Assis Angelo: a batalha para digitalizar acervo cultural

Enquanto andava em direção ao centro do palco, a súbita cegueira apagava as últimas luzes de sua vida engolindo até vultos. A um passo do desespero, ele apegou-se a um livrinho de Gonzagão como se fosse Padre Cícero. Apalpou a capa e, antes de declamar o cordel de mote decassílabo que já sabia de cor, usou os olhos pela última vez para ver uma imagem de Luiz Gonzaga voando sobre um pássaro.

Assis Ângelo levou dois anos para conseguir dizer com todas as letras: “Eu estou cego”. Um dos maiores pesquisadores da cultura popular, nome de referência no setor cultural, jornalista e poeta, biógrafo e estudioso, radialista e escritor, ele luta contra as trevas desde a noite sem fim. Foram seis cirurgias no olho direito e três no esquerdo até que o diagnóstico de “descolamento de retina” o nocauteasse. “Cheguei a passar três noites sem dormir, sentindo a depressão e o desespero.”

Isso até que o paraibano de João Pessoa, 62 anos, resolveu colocar olhos nas mãos e na alma. “Seja bem-vindo ao mundo da cultura popular”, ele diz com simpatia e voz de trovão assim que o repórter chega ao seu apartamento de 120 metros quadrados, em Campos Elísios, São Paulo. Assis viveria só não fossem suas “150 mil coisas”, como ele chama, dentre elas discos de 78 rotações, LPs de raríssimas 10 e 33 polegadas, fitas cassete com gravações inéditas, fotografias e cerca de dez mil partituras que recolheu por cantos do Brasil e de outros países durante 40 anos.

Seu acervo parece prestes a expulsá-lo da casa. Os livros sobem pelas paredes e os discos rodeiam quartos e corredores. São oito toneladas de material, como ele diz: “Já fiz um estudo para saber se a estrutura do prédio suporta. Está tudo certo”.

Nada ali está catalogado. Na última prateleira de baixo de uma das estantes, dorme uma preciosidade. Um 78 rotações de 1953 gravado pela Capitol com a voz da cantora de jazz americana Peggy Lee. O selo informa que se trata da música Wandering Swallow, com orquestra conduzida pelo maestro Billy May. Assis ajusta o toca-discos para as 78 rotações e coloca o disco para girar. A música de Peggy Lee, em inglês, trata-se de uma antológica apropriação indevida de Juazeiro, de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, de 1949. Um caso escabroso de plágio, sem nenhuma menção aos brasileiros. Um diamante de colecionador.

Outro canto guarda o disco que traz a primeira moda de viola gravada no Brasil, pelo produtor e cantor Cornélio Pires, de 1929. Jorginho (a música do outro lado é Moda de Pião) conta a história de um homem que, diante da paixão de três mulheres, decide partir.

Outro orgulho é um 78 rpm do cantor Bahiano, do início do século 20, cantando A Farofa e fazendo a primeira citação a Padre Cícero em áudio. “Este é o primeiro disco gravado no Brasil”, diz o pesquisador. Em mais pilhas aparecem um gravação original do hino do Corinthians, de 1954; um vinil feito para arrecadar dinheiro para a construção do Estádio do Pacaembu; LPs de 10 polegadas do violonista Laurindo de Almeida; originais de Inezita Barroso dos anos 50; uma música inédita de Paulo Vanzolini; e muitas gravações de Luiz Gonzaga cantadas pelo mundo em japonês, inglês e mesmo rapanui, o idioma da Ilha de Páscoa.

A cegueira deu um golpe no projeto de Assis de catalogar, digitalizar e criar um portal para tornar público seu acervo. Mesmo tendo criado em 2011 o Instituto Memória Brasil, ele não avançou. Sem mais poder encontrar títulos nas montanhas espalhadas pela casa, Assis é o capitão de um transatlântico à deriva.

Por considerar o caso de saúde (intelectual) pública, a reportagem do Estado procurou, à revelia de Assis, o Ministério da Cultura para saber como o poder público reage diante de um baú de pérolas transbordando. Um dia depois de receber o e-mail do jornal, assessores retornaram com as palavras do ministro então Juca Ferreira: “O Ministério da Cultura considera muito importante cuidar do acervo do pesquisador Assis Angelo, dada a sua relevância histórica e grandiosidade. O ministro já determinou à Fundação Nacional de Artes (Funarte) que entre em contato com o pesquisador e tome todas as providências necessárias para que o patrimônio acumulado por Assis Angelo seja preservado.”

O jornal voltou então a falar com Assis sobre o que parecia ser uma boa notícia não fosse a descrença do pesquisador embasada em argumentos contundentes. Assim como vários estudiosos proprietários de acervos robustos, Assis não acredita no poder público. “Juca Ferreira pode estar muito bem intencionado, mas é um homem que vai passar. Não posso deixar esse material que pesquisei por 40 anos nas mãos de um Estado que não investe em cultura, uma ‘pátria educadora’ que, na crise, faz seus primeiros cortes na educação. Eles não enxergam e dizem que o cego sou eu.”

No dia em que o jornalista conversava com Assis em seu apartamento, um homem chegou sem avisar. Ressabiado, passou pelo repórter e se sentou entre livros e discos. Quando ouviu a voz do amigo, Assis o reconheceu: “Tinhorão, é você!” O referencial pesquisador e crítico musical José Ramos Tinhorão foi impetuoso ao ouvir Assis falar sobre o sonho de ver seu material digitalizado por uma instituição pública ou privada: “Não vejo muita chance de isso dar certo”. E passou a dar exemplos de museus e institutos que perderam ou quebraram discos ao transportá-los até em caminhões de lixo e de homens públicos de altos cargos perguntando a Tinhorão qual era mesmo a importância de seu acervo.

O jogo se inverte quando o Estado, mesmo querendo, pode deixar de levar uma riqueza de memória cultural por uma questão de credibilidade. Qual a garantia a Assis de que seu patrimônio seria bem guardado? Qual a certeza de que, um dia, governantes vão entender que a pior cegueira se combate com cultura? Assis Ângelo adquiriu uma visão de longo alcance.

Fonte: O Estado de S.Paulo-Julio Maria
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