Antonio Barros. Viva a Música mais Brasileira

"Chora Nordeste neste baião em homenagem a teu irmão/ Chora comigo Nordeste chora comigo Sertão/ Chora o caboclo que veste roupa de couro gibão... Chora meu olho d'água chora meu pé de algodão. As folhas já estão se orvalhando saudade do nosso irmão Zé Dantas. As saudades são tantas  Por que você partiu...Chora também nosso baião chora por essa cruel separação...No meu canto  na minha voz vai o pranto, o  pranto de todos nós. Chora Nordeste...Saudade de Zé Dantas".

Homenagem a Zé Dantas. É um dos mais belos versos musicados da literatura brasileira. Sensibilidade de quem sabe ser grato e falar de amor fraterno. O autor é o paraibano universal Antonio Barros.

Estes dias tive a suprema alegria/emoção de compartilhar por algumas horas da presença de Antonio Barros. Antonio Barros que eu não conhecia pessoalmente, mas que foi responsável e isto falei pra ele, responsável, pelo cidadão, pesquisador, jornalista que sou atualmente. Imaginei o menino lá da Paraiba que ouvia o ídolo no pé do Rádio.

Vivi 50 anos e o destino me proporcionou este encontro. Na maioria do tempo o ouvi. O brilho das palavras e lembranças faladas cantadas de um Toinho que conviveu e deu vida a centenas de músicas interpretadas por Luiz Gonzaga, Trio Nordestino, Trio Mossoró, Dominguinhos, Ney Matogrosso e quase toas as estrelas da música brasileira.

As músicas de Antonio Barros embalou meu tempo criança através das ondas do Rádio. Adulto me fez pensar sobre o Nordeste e a importância de sua história. Eu ouvi certa vez um locutor dizendo que a música era  autoria de Antonio Barros. Logo fiquei a imaginar de onde viria tamanha grandeza humana para falar dos mistérios mais escondidos do ser humano, das paixões, desencontros, esperanças de uma chuva que está para chegar.

Hoje compreendi com a trajetória do tempo. Antonio Barros é um sopro de Deus, Poder Superior feito de Luz que deu de presente a este pedaço de terra, um Poeta. Poeta Antonio Barros.

Lembro que meu amigo Aderaldo Luciano numa carta endereçada ao cantador Beto Brito, relatou a certeza e vai colocar isso em um livro, "que Deus era um tocador de pife e foi soprando nele, num pife feito de taboca, que deu vida ao Homem com seu sopro fiel".

É por isto que todo dia às 18horas digo em prece: Antonio és um Sopro de Deus...Agradeço por tua existência e a cada letra, ritmo, melodia, harmonia que você alimentou por este Brasil afora. És alegria das Noites de São João, São Pedro e Santo Antonio. És luz. Antonio Barros fogueira luz acesa da grandeza da música que encanta almas e alimentas os seres humanos de Paz.
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NOS CAFUNDÓ DE BODOCÓ A SONORIDADE, O RITMO DA PALAVRA QUE REVELA MUNDOS

Cada arte emociona o ser humano de maneira diferente! Literatura, pintura e escultura nos prendem por um viés racional, já a música nos fisga pelo lado emocional. Ao ouvir música penetramos no mundo das emoções, viajamos sem fronteiras.

Fui a Bodocó, o homem que pesquisa é um lutador. Desbravador. Deve vestir a roupa do destemor e despir os pés para adentrar os caminhos, sentindo o chão que pisa...há anos eu precisava sentir a poeira dos caminhos de Bodocó. 

Bodocó. Desde menino a palavra Bodocó zumbe nos meus ouvidos. Na cidade, o sentimento invadia meus pensamentos, fortalecia a alma de menino jornalista: "Nas quebradas caem as folhas fazendo a decoração. Chora o vento quando passa nas galhas do aveloz. Chora o sapo sem lagoa todos em uma só voz. Chora toda a natureza na esperança, na incerteza de Jesus olhar pra nós...Nos cafundó de Bodocó, de Bodocó, de Bodocó. Nos cafundó de Bodocó, de Bodocó, de Bodocó"...Estes são os versos cantados por Luiz Gonzaga, música de Jurandy da Feira. f

Já Flávio Leandro canta Meu Xodó: "Ai que saudade não posso viver tão só/
Eu volto já, eu vou rever meu Bodocó...Ao som das chuvas de março/Esquentar em teu mormaço meu regaço nas manhãs"... 

