Clarissa Loureiro: Ler clássicos para que?

Um dos problemas atuais da formação humana, seja cultural ou moral está na ausência da leitura. Há uma impaciência comum do homem moderno com a linguagem que se demora em si. Como se ela fosse aquele amigo insistentemente verborrágico cujo palavreado e as ideias extravagantes adormecem o nosso interesse, tirando-nos do foco que nos caracteriza cotidianamente: “ a pressa de viver e alcançar o mais rápido os nossos objetivos”. A Literatura Clássica nessa nossa trajetória passa a ser uma pedra no caminho. Por que? Por que temos uma visão assustadora de cânone ocidental. E a função de minha fala é desconstruir isso. Concordo com Harold Bloom de que o cânone ocidental se identifique com uma lista de livros escolhidos para serem ensinados em nossas instituições de ensino como uma elite da linguagem, caracterizada por sua DIGNIDADE ESTÉTICA OU MELHOR AUTORIDADE ESTÉTICA. E sei que este preceito cria inicialmente uma guerra interior natural no homem moderno seduzido pela linguagem midiática com suas cores e objetividade linguística. E inquisições brotam como: Para que eu vou ler o que um grupo ( a crítica literária) dita como melhor, diferenciado. Quem são essas pessoas para imporem o que é belo?

São perguntas bem naturais, sobretudo, na juventude atual que busca, além da beleza da linguagem, uma discussão social, seja de gênero, raça, luta de classe social. Gente, o cânone não é comprometido com as causas sociais. E vou mais longe, esta não é a base da Literatura em sua origem. A boa literatura que se torna canônica é universal, ou seja, atravessa culturas, nações, tempos, transgredindo qualquer expectativa de se moldar aos interesses de um grupo. Sim, ela é difícil, como difícil é amar alguém em suas entranhas mais profundas além de um orgasmo instantâneo da penetração. Difícil como difícil é nos entender nos nossos mais perturbadores questionamentos interiores. Ela é difícil porque o homem em si é difícil em sua própria existência atemporal. O problema é que este mesmo homem moderno foge de uma reflexão sobre isso, simplificando-se a partir de linguagens que também o simplifiquem. Porque conhecer-se doi. Pior, interpretar-se no outro, ainda mais. E o individuo moderno repete-se: “já tenho problemas demais para procurar buracos dentro de mim que nem eu mesmo alcanço”. E fica na superfície.

As manifestações midiáticas de entretimento imperam. É bem mais fácil buscar-se em super-herois de quadrinhos que muitas vezes são adaptados para o cinema. Quem não se emocionou com a paternidade e a morte de Wolwerine em Logan? Eu me emocionei. Quem não pára para refletir sobre a metáfora do mutante, identificando-se com este próprio conceito. Eu mesma, Clarissa Loureiro, doutora em Teoria da Literatura, acadêmica, escritora, e dentro da categoria chata crítica literária me sinto a própria Jim em todos os seus diversos aspectos. É compreensível. O cinema fascina e descomplica. E as séries? São tantas interessantes né? Desde históricas como A rainha a fantasiosas Westewoold ou Guerra dos tronos. É uma concorrência desleal, não é? NÃO, NÃO É. O Problema é o que eu já disse. É a nossa constante busca de nos simplificar para corrermos eternamente para lugar
nenhum.


