POLIBIO ALVES, PARAIBANO DE CUBA, por Aderaldo Luciano

Morando na mesma cidade e convivendo com amigos em comum, nunca pude abraçar Políbio Alves, o poeta que aguçou meus sentidos a partir de 1982. Voltava de Sergipe para visitar minha mãe e ao mesmo tempo fugir ao alistamento militar obrigatório no Tiro de Guerra. Era a cidade de Propriá, lavada pelo Rio São Francisco, visitada pelo calor, em cujas mesas o peixe surubim, malhado como uma rês, bigodudo como um vilão do cinema, fazia vez. Nasci e sustentei-me na vida em Areia, espinhaço da Borborema, brejo frio e chuvoso, ventanias e canaviais.

O mês de fevereiro acelerava-se e havia a expectativa do famoso Festival de Artes. Desde os 10 anos que minhas visitas às bibliotecas, meu desempenho no Colégio Estadual, minha irreverência, um violão desesperado e um certo ar de contraventor criaram uma certa distância entre nós, eu e a mesmice da terra. Até que veio o Festival e ganhei de algum figurão a complacência de alguns livros, entre eles a antologia Carro de Boi, coordenada por Juca Pontes. Já pude testemunhar o valor dessa antologia para nós, os meninos desnorteados fingindo sermos poetas numa terra árida de poesia e diálogo.

Nós achávamos que éramos a nova safra, mas quão distante estávamos disso. Entre as páginas 33 e 48 do Carro de Boi situava-se a Passagem Branca, a seleta dedicada a Políbio pelo coordenador. Imprensava-se entre Jomar Souto e o próprio Juca. Só esse título já destruía toda minha pretensão, "Passagem Branca". Quantos minutos passei pensando no porquê desse título para uma seleção de poemas. Ainda agora, quando fui reler os poemas, fiquei a imaginar meu próprio imaginar naqueles dias. O "Santo Ofício" de Políbio é mesmo o remexer nas feridas do poeta. Naquele dia, fui lendo até o Triedro. Daí não passei. Naquele dia:

Na sexta-feira santa,
o poeta deliberou
o inventário do tempo.

Na sexta-feira-santa,
o poeta de Cruz das Armas
reuniu os companheiros
de farra, armou o bote.

Na sexta-feira santa
o poeta fechou os olhos,
acionou do gatilho
sua última palavra.

Às vezes fico rindo dos teóricos que se metem a decifrar o poema e a determinar o que o poeta quis dizer ou não. Lançam-se às teorias, às facções, às mais interessantes e improváveis possibilidades. No meu tempo de graduação, segurando na mão dos meus orientadores, eu observaria a repetição "Na sexta-feira santa/ o poeta..."; coletaria os verbos "deliberou", "reuniu", "armou", "fechou", "acionou". Mas, senhores, sempre fui um péssimo aluno, incapaz de interpretar o tarô poético, vivo pela emoção, pelo arrepio, pelo grito irmão, pelo despenhadeiro da dúvida, pelo universo da canção. De que me importa saber o que o poeta quis dizer. O que importa é que o poeta disse, com o dedo em riste, a cara ao tapa, a voz ao vento e a bala (palavra?) ao ouvido.

Não vem ao caso. O caso, estou contando. Naquele dia parei no Triedro, mas antes demorei-me em Teia. Porque alguns termos e temas e palavras (sememas? semantemas? sei lá o que) dialogavam com outros de Triedro. Fui alertado para a possibilidade de a obra de qualquer artista dialogar com ela mesma numa coisa chamada auto-referenciação. E a Teia reforçava o Triedro, numa encruzilhada pesada que pensei tratar-se da tentativa de suicídio. Isso naquele tempo de 34 anos atrás, em minha baixa puberdade. Eu era um detetive cuja única virtude era saber escrever o nome. Mas era assim que estava escrito:

É um corre-corre,
risco&confisco,
jogo-de-vida, um porre.

É um tiro certeiro,
uma rixa, uma teima,
lesão clara, não queima.

É uma queda, um baque,
uma fera, um ataque,
ultra-refrega, uma guerra.

Sem saber, eu era um protótipo de Mario Conde, pequeno e ínfimo, pois quando viro para a página 42 tem lá um poema chamado Repasse. Se a morte era preparada em Teia e o saque da arma em Triedro, agora o poeta dizia que eu o julgava como sendo um matador de aluguel de si mesmo. Todavia, meus amigos, tudo isso é apenas uma homenagem e uma alegria, um agradecimento e um lampejo, um muito obrigado ao poeta que encantou-me um dia e que, nesse tempo de tantas desilusões, ofertou para nós La Habana Vieja: Olhos de Ver. E Políbio Alves nem sabe que agora o leio com outros olhos e outros saberes, mas com a mesma emoção.
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