CLARISSA LOUREIRO: RESENHA DO LIVRO NINGUÉM DETÉM A NOITE DE NIVALDO TENÓRIO

“ Ninguém detém a noite” espanta. E é por conta desse aspecto que está a contemporaneidade de sua linguagem. Traz na sua estruturação arredia à leitura desatenta o traço marcante de dizer o indizível, ou seja, o que sufoca na garganta do indivíduo do século XXI. Neste sentido, dialoga com a primeira obra “ Dias de Febre “. Em todas as narrativas, há uma ressignificação metafórica da noite que perde seu sentido original para alcançar o significado da explosão do aparente equilíbrio do estabelecido dentro ou fora dos personagens. 

E ela é inevitável porque a própria realidade dos personagens está tão doente quanto a do sujeito que a reinterpreta enquanto a lê. E isso não pode ser dito se não através do constante uso de lacunas a serem preenchidas pelo leitor que vagarosamente vai revisitando temas tão difíceis de serem afirmados e, quiçá, vivenciados nos dias de hoje. HIV, Câncer, Incesto, Suicídio, Demência, Envelhecimento reprimido, homossexualidade reprimida, família destruída pelo silêncio, pela solidão, pela incompreensão da formas particulares de existir.

A noite é, portanto, o doloroso encontro consigo mesmo e o espanto de não estar no padrão que todos de alguma forma tentam viver. Dai, a ironia do “ciclo militar” que compõe as três narrativas que fecham a obra. Ambas recriam a psique de militares adoecidos pelo paradigma ditado por uma identidade controlada por uma metodologia de existir que os molda, os castra e os desestrutura emocional e fisicamente: 
“ A coruja branca” justapõe câncer de próstata e o homicídio da coruja como uma morte da própria sensibilidade de viver num mundo além dos paradigmas militares, num jogo narrativo entre passado e presente em que os conceitos de memória coletiva ( grupo de militares) e memória individual ( um ex-militar) se identificam para expressarem a solidão do homem desvirilzado no espaço onde vive. Perder a potência é perder também um pouco da força para se construir no mundo. 

“Giulia” exprime o lirismo nostálgico do combatente de guerra, perdendo a memória de si mesmo por conta de demência do envelhecer e poeticamente buscando na “ memória viva” de Giulia ( uma enfermeira de guerra) um “ lugar de memória” de uma existência espontaneamente vivida na juventude e, paradoxalmente, na guerra. E, então, o enlouquecer é uma forma de achar-se além do planejado. E a beleza do gesto da esposa é a compreensão dessa busca além dos grilhões da família, talvez numa das mais belas declarações de amor da obra.

“ Além da noite” é por si só, a maior explosão do livro em que desvenda a hipocrisia de militar entediado com os afazeres de gabinete, reinventando o tesão pela ação bélica em prostíbulos em que possui meninas que jamais sua esposa foi capaz de parir, numa pedofilia contaminada por todos os receios do homens e mulheres do séculos XXI.

Acredito que com esses três contos, NIvaldo, de fato, consegue discutir uma dos temas mais atuais na literatura: a identidade como um processo relacional com o outro, o tempo e o espaço. E faz isso com a coragem de trazer o que dói no homem de hoje como um ingrediente necessário para essa construção em eterna construção em desconstrução.

E isso só pode ser feito através de uma linguagem que se abre a ressignificações plurais sem deixar de abrir mão de usar intertextos canônicos como a presença do “Ateneu” de Raul Pompéia para discutir a homossexualidade reprimida em “ O Internato” ou a beleza do revigor sexual do idoso a partir de uma relação com uma bela jovem cujo adormecer ao seu lado é mais forte do que o próprio ato, como se nota em “ Memória de Minhas putas tristes” de Gabriel Garcia Marquês. O diferencial no romance de Nivaldo Tenório é dor incontida que faz seu desfechos serem abertos como um rio que nos corta, afoga e dilacera.
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