Na companhia do amigo Flávio Leandro/Cissa/Emanuel, Jurandy da Feira, Miguel Alves Filho, Franci/Dorinha, no Rancho Febo, tive a felicidade de apreciar a sonoridade da palavra Bodocó.

A cidade é mencionada na canção "Coroné Antônio Bento", que integra o primeiro LP de Tim Maia, de 1970. e que por curiosidade tem na percussão Jackson do Pandeiro. A música conta a história do casamento da filha de um "coronel", que dispensa o sanfoneiro e chama um músico do Rio de Janeiro para animar a festa. A canção é de autoria de Luis Wanderley e João do Vale.

A cidade também consta na música Pau de Arara (Guio de Moraes)..."Quando eu vim do sertão, seu moço, do meu Bodocó, a malota era um saco e o cadeado era um nó, só trazia a coragem e a cara, viajando num pau de arara, eu penei, mas aqui cheguei".

E uma das mais belas ja citadas aqui: Nos Cafundó de Bodocó, de Jurandy da Feira. "Nas caatingas do meu chão se esconde a sorte cega/Não se vê e nem se pega por acaso ou precisão/ Mas eu sei que ela existe pois foi velha companheira do famoso Lampião".

Também ouvi atentamente o relato de Flávio Leandro quando mostrava uma análise, diálogo/pesquisa, a gênese de nossas raízes. Flávio aproxima nossos ancestrais ao termo, a cultura árabe. Lembrei que Elomar, em sua cantiga O Violeiro, canta “Deus fez os homens e os bichos tudo fôrro...”. De forria para fôrro, de fôrro para forró, celebração da liberdade, da quebra do jugo e dos grilhões. 

E  aqui registro, o magistral Emanuel, o Manu, filho de Flávio Leandro/Cissa, na batida do Pandeiro. Ritmo e talento.

Miguel Filho me levou a caminhar na história de Bodocó. Pedra Claranã. Capela São Vicente de Paulo e histórias que envolvem Bodocó e a família de Luiz Gonzaga.

Miguel Filho é o típico sertanejo. Humildade franciscana. Compositor da safra das palavras de qualidade.  Miguel é compositor parceiro de Flávio Leandro, nas músicas Utopia Sertaneja, uma das mais belas da literatura brasileira; e de Fuxico. Miguel tem músicas gravadas também com o Quinteto Violado, Pedras de Atiradeira e Experiências.

E assim a sonoridade Bodocó ganhou ainda mais beleza e sentido. Compreendi que existem palavras que são portas/janelas servem para revelar mundos e situações. Bodocó és encantamento de poesia que flui no mundo moderno e presente. 

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Escola no meio do sertão do RN forma apicultores e transforma região

No sertão de Pau dos Ferros, no Grande do Norte, divisa com o Ceará, uma escola profissionalizante virou marco na paisagem e símbolo de esperança. Lá é ministrado o primeiro – e único – curso de apicultura de um instituto federal do país.

A estrutura é de fazer inveja a muita escola de elite mundo afora. Grande parte da eletricidade que consome é gerada captando luz solar nos telhados. 

O Instituto Federal Rio Grande do Norte (IFRN) tem ainda ar condicionado e aparelhagem completa de data show, com telão e controle remoto para os professores, em todas as salas.

As turmas fazem Ensino Médio completo, incluindo aulas de língua estrangeira. Classes de música também estão na grade de ensino. Mas os estudantes não recebem apenas a educação padrão, aprendem junto uma profissão. Além do curso de apicultura, eles podem escolher o curso de tecnologia de alimentos e de informática.

Dos 1 mil alunos do instituto, 250 cursam apicultura. A seleção é concorrida e, do total de vagas, 50% são reservadas para alunos de escolas públicas.

Segundo a diretora Antonia Francimar da Silva, de cada dez alunos, sete vêm de classes mais populares.

É o caso do João Victor Pires da Silva, filho de agricultores, que acorda às 4h30 e viaja 60 quilômetros todos os dias, de moto e ônibus, para chegar à escola. Também é o caso de José Kelvin de Araújo Silva, filho de um conhecido tapioqueiro da região, José Zildomar Silva, chamado de Zé Tapioca.

