Seu Domingos é grande demais para um filme. Até que
ele partisse, em 2013, aos 72 anos, havia dado dois passos à frente no xaxado
de Luiz Gonzaga. Se o Rei do Baião levou o sertão nas costas para que um País
inteiro conhecesse, Dominguinhos fez com que cada homem, nascido no canto que
fosse, encontrasse o sertão que havia no próprio peito. Antes de começar a luta
contra o câncer que o submeteria a uma injustiça do destino vivida em um quarto
do Hospital Sírio Libanês, convalescendo na dor física e da alma que sofria sob
desavenças de familiares, Domingos recebeu uma equipe de jovens cineastas.
Estavam ali para colocar a água do Rio São Francisco em uma garrafa. Ou, se
fosse preciso, em duas.
Mariana Aydar, Duani e Eduardo Nazarian, associados à produtora bigBonsai,
começaram levando Domingos ao estúdio, marcando encontros com gente grande.
Fizeram isso com Gil, Djavan, Hermeto Pascoal, João Donato, Lenine, Hamilton de
Holanda, Elba Ramalho e Orquestra Jazz Sinfônica. O universo se expandia.
Ao lado de Hermeto, Domingos sorriu. Estavam em uma
tarde de muita inspiração, tocando um alucinante Tico Tico no Fubá, quando o
albino soltou seu instrumento no chão do estúdio. Com uma voz embargada de
felicidade, Hermeto falou: "Eu soltei a escaleta porque a bichinha tava
querendo dançar". Havia dito antes algo sobre ensaiar. "Se combinar,
fica igual futebol. A seleção combina e não joga nada." E mais alguma
coisa de Dominguinhos: "Ele consegue viver neste mundo dizendo sim."
Ao lado de Djavan, Domingos chorou. Estava
visivelmente abatido pela doença, mais magro do que em outras cenas, e parecia
sentir as próprias notas em dobro. Ali, foi dureza. Havia as vozes de Djavan e
de Mayra Andrade na belíssima toada Retrato da Vida, mais o violão de Yamandú
Costa e o bandolim de Hamilton de Holanda. Seu Domingos tirou a água dos olhos
e pediu a Djavan um favor com uma humildade de estraçalhar os técnicos do
estúdio. "Se você tivesse trazido seu violão, eu ia pedir pra tocar uma
música pra mim." Djavan não tinha violão, mas Yamandú deu um jeito. E a
música foi Rota do Indivíduo, só com voz e cordas de nylon, ouvida em um
silêncio de oração.
O São Francisco transbordou e os produtores,
amparados pelo patrocínio da empresa Natura, perceberam que Dominguinhos
precisava de mais. O que seria um filme ganhou formato de websérie e o nome de
Domingos +. Dividida em oito capítulos, foi abrigada no site da patrocinadora e
uma nova aventura começou. Agora com imagens de arquivo, incluindo
apresentações em programas de TV e em shows pouco conhecidos, um longa começou
a tentar dar conta do recado. A partir de hoje, algumas salas de cinema de São
Paulo exibem um documento histórico.
Não há som nenhum no sertão de Dominguinhos. Um
pião gira no chão de terra até que aparecem os primeiros ruídos. Um boiadeiro
canta, uma ave bate as asas. O pião retorna. É uma imensidão de sol e silêncio
que abrem o documentário sobre Dominguinhos. Uma solidão que ficou com ele até
o final da vida, estivesse na festa dos vitoriosos que levam prêmios Grammy
para casa e na colheita do feijão com o pai, nas terras de Garanhuns.
Quando a música aparece, ela vem em turbilhão. Um
Dominguinhos de cabeça baixa, de pé, à frente de um grupo, tocando sua sanfona
como se estivesse em transe. De olhos fechados, transpassa dedos uns sobre os
outros como se tivessem vida própria, como se nem dos comandos do cérebro
precisassem.
É o próprio músico quem narra sua história. Seu Domingos fala do pai que já tocava na roça, lembra de sua sanfoninha de 8 baixos e do primeiro grupo que formou com dois irmãos no Nordeste, quando tinha 8 anos. Conta das brincadeiras e dos passatempos. "Eu não matava nem passarinho, por pena." A mãe, alagoana filha de índios como o pai, teve 16 filhos, muitos dos quais "iam morrendo" e sendo enterrados em caixõezinhos que o pai já construía como um especialista.
