O RIO DAS MORTES CORRE A TRITURAR CORAÇÕES ABRAÇADO A ETERNIDADE



Dois são os rios das Mortes: um no Mato Grosso, na bacia do Araguaia, outro em Minas Gerais, na bacia do Rio Grande. A foto é do primeiro e ilustra meu sentimento diante da própria Morte, o extenso e ancestral rio no qual a Vida deságua, o verdadeiro Rio das Mortes. A última semana de outubro e a primeira de novembro carreou para mim a viagem derradeira de três chegados.

Um dia depois do lançamento do meu livro, na cidade onde nasci, Areia, na Paraíba do Norte, quando eu já estava me preparando para dormir, hospedado na casa de meu dileto Beto Brito, soube da partida repentina, e pelas próprias mãos, de um amigo, jovem e novo, vida e olhar para a frente, vencido por forças interiores tão estranhas quanto avassaladoras. Partiu, mas nos legou a memória e a continuidade em dois rebentos com nomes de santo.

O triturador de corações, a assombrosa lâmina, o intangível manto do que se resolveu chamar Depressão, em todas as suas formas e roupas cênicas, atua silenciosamente, em alguns casos, noutros se pronuncia com protuberantes intervenções. Nosso amigo, rasgado o peito e as vísceras em chama, repousa no éter, abraçado à eternidade. Será presença viva em nossos penhorados corações. Nos tatuou a existência. Estamos marcados.

Logo depois, assim como quem vai ali na padaria, nas terras piauienses, outro amigo, sóbrio e decidido, despido de medo e interventor, pegou o trem eterno, debilitado, com alguma idade e um filho recém nascido, saído das prensas, rodado em papel, com o nome estranho de O Terno E O Frango, memórias. Foi-se embora e deixou-me com uma resenha inacabada, uma foto que não foi enviada, um hiato robusto entre Oeiras e Rio de Janeiro.

Foi Soahd, amiga também, quem nos singrou a notícia. Egberto e Francisco devem ter tomado o susto, como eu tomei. O sorriso, as fotografias, o pensamento e a letra fizeram morada nele. Edmar foi quem nos apresentou. Cruzou o Brasil e elevou-se incógnito, perfurou o firmamento e encantou-se lá para as bandas do Sete Estrelo. E o rio continuou correndo, catando seres numa outra margem.

Domingo passado, na manhã baiana, alguém também foi-se embora. Aproveitou que Tia Florinda nos visitava e nem disse adeus. Com seus muitos mais que anos, vitimada por um AVC, evento tão presente nos brasileiros, mas tão pouco comentado, já acamada há dois anos, com os reflexos físicos em câmera mais que lenta, desfez-se das sondas, afastou os cobertores, ignorou o leito e foi encontrar Seu Flodoaldo, pai santo, postado em sua cabana do lado de lá.

A personalidade de Tia Mariinha era o próprio ferro bruto. Era sua a ordem, era sua a última palavra, era seu o desejo e era sua a vontade. Elegia e condenava, abria as portas a parentes, fechava os ouvidos aos mais próximos, presenteava e cruzava a casa do Tororó como a rainha. E foi assim que partiu: fazendo valer a própria vontade, sem negociar com o rio, domando-o ao seu querer.

O Rio das Mortes é uma paragem irremovível. Nadaremos em suas piscinas, mergulharemos, pela manhã, em águas geladas, pela tarde, em águas mornas. À noite, com estrelas ou sem a lua; na madrugada, com todo o silêncio. Procurei algum topônimo que se chamasse Rio das Vidas. Não há. Mesmo assim, estamos nele, todos nós, em suas corredeiras e quedas d'água, sendo levados, a reboque, para o Rio das Mortes. Um dia seremos saudade!

Fonte: Aderaldo Luciano
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