Há dezenas (talvez centenas) de anos, uma viola foi enterrada no leito do Rio Pajeú. Desde então, quem bebeu de sua água, virou poeta. A lenda sertaneja pode até não ser verdade, mas foi a forma que o povo encontrou para explicar porque existe tanto talento para a poesia em um só lugar.
“Bom dia, poeta”, diz um. “Bom dia, poeta”, responde o outro. Vendedor, professor, farmacêutico… Seja no improviso ou munido de violas, há uma população inteira de cantadores poetas em São José do Egito, a 404 km do
Recife. Considerada berço imortal da poesia, a cidade preserva, há gerações, a tradicional cultura que floresceu às margens do rio.
A relação da cidade com as palavras começou na colonização do Brasil pelos portugueses: “Os portugueses trouxeram a sonoridade do baião de viola e as influências dos mouros, muçulmanos que invadiram a Península Ibérica. Digamos que os cantadores são uma evolução dos trovadores”, afirma Fábio Renato Lima, 38, professor de história na cidade e coordenador da banda Vozes e Versos. Talvez por isso o vocativo esteja presente em qualquer cumprimento na cidade. É uma populaçaõ de “poetas”.
"Ninguém consegue explicar
É mais pesada que o chumbo
É leve igualmente o ar
É fina como cabelo
É bela como luar
Toca na alma da gente
Fazendo rir ou chorar
Faz a tristeza morrer
E o sonho ressuscitar
A poesia é ão santa
Que quando o poeta canta
Deus para pra escutar
A poesia seu menino
Como tudo que é divino
Não da pra gente pegar"…
Leves aos ouvidos, os versos cantados desafiam os jovens, a exemplo de Ana Clara Menezes, 16, que recentemente se envolveu com o estilo de poesia que ouvia desde a infância. Neta de Gregório Filó, poeta respeitado na cidade, ela vem desde os 12 anos tentando expressar os sentimentos ao mesmo tempo em que encara o desafio das métricas.
“No início, peguei um livro de família bem antigo, o Reino dos Cantadores, de José Rabelo de Vasconcelos. Li e comecei a praticar, mas comecei a me questionar: ‘Por que meu verso não está saindo igual ao do meu avô?’. Foi muito difícil dominar a métrica”, conta. Desde 2013, passou a estudar na Escola Estadual Edson Simões, uma das unidades de ensino do município que oferecem na grade curricular a disciplina de poesia.
Em uma época onde o sustento vinha da agricultura, o cantador era o artista nordestino”, completa. Mas, mais que artistas, os violeiros, que viviam viajando, faziam as vezes de jornalistas e levavam as notícias de uma região a outra, entre eles, nomes como Augustinho Nunes da Costa, Ugolino do Teixeira, Romani da Mãe D’água.
Nem sempre o assunto foi tão formal e estruturado. Uma das primeiras famílias a destacar-se no Pajeú foi a Nunes da Costa, ainda em 1850, em Teixeira (PB). “Eles são ancestrais da minha família e já utilizavam o improviso e a viola, por influência dos mouros, quando começaram a se destacar e a viver do repente”, conta Antônio Marinho, poeta.
“Eles faziam apresentações na feira e na estação de trem. Em uma época onde o sustento vinha da agricultura, o cantador era o artista nordestino”, completa. Mas, mais que artistas, os violeiros, que viviam viajando, faziam as vezes de jornalistas e levavam as notícias de uma região a outra, entre eles, nomes como Augustinho Nunes da Costa, Ugolino do Teixeira, Romani da Mãe D’água.
“Eles faziam apresentações na feira e na estação de trem. Em uma época onde o sustento vinha da agricultura, o cantador era o artista nordestino”, completa. Mas, mais que artistas, os violeiros, que viviam viajando, faziam as vezes de jornalistas e levavam as notícias de uma região a outra, entre eles, nomes como Augustinho Nunes da Costa, Ugolino do Teixeira, Romani da Mãe D’água.
As gerações se passaram e três irmãos cantadores fizeram história em São José do Egito: Lourival Batista, conhecido como Louro do Pajeú, Dimas Batista e Otacílio Batista. “Eles fizeram a primeira apresentação de cantoria do Brasil, no Teatro de Santa Isabel, em 1946, convidados por Ariano Suassuna”, conta Antônio Marinho, neto do Louro do Pajeú, falecido desde 1992, mas em nome de quem se faz festa de aniversário no município até hoje. “Eles protagonizaram momentos importantes para a arte e o repente foi ganhando respeito. Otacílio foi o primeiro repentista que teve uma obra sua gravada por outro artista”, reitera. A obra em questão foi a música Mulher Nova, Bonita e Carinhosa, interpretada por Zé Ramalho.
Um dos poetas mais famosos do Sertão pernambucano, Lourival Batista assinava suas obras com o próprio nome, mas era reconhecido mesmo como Louro do Pajeú. Precursor da “escola” da poesia de São José do Egito, teve o talento reconhecido por nomes políticos e artísticos de expressão nacional, com reconhecimento que o fez famoso em todo o país. Entre os nomes que o reverenciaram estavam Gilberto Gil – que, na época da Tropicália, visitou sua casa no Sertão pernambucano – ou Luiz Gonzaga, que não escondia admiração ao sertanejo. Tanto clamor o ajudou a ir além da poesia aos olhos da população local.
A marca de Lourival Batista continua exposta. “Criamos o Instituto Lourival Batista, a Casa do Repente. Na entrada, tem uma placa de 1989 que Miguel Arraes levou para meu avô homenageando o repente”, explica Marinho. No centenário do aniversário do poeta, a cidade foi cenário de um documentário que retratou a história dos artistas da região, o Não tem só mandacaru, obra de abertura da festa e um dos filmes que serão exibidos no Festival de Cinema de Belo Jardim e no Cine PE, em 2016.
Trecho da obra Explicar a Poesia de Dedé Monteiro
Aprendendo a poesia de São José do Egito