Circo! Lua! Baião!

O interior do Nordeste foi marcado pela presença do circo. E o circo, pela presença litúrgica de um palhaço desbocado. Havia, porém, um ponto alto todos os dias. Era a segunda parte do espetáculo: a encenação de um drama. Vimos centenas de vezes a Paixão de Cristo. Além de sofrermos solidários ao Cristo crucificado, regozijavamo-nos com Judas se enforcando. Era uma limpeza de alma, uma calma para o espírito.

O circo ficava entre nós geralmente por um mês e nós, da cidade, terminávamos por conhecer as famílias circenses e participar de sua dura vida na perpetuação de sua arte. Muitos partiram com o circo e nunca mais voltaram. Tivemos essa vontade, mas vontade dá e passa. Os circos maiores traziam, de vez em quando, um cantor da moda, que tocava no rádio, e lotava a arquibancada.

Entre encenações de dramas, palhaços infames e cantores bissextos, vimos certa vez um negro vestido de cangaceiro, tocando sanfona e cantando “no gogó”, sem microfone, transformando o circo num arrasta-pé. Mais tarde saberíamos tratar-se de Luiz Gonzaga, fazendo o maior forró do mundo, preenchendo o nosso vazio, construindo o nosso itinerário. Aquela voz poderosa reside ainda hoje, fazendo eco, em nosso coração.

Foi a união da fantasia do circo e da música gonzagueana que deu-nos coragem de arribar e fazer o nosso verão. Foi com ela que embalamos nossos sonhos, malabaristas que somos na corda-bamba do tempo. Foi com ela que, como bons filhos, voltamos ao chão de onde brotamos e respiramos o ar de nossos tempos idos. Luiz Gonzaga é o arquétipo nordestino por excelência e o picadeiro é a vida a encenar-se.

 Hoje voltamos para dentro da lona e compreendemos o que vem a ser o círculo. Como naqueles antigos circos sertanejos, retornando sempre na mesma época do ano, cá estamos nós, esperançosos para ver a cortina se abrir e lá, de um misterioso e secreto lugar, ver o Lua surgir, crescendo e se fazendo vivo, abrindo a sanfona branca e arrancando do peito a voz mais terna e saudosa a cantar: — Eu vou mostrar pra vocês… como se dança o Baião!

Fonte> O texto de Aderaldo Luciano foi escrito para o programa do espetáculo Baião – a homenagem do circo a Luiz Gonzaga, encenado pela trupe do Circo Crescer e Viver, dirigido por Ernesto Piccolo, com roteiro de Rogério Blat e direção musical de Daniel Gonzaga.
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