TERRA YANOMAMI E O RETRATO DO ABANDONO: CRIANÇAS YANOMAMI SOFREM COM DESNUTRIÇÃO E FALTA DE ATENDIMENTO MÉDICO

Crianças doentes, desnutridas e sem atendimento médico. O Fantástico passou duas semanas dentro da terra Yanomami, a maior reserva indígena do Brasil, e constatou um cenário desolador.

Comunidade indígena constrói posto de saúde por conta própria após mortes por malária na Terra Yanomami.

No meio da selva amazônica, duas mães Yanomami com os filhos pequenos no colo deixam a comunidade Macuxi Yano em direção aonde viram o helicóptero seguir. Debaixo do sol forte, elas remam em uma canoa por duas horas, em busca de ajuda para as crianças, que ardem em febre.

O esforço, porém, é em vão: quando chegam na comunidade Xaruna, o helicóptero que poderia levá-los ao posto de saúde em Surucucu já tinha partido. Encontram apenas um técnico de enfermagem munido de frascos de dipirona, xarope para tosse e uma balança. Era a primeira visita de um profissional de saúde no local em cerca de dois anos.

Desoladas, as duas mães não escondem a angústia. Uma delas chora. Se de helicóptero a ida até o posto levaria 25 minutos, a pé, são 15 dias de caminhada pela floresta.

O posto em Surucucu, referência na região por ser a maior unidade de atendimento dentro da terra indígena, se resume a um barracão de madeira de chão batido e com estrutura precária.

Na unidade, uma outra mulher e o filho, também de Macuxi Yano, são atendidos depois de cinco dias atrás de socorro. A mãe, Maria Cláudia Yanomami, de 20 anos, chora ao relembrar a busca cansativa por assistência para o filho doente, Leo, de 2 anos. Nem todos conseguem como eles. Na semana anterior, um pajé da mesma comunidade dela morrera de malária por falta de atendimento.

As cenas evidenciam a precariedade na assistência de saúde nas comunidades na Terra Yanomami, atingida pela desnutrição e malária - situação em grande parte agravada pelo garimpo ilegal.

Com mais de 370 aldeias e quase 10 milhões de hectares que se estendem por Roraima, fronteira com a Venezuela, e o Amazonas, a reserva Yanomami, a maior do país, enfrenta problemas tão grandes quanto a sua extensão territorial.

Ao todo, são 28 mil indígenas que vivem isolados geograficamente em comunidades de difícil acesso, mas que, em grande parte, já sofreram alguma intervenção de fora, com a ocupação de não indígenas, como é o caso dos garimpeiros - estimados em 20 mil.

Durante quatro dias do mês de outubro o g1 acompanhou equipes do Fantástico e percorreram as comunidades Heweteu I, Heweteu II e Xaruna, que ficam no coração da floresta e estão entre as mais vulneráveis da região.

A viagem foi feita a convite do Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye'kuana (Condisi-YY), em Boa Vista, e teve o apoio do Greenpeace, da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e da Hutukara Associação Yanomami.

O Condisi-YY é um órgão oficial, mas com autonomia, a quem compete fiscalizar as ações de saúde na região, de responsabilidade do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (Dsei-Y). O Dsei, por sua vez, é subordinado à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde.

Em um cenário dramático, a reportagem registrou cenas inéditas e exclusivas de crianças extremamente magras, com quadros aparentes de desnutrição e de verminose, além de dezenas de indígenas doentes com sintomas de malária nas três comunidades visitadas, como em Heweteu II (na foto acima).

O procurador do Ministério Público Federal em Roraima, Alisson Marugal, ao analisar o material, classificou as imagens de "chocantes".

"São imagens chocantes e demonstram muito bem a realidade vivida pelo povo Yanomami. São imagens que não conseguimos observar por documentos, relatórios. Só o trabalho da imprensa consegue revelar o que acontece no interior da floresta. Os Yanomami estão sozinhos e invisibilizados."

O presidente do Condisi-YY, Júnior Herukaki Yanomami, que tem contato intenso com as comunidades, resume o drama:

"A saúde Yanomami está em colapso".