Seu Luiz, Luiz Gonzaga, já era rei quando viu o
menino pelos anos de 1946, 1947. Como fazia quando apostava em um pirralho com
jeito de gente, deu a ele 300 mil réis e sua bênção. "Passamos três ou
quatro meses com esse dinheiro", lembra Domingos. Logo, é Domingos, pouco
tempo depois de aposentar o apelido Nenê, quem está acompanhando o próprio
Gonzaga. "O caminho de todo sanfoneiro era Luiz Gonzaga, não tinha
outro." Dominguinhos o segue no sucesso, e aparece em programas de TV
desafiando o mestre nas mãos e nos pés, com um duelo de xaxado.
O sanfoneiro chega ao Rio de Janeiro de Garanhuns depois de uma saga de 11 dias na carroça de um caminhão. Já estava a mil com a primeira formação do Trio Nordestino quando recebeu um telegrama da morena Janete. "Venha pra casar, eu tô grávida." Aos 17 anos, Domingos virava pai de família. E seu padrinho tinha que ser Luiz Gonzaga.
Seu Luiz recebeu o sanfoneiro em casa sem saber do
assunto. "Eu queria que o senhor fosse meu padrinho de casamento." Só
quem viu Gonzaga fora do eixo pode descrever o que era aquilo. O homem bravo
era o cão, virava o desafeto do avesso e botava até Lampião pra correr. Foi o
que aconteceu com Dominguinhos. "Se mande, vá-se embora, cabra safado. Com
17 anos vai casar? Você não existe mais pra mim." Depois de cinco dias, o
telefone de Domingos tocou. Era o futuro compadre. "Eu quero ser o seu
padrinho."
A história segue na voz do sanfoneiro e nas imagens de encontros em estúdios, alguns dos quais aproveitados de registros para a da websérie feita antes do documentário. Nana Caymmi não consegue cantar afinada Contrato de Separação. Em frente a um Dominguinhos debilitado, ela chora sem se conter, mas segue em frente.
A sessão de pré-estreia FOI vista por Guadalupe e por Liv, ex-mulher e filha de Domingos. Suas
presenças deixavam mais curiosa as cenas em que o sanfoneiro falava de seus
casamentos. Sobre Anastácia, segunda mulher do músico depois de Janete, ele
diz: "É minha maior parceira, fizemos juntos umas 210 músicas fora outras que
ela queimou." É verdade. Depois que Domingos se foi com a bela Guadalupe,
Anastácia fez uma fogueira para queimar todas as fitas nas quais havia gravado
as criações do músico para suas letras. "O negócio da gente era mais
música mesmo", diz Domingos.
Domingos, estudado em escolas de jazz, esmiuçado
por músicos eruditos, jamais estudou partitura. Tentou fazer isso, mas
abandonou as aulas "porque os livros não tinha figurinhas." Já
consagrado, fora da sombra do Rei do Baião, foi com Gal Costa fazer shows pelo
país por dois anos, acompanhado por Toninho Horta na guitarra e Robertinho
Silva na bateria. "Eu já estava me sentindo um sanfoneiro pop, já estava
com o cabelão black." Quando chegou 1978, veio morar em São Paulo e sentiu
aflorar a solidão do sertão que havia em seu peito. Dominguinhos era um
solitário, como ele mesmo diz.
Seus olhos se enchiam de água depressa, sobretudo
depois que ele começou seu tratamento contra o câncer. Em uma noite, deixou o
quarto do hospital com seu chapéu de vaqueiro, apertou o botão do elevador e
fez o nome do pai. Chegou ao teatro no qual a Orquestra Jazz Sinfônica o
esperava e sentou-se para tocar De Volta pro Aconchego. Quando sentiu os
arranjos sinfônicos atravessando seu peito, não se conteve e chorou uma lágrima
graúda, como se soubesse que, ali, era a hora de se despedir.
Fonte: Jornal O Estadão/Julio Maria
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