porque eu amo aquilo que ama a mim. O barro é um caco de mim.”
As lágrimas abriam então sulcos em sua face. Por um momento, ela assemelhava-se à sua criação. Movia o rosto em direção a Zé, que não a via com os olhos, mas era o único a abarcá-la por completo. Ana então dizia: “Não estou pedindo a morte. Mas quando eu me for, qualquer pedacinho de orelha, nariz ou olho é lembrança dele. E de mim”. 
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