RIO SÃO FRANCISCO, INSPIRAÇÃO PARA O BAIÃO E A LITERATURA BRASILEIRA

“Quando escrevo, repito o que já vivi antes. E para estas duas vidas, um léxico só não é suficiente.  Em outras palavras, gostaria de ser um crocodilo vivendo no rio São Francisco. Gostaria de ser um crocodilo porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma de um homem”, disse certa feita o escritor mineiro João Guimarães Rosa. Não é exagero afirmar: o Velho Chico é o rio que mais inspira os artistas brasileiros. Da nascente à foz, protagoniza histórias, lendas, músicas, poemas, em uma diversidade de manifestações artísticas, da cultura popular à erudita.

Uma das maiores obras da literatura brasileira, “Grande Sertão Veredas” (1953), de Guimarães Rosa, tem o São Francisco e o sertão como metáforas: “Agora, por aqui, o senhor já viu: rio é só o São Francisco, o rio do Chico. O resto pequeno é vereda. E algum ribeirão”, escreveu ele. O rio atravessa o romance de diversas formas: é um elemento geográfico e também simbólico.

O narrador, Riobaldo, tem o rio no nome. Como um rio, Riobaldo traça o próprio rumo, sua travessia, mergulhando nas correntezas da alma. E é no São Francisco que ele e Diadorim se banham, adolescentes, numa passagem emblemática da história: a partir daquele dia tudo muda na vida de Riobaldo, que dirá: “O São Francisco partiu minha vida em duas partes”. O Velho Chico acompanha o personagem até o final do romance: nas últimas linhas, Riobaldo, “quase barranqueiro”, volta a mencioná-lo: “O Rio de São Francisco – que de tão grande se comparece – parece é um pau grosso, em pé, enorme…”.

Outro gigante da nossa literatura que homenageou o Velho Chico foi Graciliano Ramos. No conto “Canoa Furada”, presente na obra “Alexandre e outros heróis”, escrito nos anos 40, o autor alagoano narra a história do vaqueiro Alexandre, que faz a travessia do rio em uma canoa, literalmente, furada. “É o maior rio do mundo. Não se sabe onde começa, nem onde acaba, mas, na opinião dos entendidos, tem umas cem léguas de comprimento”, conta o personagem aos amigos.

Jorge Amado também se inspirou no São Francisco como cenário em “Seara Vermelha” (1946): castigados pelo sol do sertão, os personagens retirantes partem para Juazeiro, onde pegam um barco para São Paulo.

O romance de estreia do escritor mineiro Lúcio Cardoso, “Maleita” (1934), passa-se na Pirapora do final do século XIX, narrando as viagens dos tropeiros às margens do São Francisco e a fundação da cidade.

Na primeira parte do clássico “Os sertões” (1902), “Terra”, Euclides da Cunha estuda o povoamento das regiões banhadas pelo rio e a sua influência na formação étnica do sertanejo. Fala também sobre o papel do homem como agente da destruição, com as queimadas que arrasaram as florestas.

O poeta Carlos Drummond de Andrade não demonstrou muito otimismo sobre o futuro do Velho Chico: no poema “Águas e Mágoas do Rio São Francisco”, ele fala dos “desencantos, males, ofensas e rapinas que no giro de três séculos fazem secar e morrer a flor de água de um rio”.

O Rio São Francisco também é cantado por grandes nomes da Música Popular Brasileira. Luiz Gonzaga fez o “Pajeú”, aquele que “vai despejar no São Francisco”, ficar famoso no Brasil inteiro, através da canção “Riacho do Navio”, que compôs com Zé Dantas, em 1955.

É da dupla Sá&Guarabira uma das mais conhecidas canções sobre o rio, “Sobradinho”, que cita as cidades inundadas e a população expulsa pela construção das usinas hidrelétricas de Sobradinho, na década de 1970. A letra fala também da profecia de Antônio Conselheiro, de que “o sertão vai virar mar o e o mar irá virar sertão”.

Em 1984, Caetano Veloso tratou simbolicamente da rivalidade entre Juazeiro e Petrolina em “O ciúme”: “Velho Chico vens de Minas / De onde o oculto do mistério se escondeu / Sei que o levas todo em ti, não me ensinas / E eu sou só, eu só, eu só, eu”.

Mais recentemente, em 2011, Geraldo Azevedo, nascido nas margens pernambucanas do rio, fez o álbum temático “Salve o São Francisco”, com a participação de Djavan, Maria Bethânia, Dominguinhos, Geraldo Amaral, Alceu Valença, Ivete Sangalo, Moraes Moreira, também nascidos em estados banhados pelo Velho Chico e Fernanda Takai que nasceu no Amapá.

Maria Bethânia viajou pelo universo folclórico e afetivo das águas dos rios do interior do Brasil em seu CD “Pirata”, sem se esquecer, é claro, do Velho Chico. Na bela “Francisco, Francisco”, canta “barrancos, carrancas, paisagens, tantas águas corridas, lágrimas escorridas, despedidas, saudades”. A canção encerrou a novela global “Velho Chico”, de Luiz Fernando Carvalho, num adeus emocionado ao ator Domingos Montagner, que interpretou o personagem “Santo”, levado pela correnteza do rio num trágico acidente que lhe custou a vida, na região de Piranhas (AL).

Mesmo com a diversidade de autores e propostas, há um denominador comum nas obras que tem o rio São Francisco como fonte de inspiração: elas falam e mostram um Brasil real, profundo, verdadeiro. São obras que nascem de sentimentos que só os brasileiros conhecem, como um espelho que reflete nossa identidade e cultura mais genuína.

Ariano Suassuna, um dos defensores da cultura brasileira autêntica, costumava citar o crítico Alceu Amoroso Lima em seus discursos: “Do Nordeste para Minas corre um eixo que, não por acaso, segue o curso do São Francisco, o rio da unidade nacional. A esse eixo o Brasil tem que voltar de vez em quando, se não quiser se esquecer de que é Brasil”.

*Fonte: Cristiane Tassis-CHBSF
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