LIVRO NARRATIVAS DE AREIA, AUTORA ESCRITORA E MESTRE EM LINGUÍSTICA, JANAÍNA AZEVEDO

As cidades me incomodam desde sempre, mas uma me incomoda mais do que todas. Juntem-se todas as cidades do mundo, inclusive as erguidas por alucinações com drogas ou variação de juízo, as ficções de livros religiosos ou infernais, as desaparecidas ou que aparecerão, as sonhadas nos sonhos noturnos ou matinais, as destruídas pelas forças políticas ou pela guerra, o catálogo de cá e de lá, à frente e por trás dos muros, acima e abaixo dos céus e da terra, nenhuma me incomodará mais que a cidade cujo nome, hoje, agora, me é tão difícil escrever ou pronunciar.

As histórias dessas cidades haverão de ser contadas e anotadas, revistas e ampliadas, selecionadas e inventadas por homens e mulheres que contam ou narram suas próprias histórias. Seus olhos e corpos são feridos e marcados pela luz e pelas trevas, pelo fogo e pelo gelo de seus próprios pelos. Dessa forma, no abissal ano de 1862, uma peste colérica varreu a cidade, dizimou centenas e arrastou outras centenas para o desespero. Semelhante a hoje, quando nos trancafiamos em nossos muros e tetos, abertas apenas as janelas tecnológicas, assim foram aqueles dias, relembrados por Antonio Borges, em sua sala na capital.

Talvez você queira começar a ler essas Narrativas de Areia por A Entrevista, cujo personagem síntese citei no final do parágrafo anterior. Ou talvez você já tenha iniciado a leitura e nem saiba enquanto está lendo esta nota introdutória, em sua primeira frase. Veja: há alguns anos, 1999, no auge de minhas dores mais densas, Janaína Azevedo publicava o seu livro-labirinto Marias. Aquele não era um livro de estreia, era um livro abre-alas. Compreendíamos a reunião de contos como o resultado de algum caminho já percorrido, de alguma estância existente, de uma cidade de letras que se rompia em vida, de um barracão-ateliê onde os maçaricos trabalharam com dedicação extrema.

Mesmo que você tenha lido Orquídea de Cicuta, vou repetir-lhe a máxima: ninguém deve morrer levando consigo uma história. É um imperativo da humanidade contá-las, revelá-las, introduzi-las de volta no ouvido e nos óculos dos vivos, mesmo que nas casas onde sejam lidas ou ouvidas existam mais meninos que esperança. Aliás a esperança é uma luz regente nos leitores. Enquanto eu-menino nutro minhas esperanças no texto de Janaína, assenhoro-me do seu destino de autora afinada, afiada e pronta, no auge da maturidade, carregando o peso da leveza, o fardo recheado de ilusionismos reais.

Não sei se vocês já observaram o vento assoviando onde quer e como quer. Atravessa a mata, não escolhe abrigo, desata-se na chã, redemoinha-se nas tocas, levanta as saias, descobre telhados, surrupia chapéus, faz chover de lado, arranca árvores, soterra monumentos, balança a corda da forca, fere a pele do rosto, assanha os cabelos, espalha papéis, arremessa pássaros, confecciona os argueiros, varre as narrativas, molda a areia. Não há um só homem, nem um só amor, nenhuma distância, qualquer presença ou ausência insensíveis ao vento frio. Mas Janaína o doma. Janaína o aprisiona, magia e aplicação, no timbre de sua letra, no seu espectro vogal.

As duas partes de suas Narrativas de Areia não foram apartadas pela ventania. Foram construídas, primeiro com a compra de uma casa até a demolição de outra. Depois com a reunião das almas mortas e a fera manifesta rompendo a geografia acidentada da cidade, revelando seu corpo feminino e uma cabeça de medusa para tantas significações. O caminho de Janaína tem sido o caminho da fera. Escrever e observar, deixar-se habitar no casario da tradição, observando sua demolição e reinvenção, ler e aprofundar-se na com-tradição histórica de um povoado que se sonhou metrópole e se acordou arrabalde. 

Depois de reler a obra de Janaína Azevedo, desde aquele já citado Marias, premiado e santo, até este que aqui se sopra, fica-me a certeza mais geral: passou da hora de agradecer-lhe a existência. A única letra acesa na noite brejeira, a última bela face no papel dos desterrados, como eu. Parece-me que há um grande circo armado, debaixo do qual um padre sem batina reza a missa do galo. E uma noiva dispara num choro sem fim, testemunhando as melhores histórias que se pode contar no mundo. Obrigado, Janaína, pela grandeza de reunir aqui a areia que o vento carregou vestida de poeira.

*Aderaldo Luciano-Rio de Janeiro, Mestre e doutor em Ciência da Literatura (pandemia do novo coronavírus, 2020)

Nenhum comentário

← Postagem mais recente Postagem mais antiga → Página inicial

0 comentários:

Postar um comentário