A instituição provoca na região uma transformação parecida com a que acontece quando chove na caatinga, quando a vida explode e fica tudo verdinho. Com educação de excelência, a juventude floresce e a cidadania frutifica.

O curso de apicultura vai na vida real das profissões, para que o aluno já possa, se for o caso, ter um ganha pão longo que conclui o Ensino Médio. Por isso, as aulas práticas são intensas.

Em dos experimentos práticos, por exemplo, os estudantes desenvolvem estruturas que simulam ninhos para que os apicultores possam criar as abelhas solitárias, sem ferrão e que não formam enxames, que polinizam com mais eficiência algumas culturas e também têm papel importante na preservação da vegetação nativa da região. Já foram coletadas no instituto cerca de 300 dessas abelhas, de 15 espécies diferentes.

Além de técnicas de produção, propriamente, o curso oferece também uma formação mais científica sobre os chamados aspectos físico-químicos dos derivados da abelha, com muita pesquisa de laboratório. É que só uma análise técnica pode indicar a qualidade do mel.

"Por que ter aulas com todo esse conhecimento de análise? Porque enquanto técnicos eles podem prestar consultoria aos produtores, para já dividir e classificar (o mel)", diz a química e professora do instituto Luciene de Mesquita Carvalho.

Poderão também prestar consultoria para solucionar um desafio que, na caatinga, é maior que em outras regiões do país, a falta de pasto apícola causada pelos longos períodos de estiagem.

Nas classes, os alunos aprendem a produzir o chamado "bife das colmeias". Trata-se de uma pasta feita de albumina, uma proteína presente no ovo, da qual os insetos passam a se alimentar quando não encontram mais néctar nem pólen na vegetação ao redor.

Diferentes tipos de alimentação artificial para as abelhas vêm sendo testadas em laboratório há três anos pelo professor do instituto e biólogo Antonio Abreu.

A educação integrada com formação profissional atraiu novas empresas, novos negócios, novos empregos na região de Paus dos Ferros.

Em um sítio em Marcelino Vieira, os produtores vivem um momento histórico. Fazia seis anos que a caatinga, o semiárido do Alto Oeste do Rio Grande do Norte não via chuva. Com ela, a agricultura voltou e a apicultura também.

Eles acabaram de realizar a primeira safra de mel deste ano: cerca de 10 toneladas, um resultado até bom diante do baque que os enxames sofreram com a longa estiagem.

Dois fatores contribuíram para a reviravolta que estão dando, além do clima: o conhecimento prático do seu Antonio Medeiros, o pioneiro que 30 anos atrás começou a montar apiários na região e, sobretudo, a contribuição do curso do curso que o apicultor Euzir de Queiroz fez. Ele se formou na primeira turma de apicultura do IF, em 2015, e aprimorou várias técnicas para manter e fortalecer os enxames na época que não tem florada.

"Antes eu era criador e com o curso eu adquiri o conhecimento teórico. E hoje vejo isso como fundamental para o crescimento dos meus enxames", avalia Euzir.

E o dinheiro do mel ficou importante na região. "Com ele é que a gente mantém a criação de gado, que compra a ração dos animais, para quem tira leite especialmente. Ele é importante demais para a gente”, diz Antonio.

Mas nem todos os alunos do instituto pretendem abraçar a profissão aprendida ali. Segundo a diretora, pela qualidade do ensino, muita gente procura o curso profissionalizante como plataforma para a universidade.

O José Kelvin, por exemplo, quer ser psicólogo. Há mais de 50 alunos que saíram do IF para fazer medicina e mais de cem fazendo engenharia.

"A qualidade do ensino que é ofertado aqui é que proporciona isso. Ele (o estudante) pode até não ser o apicultor (...) mas ele vira um engenheiro agrônomo, um engenheiro de produção, um médico, um enfermeiro, um advogado".

Porém, boa parte da turma de apicultura sonha em trabalhar com as abelhas, como João Victor.

"Antes de entrar no curso de apicultura, eu não me via como apicultor, eu não sabia, na verdade, a definição de apicultura. Hoje eu posso afirmar que sou apaixonado pela apicultura."