Na minha fala, vamos tentar ainda entender o cânone como um amigo chato que buscamos evitar na mesa do almoço, mas com quem podemos aprender muito se insistirmos. Em suas origens, o cânone é uma palavra religiosa, que se refere a uma escolha entre textos que lutam uns com os outros pela sobrevivência, vivendo agressões dos atacantes que buscam destruí-los. Sim, gente, o cânone nasce de uma batalha por uma sobrevivência dos textos no nosso imaginário, ao longo de décadas e, depois, séculos. É simples compreender isso. Existem músicas que tocam na rádio um mês e, depois, são esquecidas. Já outras, ecoam no nossos ouvidos justamente nos momentos que nós mais precisamos de nós mesmos. E o critério é o mesmo: a seletividade a partir de critérios severamente artísticos. Ai eu concordo com Harold Bloom quando afirma que toda originalidade artística se torna canônica. É preciso uma criatividade na linguagem que extrapole o comum, renovando-a, tornando-a tão atraente que queiramos vê-la como aquela mulher bonita que passa e deixa-se em detalhes diferenciados do olhar, do gesto, do cheiro, no intrigante desenho da boca feito pelo batom. Não é só a mulher enquanto corpo. È o que faz dele quando passa e fica na gente. E estas ideias surgem das próprias metáforas de Vinicius no célebre poema “ Mulher que passa”. O cânone é isso. Ele se apropria do corpo ( a linguagem) e o eterniza no que coloca sobre o ele, ou no que o transforma, fundando um pensamento ocidental.

Apesar de minha fala ser sobre os clássicos brasileiros, sou desobediente e ainda me apego a Bloom quando afirma: “o que seria do pensamento ocidental sem Shakespeare”. E ainda diz que Shakesepeare “ inventou o humano”. E eu assino em baixo. O que seria do amor romântico sem o célebre sacrifício dos jovens Romeu e Julieta que nos fazem refletir sobre a vivacidade da paixão de nosso próprios filhos e de nós, no passado. Sim, a paixão é jovem e se acaba antes da gente. Por isso, a beleza do sacrifício. È preciso que os amantes morram para que a paixão se eternize. Ai eu vou a um Gonçalves Dias pouco comentado: “Se se morre de amor! – Não, não se morre .... Amor é vida; é ter constantemente/ Alma, sentidos, coração – abertos/ Ao grande, ao belo, é ser capaz d’extremos/D’altas virtudes, ser capaz de crimes!”. 

Vejam que são dois autores de períodos históricos e estéticos diferenciados,dialogando sobre um tema universal que nos incomoda, nos fascina: o amor românticos. São duas literaturas que se tornam clássicas pois como afirma ítalo Calvino: os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como INESQUECÍVES e também quando se ocultam nas obras da memória, mimetizando-se como INCONSCIENTE COLETiVO OU INDIVIDUAL. Tanto a tragédia clássica de Shakespeare como este poema romântico de Gonçalves Dias falam sobre a capacidade de se entregar ao amor de modo tão pleno que morremos um pouco quando ele se acaba. E por que não morrer de amor como Julieta e Romeu? É o que mais queremos, mas não podemos, porque precisamos continuar correndo. Afinal temos pressa e “todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam ridículas se não fossem de amor”. Já diria o nosso papa canônico Pessoa, ironizando o próprio amor. 

Precisamos correr porque o tempo de minha fala está se esgotando, temos hora marcada. E o outro palestrante precisa falar. Mas eu sou teimosa e insisto em ficar em Shakespeare. Sou desobediente, sempre! Um dos temas mais comuns nas tragédias de Shakespeare é a loucura. Lady Machbeth enlouquece, lavando eternamente suas mãos pelos crimes que cometeu. Rei Lear enlouquece por conta da falta de amor de suas duas filhas, vagando com seu parvo sábio pelo desertos interiores de si mesmo. Ofélia enlouquece quando descobre que seu amado Hamlet matou seu pai, E o próprio Hamlet se faz de louco para vingar seu pai. São narrativas canônicas na própria sacralização da loucura que depois será retomada por Machado de Assis em obras relevantes de sua trajetória literária. Mas continuemos com Shakespeare. Por que esta sacralização? Ora, gente, há uma ressignificação da loucura. Ficar louco é um efeito de completa sanidade de si e, ás vezes, do mundo.

