DONA MARIA DOS PRAZERES, PARTEIRA, PLANO DIVINO, MULHER PATRIMÔNIO VIVO

Dona Maria dos Prazeres tem uma interpretação diferente para o que leu na Bíblia. “Deus fez a mulher de uma maneira tão especial, sabia? Primeiro, ele fez os pássaros, os rios, o mundo todinho, o homem e só depois disso tudo, ele fez a mulher. A mulher não foi feita diretamente do pó da terra, ela veio do osso e é por isso que ela é tão forte”, lembrou ela, religiosa que é, ao falar de um dos personagens principais do trabalho que lhe conferiu o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco em 2017.

Parteira há mais de 60 anos com mais de 5 mil partos e nenhuma morte no currículo, Prazeres tem propriedade para falar da potência de um momento que pode ser a expressão máxima da fortaleza feminina, não só pelo esforço físico, mas também pelo que a maternidade representa. Como testemunha de situações diversas que a profissão lhe proporcionou, pode observar que o parto também é um ato de resistência e reafirmação da mulher que, ao dar à luz, assume um novo compromisso e resinifica a sua permanência no mundo.

“Já atendi partos em que a mãe não sabia o que fazer porque o pai não queria registrar o filho, em que não havia roupa para vestir o bebê, em que eu mesma paguei para a família comer algo”, descreve ela algumas das experiências que presenciou e também ajudou a solucionar extrapolando, várias vezes, os limites da sua função. A escolha por um ofício tão difícil, ela acredita ser consequência de um plano divino. “Para ser parteira é preciso ser corajosa, não andar com mentira e, o mais importante, tem que ser escolhida por Deus”, defende ela que, apesar da sua religião particular, tolera os diferentes tipos de credo e cultos durante os partos que atende.

A empatia para ajudar tantas mulheres em um momento determinante talvez seja fruto da sua própria origem tão desafiadora quanto a de tantas mães que atendeu. Filha de um breve relacionamento ‘proibido’, Dona Prazeres teve que ir embora de Natal, onde nasceu em 1937, com apenas 15 dias de vida, quando seu pai a trouxe para Jaboatão, onde foi criada pela parteira Dona Francisca. A medida foi necessária para que a mãe biológica não fosse castigada pela relação não oficializada com o visitante funcionário da rede ferroviária e assim, Maria dos Prazeres foi registrada como pernambucana. “Quando recebi o prêmio Bertha Lutz, em 2008, eu fui a única do Nordeste e até disseram: você está com 9 estados nas suas mãos. É muito, né? Mas eu gosto muito do Nordeste”, comenta ela, sobre a mistura.

Neta e filha de parteiras, Dona Francisca havia herdado a tradição do partejar que, desde a infância, intrigava Maria dos Prazeres. “Eu era muito curiosa, queria saber de tudo. Fui criada numa época de muita rigidez, quando eu perguntava a minha mãe o que ela fazia, ela dizia que menina não podia saber dessas coisas. Havia uma tradição antigamente que, quando o bebê nascia, queimava-se alfazema. Quando eu sentia o cheiro de alfazema, já ia para o quarto para ver o que era. Minha mãe não me dizia nada, mas eu ficava escutando tudo o que ela falava com as outras e prestando atenção”, diz ela.

Um dia, surgiu uma emergência na vizinhança e Dona Francisca não estava em casa. “Eu fui e fiz tudo do jeito que eu via minha mãe fazer e falar. Quando ela chegou em casa, quis saber onde eu estava. ‘Na casa de Dona Teté. Peguei a menina’, respondi. Ela achou uma loucura, mas viu que saiu tudo bem”, relembra ela, sobre o primeiro parto em 1958. Depois desse episódio, Dona Prazeres conquistou a confiança da mãe e passou a acompanhá-la nos demais partos. Não satisfeita com os conhecimentos de parteira tradicional, concluiu o curso de Enfermagem Obstetrícia, na Faculdade de Medicina, em 1971, e fez vários outros cursos relativos ao partejar, inclusive a faculdade de Farmácia, para aprimorar seus trabalho.

“Tenho um bisneto que nasceu na minha mão com 4kg e 54cm. Minha nora não levou ponto nenhum por conta do nascimento dele, porque eu aprendi na faculdade uma técnica para proteger o períneo. Antigamente, as parteiras tradicionais recomendavam as mulheres a passarem oito dias deitadas na cama após o parto. Na faculdade, aprendi que era importante para a circulação já algumas horas depois do parto normal a mulher caminhar”, lista ela, a necessidade de possuir o conhecimento científico para o exercício da função.

Embora defenda o parto humanizado, ela não insiste para que os bebês nasçam em domicílio, caso haja contraindicações ou mesmo se a mãe simplesmente achar melhor ir para o hospital. “A mulher deve fazer o que ela quiser. Ela é a protagonista do próprio parto. Se ela quiser parir de cócoras, de banda, na rede ou pendurada, é ela quem decide, eu a ajudo a fazer isso. Se quiser ir para o hospital e fazer uma cesárea, eu não me oponho também. O que posso fazer é dar algumas sugestões diante do que é possível”, explica ela, que diz já ter sido consultada por médicos que tentavam fazer partos humanizados e sempre terminavam na cesárea.

A proximidade com o meio veio com os anos de trabalho também em hospitais. Após formar-se em Enfermagem Obstetrícia, passou 24 anos trabalhando no Hospital da Beneficência Portuguesa. Como aposentada, ainda ganhou mais 10 anos de disponibilidade, quando trabalhou também no Hospital Português e na Maternidade da Encruzilhada. Somente em 2005, parou de trabalhar completamente nas maternidades. Mesmo enquanto era funcionária dessas instituições, nunca deixou de atender os partos em domicílio, sem nunca cobrar pelo serviço.

“Depois do primeiro parto, disparei. Fiz parto na minha casa, na dos outros, na rua, na maternidade, em ônibus. Me formei enfermeira obstetra, mas é como parteira que me sinto realizada e completa”, destaca ela, que deu à luz a três filhos. Dois nasceram em casa e um de parto normal na maternidade, somente porque a parteira amiga estava de plantão na ocasião.

“A parteira é uma heroína, ela faz simbiose, ela está em todas. Parteira é ser mãe, é ser amiga, é ser líder, é ser tudo. Às vezes, a gente vai atender um parto e a mulher está sozinha. Enquanto ela se contorce de dor, eu lavo os pratos, a roupa, arrumo e faço o comer. É mais do que ser parente, porque os parentes têm medo. A mulher confia na parteira, porque a gente para, olha e escuta. É a parteira quem fica ali de frente para receber o bebê. Depois de 9 meses no ventre, a primeira coisa que o bebê encontra é a parteira”, conclui ela, sobre o privilégio de vir ao mundo sem sofrimento, pelas mãos cuidadosas de uma mestra da nossa cultura tradicional.

Fonte: Camila Estephania-Fundarpe
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