Fonte: Globo Rural/TV Globo
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Professoras da Orquestra Cidadã transformam a realidade de jovens do Coque

Dentro de um contexto social adverso, em que muitas vezes a necessidade de ter um trabalho e garantir o sustento da família se sobrepõe à importância de se dedicar aos estudos e ter acesso à formação qualificada, as professoras da Orquestra Criança Cidadã (OCC) têm construído uma história de luta diária para manter viva a esperança de jovens da comunidade do Coque, no Recife, que sonham em viver da música. 

A professora de violino e maestrina Susan Hagar ingressou no projeto em 2015 com intuito de transformar a realidade desses alunos, principalmente das meninas que fazem parte da orquestra. "Aqui elas têm modelos de mulheres profissionais que são líderes e que ajudam as pessoas. O que talvez fuja um pouco da realidade que elas vivenciam fora daqui", observa. 

Mesmo na música, os papéis em uma orquestra ainda são predominantemente masculinos. A maioria dos regentes são homens. "Nós temos uma turma de iniciantes em que acontece algo diferente. O instrumento, como o contrabaixo, geralmente é escolhido pelos meninos, mas aqui nós temos três meninas tocando”, exemplifica Susan. 

Para a professora de sopro Eneyda Rodrigues, a figura da mulher como fonte de inspiração mostra que essas jovens podem seguir o caminho contrário daquilo que vivem no cotidiano de uma comunidade carente. "A minha mãe e minha tia eram professoras. Além delas, me inspirei bastante em uma professora de flauta que tive chamada Conceição Benck.", conta. 

"É indiscutível o papel feminino na sala de aula, principalmente para o recorte de classe econômica com que trabalhamos aqui. Não deixa de ser um resgate social mostrar para jovens meninas que elas não precisam seguir o fluxo de engravidar cedo ou depender de um marido, pois aqui há possibilidades de crescimento e que juntas podemos alcançar novos horizontes", afirma. 

Com 14 anos, a jovem Joyce Hellem, queria estudar violino, mas, após assistir um vídeo falando sobre o contrabaixo acústico, não se intimidou por ser um instrumento considerado mais “masculino”. “Nunca coloquei meu gênero na frente dos obstáculos, isso nunca me intimidou. O que importa é meu potencial e dedicação. Vivemos em uma sociedade machista e ver mulheres aqui na Orquestra Cidadã lutando e conquistando seu espaço, fazendo suas vozes serem ouvidas, é inspirador”, aponta. 

E foi esse caminho de liberdade e de poder almejar muito mais do que uma realidade social problemática possa ofertar que levou a ex-aluna da Orquestra Criança Cidadã Rebeka Muniz a se tornar professora da instituição. Ela, que teve seu primeiro contato com a música aos 10 anos de idade, hoje leciona teoria musical, solfejo e flauta doce no projeto. “Devido ao contexto que essas crianças e jovens estão inseridos, muitos ainda terminando abandonado a OCC porque precisam trabalhar. Os pais não entendem que o retorno financeiro vem através dos estudos e dedicação”, comenta.

Segundo Rebeka, o sonho de ser professora sempre a acompanhou e só não desistiu  porque teve como inspiração a professora de teoria musical da OCC Janayna Mendes. “Ela estava um pouco desfocada, mas conversamos muito. Ela prometeu que se esforçaria e gostaria de seguir meus passos. É impossível não se emocionar”, recorda Janayna. 

Fonte: Mirella Araujo-Folha de Pernambuco

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Eliane Brum: O Adeus de Ana das Carrancas a Zé Vicente (2008)

Ana Leopoldina Santos Lima era o nome dela. Isso muito antes de o barro moldar seu destino lhe dando por amor um homem que não tinha olhos para enxergá-la. Os monstros gerados pelas mãos de Ana eram cegos como o companheiro de sua vida. Com um golpe rápido, certeiro, ela vazava os olhos de suas criaturas com a ponta de um pedaço de pau. Com Ana era assim, a desgraça virava épico. Ao morrer, na quarta-feira passada (1º/10), aos 85 anos, a maior carranqueira do São Francisco voltou ao barro que a fez. E deixou Zé dos Barros, pela primeira vez, na escuridão.
Ela era uma mulher de solenidades. Não falava, entoava. “Minha vida é extensa...”, era a frase com que iniciava a narrativa. Analfabeta, fazia literatura pela boca. E mesmo limitada por uma seqüência de derrames, parte dos dedos com que tocava a lama do mundo paralisados, Ana era grande. Carregava nos gestos uma largura de alma. E o rio era seu espelho em mais de um sentido. A mulher que moldava o barro do chão só pisava o reflexo do céu. 