Machbeth tem a mais dolorosa consciência de sua condição assassina e repete isso, lavando suas mãos insistentemente como se quisesse lavar sua alma. Esse tema depois é retomado por Dostoivsky em “ Crime e Castigo”, quando Rodion Românovitch Raskólnikov vive asfebres da consciência por ter assassinado uma idosa para sobreviver, gerando um outro recurso da literatura presente na realização da consciência: a polifonia. Depois, retomado pela Obra Angústia, quando traz à tona a consciência de um assassino vivendo delírios internos. Matar é fácil, ter a consciência da morte do outro dentro da gente que é difícil. E ai eu volto a Italo Calvino quando afirma que “Os clássicos são aqueles que chegam até nós trazendo consigo marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura e nas culturas que atravessaram ( ou mais simplesmente na linguagem ou nos costumes)”. Shakespeare está Dostoivsky que está Graciliano, ressignificando um tema que incomoda até hoje: a humanidade de um assassino. Para a gente, é mais fácil jogar pedras nos vilões de novelas ou mesmo nos goleiros dos jornais sensacionalistas. Temos que simplificar. É ou não é. Ser não sendo é muito complicado, mesmo isso acontecendo conosco o tempo todo.


Ler os clássicos para que? Sofrer, a vida já é sofrida. Mas por que é? A vida sempre existiu. E nós nunca soubemos vê-la. Os clássicos abrem os olhos para esta dolorosa existência da vida. E eu me detenho diante de Ofélia, minha personagem Shakesperiana preferida e sua célebre frase: “ eu não temo o que sou mas o que posso me tornar”. É a fala de uma louca antes de um suposto suicídio por não suportar amar o assassino do seu próprio pai. Eis a loucura em sua extrema sanidade. Como ela poderia imaginar que ela persistiria a amar o homicida de sua origem. Mas ela sabe que ama. E é essa consciência quelhe desequilibra. Então, saber desequilibra a gente. Sim. A ignorância nos fornece a sanidade mental que simploriamente definimos como “ dormir em paz”. E a falta desta paz é a loucura também presente em Machado, quando Flora em “ Esau e Jacó” se descobre, precisando do amor de dois gêmeos fundidos num só para se descobrir plena. Ama como Ofélia o inconciliável. E ai nós temos dois Clássicos mais uma vez quando se identificam com a frase de Italo Calvino quando afirma que “UM CLÁSSICO É UM LIVRO QUE NUNCA TERMINOU DE DIZER AQUILO QUE TINHA A DIZER”. Os dois livros se completam no tema porque tratam de um tema inesgotável: a capacidade do amor enlouquecer a gente, nos tornando lúcidos acerca de nossa fragilidade humana. Porque a nossa fortaleza é mais uma vez uma ilusão de nossa correria, como já disse antes, para lugar nenhum. Mas talvez a pior lucidez é a da própria fragilidade humana espalhadas nas ações dos homens que nos destroem ou nos prejudicam ou mesmo nos frustram. Ai retomo mais uma vez Shakespeare.


Rei Lear é a própria reflexão sobre a decadência do homem com a decadência da família. Fala de um sentimento universal: a solidão na velhice. Como se sente um pai metaforicamente abandonado pelas 3 filhas? E ai atualizo isso para os dias atuais. Que pai não se sente rei de seu lar até o momento que as filhas casam-se, substituindo-o por outro, ou quando sozinhas escolhem construir seus próprio mundo. Todos não enlouquecem um pouco, esperando fazerem parte de um novo reino que não cabem mais? Porque cada reino tem um rei. A loucura é exatamente a dor de não poder mais imperar. Mas imperamos?. Quando? A loucura é a certeza que somos frágeis quando amamos e esperamos. Penso na solidão de meu pai. 3 filhas em cidades diferentes. E eu que nem casada estou ouço sofrendo sempre a eterna frase repetida: “ juízo, minha filha”. A minha liberdade é a prisão do meu pai que o enlouquece também se sentindo abandonado depois de ter me dado todas as riquezas de sua alma. E onde entra os clássicos nisso? Retomo Ítalo Calvino: “O seu clássico é aquilo que não pode ser-lhe indiferente e que serve para definir a você próprio em relação e talvez em contraste com ele. O Clássico faz isso com a gente. Mas precisamos ler com o corpo no sentido definido por Roland Barthes quando afirma que o texto de prazer: “é aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura. Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas, do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem”.


