Lampião, a personalidade de um mito, 80 anos depois

Personagem que existiu por apenas quatro décadas, Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião, foi, continua e sempre será alguém sinônimo de polêmicas, analisadas a partir de vários ângulos.

Sua biografia está em mais de uma centena de livros, dezenas de filmes, cordéis, artigos científicos e se revela como um tema que não se esgota, 80 anos após o seu falecimento.

Reunindo autores e pesquisadores em suas diversas opiniões e narrativas - várias divergentes - é possível traçar um esboço de sua complexa personalidade. Tomando como ponto de partida o ano de 1915 no sítio Passagem das Pedras, pertencente a cidade de Serra Talhada, vemos um jovem inquieto, liderando os irmãos, ensaiando autonomia em relação a pacificidade do seu pai...e sedento de justiça, que se não veio do Estado, ele mesmo tomou as rédeas e comprou a briga com os vizinhos, Saturninos.

Não detalharei as suas peripécias em 16 anos como líder do cangaço - existe farta literatura para isso - mas provoco a análise de sua controversa personalidade.

Características como coragem e inteligência o tornaram um estrategista que liderou por anos a fio grupos de bandoleiros sobrevivendo nas caatingas, ambiente inóspito, carente de água e alimentos; foi a sua decisão que mudou o ângulo machista da época em 180 graus e permitiu as mulheres no cangaço, a partir de 1930, com o enlace matrimonial de Maria Gomes de Oliveira, denominada de “a rainha do cangaço”.

Nas incertezas da vida bandoleira, fica de lado o machismo, quando ele assume um relacionamento com uma jovem que já não era mais virgem. E torna-se pai, registrando sua prole com seu sobrenome. Imagino a cena do personagem por alguns momentos acolhendo sua filha, inocente criança, em seus braços. Acolhendo vida as mãos que matou a tantos inocentes também.

Momento histórico na sociologia brasileira, quando em março de 1926 o Rei do Cangaço adentra o solo bendito do Juazeiro do Norte e acontece o encontro entre os dois mitos nordestinos: Padre Cícero, perseguido pela igreja e venerado pelo seu povo, naquela altura alçado à condição de santo popular, confabula com o rei cangaceiro, que entra na cidade em trajes civis e sai de lá com uma patente de capitão, mesmo que sem validade perante o Estado brasileiro. Alimentando a vaidade, Juazeiro é cenário para fotografias em elegantes trajes de terno risca de giz, com vários parentes.

A soma de orgulho e vaidade levam Lampião a assinar, até seu último dia, o sobrenome da desejada patente: capitão Virgulino.

Atribuo a ele ter trazido o sequestro para o Nordeste, feito repetido em vários momentos, e com ênfase de junho de 1927, no fatídico episódio que deu origem ao tiroteio em Mossoró, no qual o monarca do cangaço experimenta o amargo gosto da derrota.

Foi a sua vaidade que deu face ao cangaço, quando criou seu próprio marketing pessoal, assunto inimaginável no início do século XX, imprimindo cartões de visitas com a sua própria foto. Essa vaidade adquiriu dimensões internacionais, quando matéria sobre ele estampa uma página do New York Times, nos anos 30. E atinge seu ápice quando Benjamin, o libanês ex secretário do padre Cícero - seu ídolo e venerado sacerdote - o procura e filma e fotografa em cenas do cotidiano.

Essa mesma vaidade facilitou as buscas por parte das volantes. Com retratos em mãos, o alvo agora tinha face. Seu Benjamin? Perdeu a vida na ponta de faca peixeira, e nos deixou valioso acervo de imagens. Relação com as imagens creio ter sido a razão do homicídio, embora existam outras versões. 

Cortar cabeças? Um excelente negócio, desde que não fosse a própria. Se não, vejamos: Civis poderiam ganhar recompensas em dinheiro e status; militares, promoções e patentes; cangaceiros, podiam ser anistiados! Pelo costume da época, era importante sempre ter por perto um facão bem amolado.

Certa vez um jornalista me perguntou: quem era inimigo de Lampião e do cangaço? Todos, respondi sem titubear.

Afinal, os padres viam diminuir a frequência dos devotos nas missas, amedrontados com a violência; os coronéis eram coagidos e tinham riscos de perder patrimônio e a vida; militares tinham dever de ofício de combater os bandoleiros, a balas ou golpes de facão e baionetas; comerciantes perdiam seus estoques em saques à luz do dia; mulheres eram raptadas e estupradas constantemente; plantações queimadas e animais abatidos a tiros; jornalistas intimidados; viajantes assaltados...um rosário social que aspirava diariamente findar o movimento bandoleiro.

O homem que impunha medo aos mais simples, desafiava os mandatários, julgava e sentenciava pelas suas próprias leis, era também o mesmo que sentava e jantava na mesa do governador interventor do estado de Sergipe, Eronildes de Carvalho. É assim que o poder acontecia, longe dos olhos dos comandados pela política. Intimidando os mais simples e se curvando aos mais poderosos.
Costurava, rezava, se perfumava, versava, sentenciava vida e morte, sentia-se senhor supremo, capitão e governador do sertão nordestino.

Fazendo atos inimagináveis, foi temido, respeitado, admirado e odiado na mesma dimensão. Só não foi capaz de imaginar a astúcia dos seus algozes, e tombou pelo impacto de tiros de fuzil, vitimado pelos seus próprios crimes, vaidade e excesso de autoconfiança. A violência destruiu quem optou por ela mesma.

A sua cabeça, inteligente, corajosa, autoconfiante e vaidosa, foi separada do corpo para sempre. Testemunhas comemoraram...se teve lágrimas? Não sei.

Morreu o homem, se eternizou na história, nasceu o mito. Viva a cultura nordestina!

Fonte: Professor José Urbano
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