Ana das Carrancas costumava dizer que sua arte era a síntese de seu amor por um cego que via o mundo mas não era visto por ele. Entre ela e Zé dos Barros nunca se soube quem era criador, quem era criatura. Ela já veio ao mundo retirante, na cidade pernambucana de Ouricuri. Mas diferente de quase todos, nunca lamentou a terra estéril sob seus pés. A estirpe de mulheres da qual era continuidade moldava pratos, panelas, vasos. Ana aprendeu com a mãe, e antes dela a avó, que do barro se arranca tudo, até a vida.
Uns poucos anos depois dela, José Vicente de Barros nasceu em Jenipapo, outro canto sertanejo. Desembarcou na vida sem olhos, por culpa do amor incestuoso entre primo-irmãos. Desde cedo a ele ensinaram que “quando Deus faz uma criança sem vista é porque quer que ela sobreviva como pedinte”. Para se localizar na escuridão, desde menino ele balançava a cabeça. E nesse de lá pra cá, de cá pra lá, encontrava equilíbrio mesmo nas trevas.
Ana e Zé só cruzaram seus pés descalços quase trinta anos mais tarde. Ana tornara-se viúva desde que seu marido despencara de um pau-de-arara. Conheceu Zé pedindo esmolas na feira de Picos. Ele balançava guizos, cantava cantigas. Mas era um cego desaforado por anos ouvindo os meninos mangando dele, pegando nele. Ana, não. Era resignada, como costumam ser as mulheres com fome e filhos para dar de comer. Ana dava comida a Zé sem que ele precisasse implorar.
Como Zé acreditava que homem sem olhos não tinha direito à mulher, Ana precisou criar ela mesma o enredo de seu romance. Era uma Sexta-Feira da Paixão, tempo prenhe de possibilidades, já que até Cristo ressuscitaria em seguida. Ana aproveitou-se da data e aconselhou a Zé: “Peça uma esposa no modelo de Nossa Senhora. Uma que seja mãe e mulher”. Zé não entendeu bem, mas não quis discutir com amiga tão prestativa. Por três vezes clamou, como manda a tradição: “Minha virgem Nossa Senhora, vosso bento filho ressuscitou agora. Eu quero que me dê uma esposa no vosso modelo. Mãe e mulher”. 

