DONA FLOR 2017: O RISO COMO UMA ARMA CRUEL. E O CINEMA QUE DELEITA, MASSIFICA E ALIENA

*Texto: Professora doutora-Clarissa Loureiro

A problemática da tradução semiótica é um dos temas mais instigantes quando se pensa a relação entre literatura e cinema. Até onde um roteiro cinematográfico silencia romances ou reiventa-os? Isso depende de como os fatores produção, direção e encenação são usados nos filmes. O certo é que é sempre um recorte que, por si só, é uma transcrição de linguagens. 

No filme " Dona flor" de 2017, a problemática do luto feminino e a crise de ser mulher constantes no romance são substituídos pelo humor da circunstância de uma mulher conciliar duas realidades inconciliáveis para as esposas criadas numa comovisão patriarcal: o prazer sexual fornecido pelo marido morto e os cuidados cotidianos recebidos pelo marido vivo. O foco é se brincar com circunstâncias de convivência numa mesma casa de dois homens que não podiam conviver segundo os padrões católicos, já que o corpo de uma mulher honrada só podia ser de um único marido. 

Mas se o defunto veio antes, quem trai ou traiu quem? O certo é que o filme desmistifica o próprio conceito de traição feminina. Dona Flor se trai quando aceita ser agredida pelas traições do primeiro marido, suas ausências em casa, suas agressões. Dona Flor se trai quando aceita a relação sexual mecânica do segundo marido, onde o gozo dele é estipulado em dias e horários certos. Por que aceita se trair? Porque é criada para isso: ser mulher de alguém. E quando concilia os dois na mesma cama não foge à esse parâmetro. 

Todavia é a esposa que serve a si mesma. A imagem clássica de Vadinho apertando as suas nádegas nu, enquanto Teodoro a segura pelos braços expressa bem isso: tenho a estabilidade e tenho o prazer. O único erro é que no filme essa balança não é igualitária. A repetição constante do trecho musical: " estou com saudade de tu meu desejo. Estou com saudade do beijo e do mel" exalta a saudade do corpo nu de Vadinho em oposição ao corpo de pijama e educado de Teodoro, o qual pouco se sabe, pouco se envolve. E quando é apresentado é com o humor próprio de Leandro Hassan, desvendando o ridículo que há em se ser politicamente correto demais. 

Celebra-se então a picardia do malandro que pouco cuida, que pouco nos olha, além do atrativo de nossas ancas e seios: " eu vou comer a sua bucetinha e você vai me dar", Vadinho repete diante de uma Flor que parece não resistir ao desejo de ceder ao desejo do outro, tornando-lhe objeto de toda as posições sexuais possíveis. Mas a pergunta que fica: será que " dá" sem ser vista ou existida no outro, por si só, não é um estupro de si mesma? 

A conciliação resolvida por Flor é uma falácia cruel pois fragmenta o sentimento feminino, masculinizando-a. No final, ela se espelha no Vadinho para ser feliz. " minha filha, tenha os dois". Sabemos que não não podemos nem nos ter a nós mesmos. E Flor segue em 2017 ensinando subterfúgios equivocados para as mulheres descobrirem seus corpos, usando o riso como uma arma cruel. E o cinema deleita, massifica, aliena.
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