Precisamos nos encontrar aos clássicos como nos entregamos a nós mesmos nos personagens, espaços, ações, cientes de que sempre haverá uma conciliação de horizontes de expectativas, bem no sentido definido por Robert Jauss quando diz que “O prazer estético envolve participação e apropriação, uma vez que, diante da obra literária, o leitor percebe sua atividade criativa de recepção da vivência alheia. A experiência estética consiste em que o leitor sinta e saiba que “seu horizonte individual, moldado à luz da sociedade de seu tempo, mede-se com o horizonte da obra e que, desse encontro, lhe advém maior conhecimento do mundo e de si próprio”. 


A experiência estética, portanto, compreende prazer e conhecimento; e, por meio do diálogo entre texto e leitor, a criação literária atua sobre um público oferecendo padrões de comportamento e, ao mesmo tempo,emancipando-o. O que quero defender com isso? Ler os clássicos é desbravar-se, ciente do que Umberto Eco defende de que o texto literário é um mecanismo preguiçoso (ou econômico) que vive da valorização de sentido que o destinatário ali introduziu. Nem todo clássico será bem recebido pelo leitor porque nem sempre o leitor estará pronto para se relacionar com ele. Concordo com Mário de Andrade que para se ler Machao de Assis, é preciso ter maturidade. Haja vista a minha relação com Dom Casmurro que se transformou, à medida que minhas leituras com outras obras e de vida foram se alterando. Aos 18 anos, eu lia com a ansiedade de uma jovem. Queria respostas rápidas.

Parece que na juventude, a pressa é ainda mais intransigente. E eu odiei, mal entendia a própria Capitu que se fala dentro de mim. E a gente houve bem a gente quando se tem 18 anos? Na década de vinte,apliquei aspectos do realismo na obra, numa avaliação estética vazia de aspectos interpretativos significativos. Eu ainda não estava pronta. Mas já sabia disso. A consciência da linguagem é também um processo vagaroso de se alcançar. Só depois dos trinta, a vida eas leitura de Otelo em Shakespeare me mostraram Bentinho e toda a discursão sobre o ciúme como um aspecto humano atemporal e entendi que Machado buscava construir uma pessoa moral e não discutir o adultério em sim. Eu havia me encaixado no conceito de leitor modelo, defendido por Umberto Eco.

Eu lia Machado em busca de uma linha filosófica que o próprio Machado havia traçado para si, num jogo dialético de co-participação entre autor e leitor no processo de realização textual. E hoje me considero machadiana no que busco dele em outras obras que avalio e no meu próprio olhar sobre o mundo. Mas nem todos serão. E é essa graça. Para cada leitor há um clássico ou dois ou três que insiste tanto em ler que surge uma cumplicidade tamanha entre leitor, o autor, livros, suas linguagens, seus temas que eles ecoam nos nossos ouvidos, quando nos sentimos tão sós de não ter jeito, bem no sentido bandeiriano. Mas precisamos insistir. Ler os clássicos sejam brasileiros ou não é um trabalho de insistência, como também é a de se relacionar com as pessoas.

A Academia nomeia, mas somos nós quem gravamos em nossas vidas, quando descobrimos que eles dizem exatamente o que nem series, nem novelas, até filmes não falam: “ o silêncio cheio de vozes existente na leitura”. E é ele que os faz atravessar séculos porque o que mais o homem precisa é de um diálogo silencioso consigo mesmo. E isso só a Literatura proporciona...

Fonte: Clarissa Loureiro-professora da UPE. Doutora em Teoria da Literatura
Nenhum comentário

← Postagem mais recente Postagem mais antiga → Página inicial

0 comentários:

Postar um comentário