Nem assim Zé compreendeu. Oito dias depois pediu a irmã de Ana em casamento. Mesmo sendo “moça-velha”, a escolhida renegou. “Se eu quisesse casar, teria casado com um de vista. Não quero saber de homem que balança a cabeça”, recusou a eleita. Ferida de morte, Ana sentenciou: “Não se orgulhe, minha irmã, que cego não é demônio. Cego é humano como qualquer cristão”. Desta vez, Zé despertou. Pediu a moça certa em matrimônio. E passaram a dividir teto e misérias: Ana na feira, Zé nos guizos.
Um dia a vizinha abordou Ana na rua. “Desenteirei açúcar do meu filho para dar esmola a Zé”, queixou-se. O rosto de Ana queimou de vergonha. Tirou uma nota do bolso e retrucou: “Enteire de novo o açúcar do seu filho. Por Zé ele não vai passar fome”. Naquela noite não dormiu. Sua tristeza não coube na rede que dividia com Zé. Quando acordou, chamou o marido e anunciou: “Meu velho, nunca lhe fiz um pedido. Mas hoje lhe peço. De agora em diante, você não vai mais pedir esmola". Assustado, Zé rebateu: “Deus me fez sem vista para que eu pedisse esmola”. Ana fincou pé: “De hoje em diante sua vista é a minha. Você pisa o barro, eu faço a peça. Nós vamos levar para a feira, nós vamos ser felizes”.
Ana pegou a enxada e caminhou até as margens do São Francisco, em Petrolina. Diante da fartura de líquidos, invocou o espírito do rio: “Meu grande Nosso Senhor São Francisco. Pelo poder que ostenta, pelas águas que estão correndo, do próprio barro melhore a nossa vida”. Ao terminar, juntou um bolo de lama e fez, sem que até hoje saiba como, a primeira carranca. Começou levando na feira, suportando calada riso e maldades. “É tão feia quanto a dona”, cutucavam. No dia seguinte, em vez de uma, Ana levava duas. Até que caiu nas graças dos turistas e dos ricos da cidade e, de lá, suas obras ganharam o mundo. Ela então deixou de ser Ana do Cego e virou Ana das Carrancas. E ele virou Zé dos Barros.
As carrancas de Ana são diferentes de todas as outras que, desde o final do século XIX, apontaram a face horrenda na proa das barcas do São Francisco. A maioria dos carranqueiros célebres esculpe em madeira, Ana, em barro. Mas a maior singularidade são mesmo os olhos vazados do seu monstro. São eles que dão a expressão melancólica, contendo mais sofrimento do que ameaça, à obra de Ana. É do feminino que Ana tira sua carranca dilacerada diante da dor do mundo.
“Os olhos vazados da carranca são uma homenagem a ele. O Zé pisa o barro, prepara o bolo, faz a forma no pensamento. Eu moldo. Furo o nariz, as orelhas. Então, toco um pedaço de pau bem feitinho no olho”, me contou ela, anos atrás. “Não me sinto bem furando os olhos. Furo com pena, com dor. É como estar judiando dele. Porque todas são ele. Então, digo: '‘Olha, meu velho, homenagem a Zé Vicente de Barros'. Fico aliviada, porque lembro que faço por amor a ele." Sacudindo a cabeça para lá e para cá, Zé dos Barros concluía: “Eu era um bicho. Virei gente. Esta mulher me fez”.
Os traços deformados das carrancas de Ana expressam, pelo avesso, a perfeição de seu amor. É este sentimento avassalador que tomava conta de Ana, anos atrás, quando ela começou a pressentir que o fio de sua vida atingia seu cumprimento. “O barro é como gente. Tem o barro ruim e o barro bom. E até o barro regular. Conhecendo o barro se conhece o mundo”, sussurrava ela. “O barro é o começo e o fim de tudo. Sem ele não sou ninguém. Foi ele que me deu o direito. Não me separo dele pra coisa nenhuma, porque eu amo aquilo que ama a mim. O barro é um caco de mim.”
As lágrimas abriam então sulcos em sua face. Por um momento, ela assemelhava-se à sua criação. Movia o rosto em direção a Zé, que não a via com os olhos, mas era o único a abarcá-la por completo. Ana então dizia: “Não estou pedindo a morte. Mas quando eu me for, qualquer pedacinho de orelha, nariz ou olho é lembrança dele. E de mim”. 
Fonte: Eliane Brum-jornalista


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Chuva acima da média que caiu durante o carnaval anima agricultores de Juazeiro e Petrolina

O assunto nas emissoras de Rádio de Juazeiro e Petrolina continua sendo chuva acima da média neste início de ano e também durante o período de carnaval que está animando agricultores na zona rural de Juazeiro e Petrolina.

Agricultores estão otimistas com o cultivo. A expectativa é que o ano continue sendo de chuva e de boa colheita.

Agricultores localizados no Distrito de Nova Descoberta, localizado em Petrolina, apostam no bom fluxo de águas e apostaram no plantio. Alguns estão conseguindo plantar até quatro culturas no mesmo espaço: milho, feijão, fava e banana.

"Esse ano foi diferente dos outros, realmente, porque choveu bastante. Os outros só dava uma chuva e pronto, ia embora e acabava. Esse ano tá sempre, de vez em quando tá chovendo, e a gente tem que tentar plantar para tirar algo”, diz José João.

Segundo a Agencia Pernambucana de Aguas e Cilma (APAC) A previsão climática sazonal para o período de janeiro, fevereiro e março/2019 foi baseada nas análises dos campos
globais dos oceanos Pacifico Equatorial e Atlântico Tropical e da atmosfera, bem como nos resultados de modelos numéricos e estatísticos de previsão climática para o referido trimestre. 

Os parâmetros oceânicos e atmosféricos apontam que o acumulado das chuvas para o trimestre JFM deverá variar de normal a acima do normal em todas as mesorregiões do estado (Sertão, Agreste, Zona da Mata e Região Metropolitana do Recife).