No entanto o coordenador do Dsei-Y, Rômulo Pinheiro, o distrito sanitário responsável por garantir a prestação de saúde aos Yanomami, minimiza a situação. Segundo ele, essa "não é uma realidade em toda a reserva".

Indicado pelo Ministério da Saúde para responder aos questionamentos da reportagem, ele atribui os problemas à complexa logística da Terra Yanomami e diz que "trabalha para somar". Ele atribui a responsabilidade a outros entes federados, embora a legislação diga que a saúde indígena compete exclusivamente à União.


"Sabemos que temos que melhorar, sim. Muita coisa tem que ser melhorada. Estamos trabalhando diuturnamente para melhorar essa situação, principalmente dessas regiões onde a reportagem foi feita. Estamos trabalhando, solicitando de outros órgãos, porque a saúde como um todo é tripartite, é competência da União, dos estados e dos municípios. Então, devemos todos, unidos, tentar combater esses problemas lá instalados", afirma Pinheiro.

No entanto, segundo o advogado do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Ivo Cípio Aureliano, a responsabilidade da saúde indígena compete apenas à Sesai. Quando a situação é grave e o indígena precisa receber atendimento fora da reserva, o hospital para onde ele é levado pode até estar sob gestão estadual ou municipal, mas ele continua sob a guarda da Sesai.

"A atenção diferenciada à saúde dos povos indígenas é um direito conquistado na Constituição Federal de 1988 e regulamentado pela Lei nº 9.836 de 1999, conhecida como Lei Arouca, que estabelece o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena do SUS com base nos Distritos Sanitários Especiais Indígenas, sob a responsabilidade do governo Federal. A criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), no ano de 2010, foi resultado disso", resume Aureliano.

O Ministério da Saúde também afirma ter destinado R$ 216 milhões à saúde Yanomami desde 2019. O montante foi para aquisição de insumos, bens, medicamentos, contratação de pessoas, entre outros.

A desnutrição infantil, de acordo com servidores da saúde que atuam no polo base de Surucucu, está diretamente ligada à malária e ao garimpo.

O avanço da extração ilegal de ouro contamina rios e destrói recursos naturais da floresta, afugentando a caça. Doentes, os adultos não conseguem buscar comida para a família ou cultivar plantações, o que impacta na dieta das crianças, as mais fragilizadas.

O isolamento geográfico e a falta de comunicação com as autoridades deixam as comunidades ainda mais vulneráveis. Ironicamente, é aos invasores que os indígenas recorrem quando, no limite, precisam de socorro e não o encontram.

Como não falam português, eles se valem de mímicas para vencer a barreira do idioma e explicar que necessitam de atendimento. Os garimpeiros, então, usam celular com internet via satélite para contatar os postos de saúde.

Foi o caso do bebê Leo, atendido em Surucucu:

"Ele está há dias com tosse, diarreia, febre. Não come direito e não anda por conta da fraqueza. O socorro demorou muito para chegar, a gente solicita, solicita e nada. Tive que procurar garimpeiros, que ligaram para pedir ajuda. Estou muito preocupada sem saber como salvar meu filho", conta a mãe, Maria Cláudia.

A indígena, a propósito, mesmo não falando uma palavra na língua portuguesa, tem esse nome por uma razão comum na Terra Yanomami: para facilitar na identificação, profissionais da saúde ou, às vezes, até garimpeiros, acabam escolhendo, informalmente, nomes em português para os Yanomami, que passam, então, a adotá-los.

COBRANÇAS AO GOVERNO FEDERAL: Para o gerente de povos isolados da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), Luciano Pohl, que acompanhou a missão conduzida pelo Condisi-YY, da qual a reportagem fez parte, a situação em que vivem os indígenas de comunidades Yanomami reflete a completa ausência do governo federal.

Segundo ele, é um cenário "que necessita de cuidados emergenciais" e "que a falta do estado está gerando um problema seríssimo para a população Yanomami".

"O estado está ausente, incapaz e inoperante. A gente vê uma estrutura do Dsei precária para atender a todas as comunidades, pouca gente, pouco remédio. A gente não vê a Funai. Chegamos a perguntar [aos indígenas] sobre a Funai e eles mal a conhecem. Então, isso é uma grande falta", diz. (Rede Globo e G1/Programa Fantástico)

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