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Dia Internacional da Mulher: Bárbara de Alencar, a sertaneja 'inimiga do rei' que se tornou a primeira presa política do Brasil

Foram dias pendurada no lombo seco de um cavalo, com os braços acorrentados, até que Bárbara de Alencar percorresse quase 500 km entre o Crato e o Quartel da 1ª Linha em Fortaleza, onde seria encarcerada por oito meses por ter declarado a independência de uma pequena vila na capitania do Ceará de Portugal.

O ano era 1817 e ela tinha 57 anos. Era a primeira vez que uma mulher era presa por motivos políticos no Brasil.

Bárbara foi um dos expoentes da Revolução Pernambucana, movimento de oposição à monarquia que fundou uma república em parte do Nordeste mais de 70 anos antes de o marechal Deodoro da Fonseca dar fim ao Segundo Reinado e transformar o Brasil independente em República.

Para a diretora executiva da Biblioteca Nacional, Maria Eduarda Marques, o movimento é o "berço da democracia brasileira" e, apesar de ter sido mais reprimido - e com maior crueldade - do que a Inconfidência Mineira de Tiradentes, é "pouquíssimo estudado".

Em 2017, a Biblioteca Nacional fez uma ampla exposição sobre a Revolução Pernambucana. Entre os documentos daquela época, diz a historiadora, aparecem os nomes de apenas três mulheres: duas escravas e dona Bárbara do Crato, como era chamada.

"A Revolução Pernambucana foi um movimento que nasceu entre os padres carmelitas, com lideranças urbanas e participação ativa de intelectuais que estudaram em Coimbra, em Londres. O caso da Bárbara é interessante porque ela não era nada disso", diz.

Ela era uma rica proprietária de terras, de escravos e de um sobrenome bastante influente. Três de seus cinco filhos, assim com ela, lutaram para que o Nordeste se tornasse uma república.

O caçula, José Martiniano, é pai do escritor José de Alencar - autor do clássico Iracema e, ironicamente, defensor do regime monárquico durante o período de D. Pedro 2º.

"Não encontrei qualquer menção dele à avó", diz o escritor Gylmar Chaves, que há 15 anos se dedica a pesquisar a vida da sertaneja e que se prepara para lançar uma biografia romanceada sobre sua vida.

Natural de Exu, em Pernambuco, Bárbara foi parar no interior do Ceará quando casou com o comerciante português José Gonçalves dos Santos, vendedor de tecidos, loções e miudezas na feira do Crato.

As viagens entre as duas cidades, separadas por 60 km de sertão, se tornaram comuns quando ela atingiu a adolescência e acompanhava o pai nas incursões pelas feiras que faziam do interior do Nordeste daquele Brasil um espaço muitas vezes sem fronteiras.

Aos 22, ela casou com um homem 30 anos mais velho, às escondidas, sem o consentimento do pai - e ainda convenceu um padre da Igreja Católica a sacramentar o matrimônio.

Não foi a primeira vez que Bárbara transgrediu os costumes da época, nem a última.

Depois de um ano vivendo no Crato, conta Chaves, ela já administrava em seu Sítio do Pau Seco um engenho onde fabricava rapadura e cachaça e produzia tachos e panelas.

Tudo à revelia do companheiro, que julgava que aqueles eram "negócios de homem". Bárbara tornou-se viúva jovem, com pouco mais de 40 anos, mas virou uma matriarca muito antes disso.

"Ela não deu muito espaço para o marido (dominar)", diz Chaves, divertindo-se.

Nos últimos quatro anos, o cearense rodou mais de 15 mil km a partir de Fortaleza para falar sobre Bárbara nas escolas.

O projeto, feito inicialmente de forma voluntária e hoje financiado pelo Edital Mecenas do Ceará, compreende entre 60 e 90 palestras por ano, para alunos de escolas públicas em sua maioria do ensino médio.

"Para dar a justa medida do papel das mulheres da época, ela era vista como masculina, o 'macho' da família, uma vez que tomava decisões e gerenciava os bens, sem conselhos dos homens", diz Ariadne Araújo, autora do livro Bárbara de Alencar.

O caminho para que ela se tornasse revolucionária foi pavimentado dentro do Seminário de Olinda, em Pernambuco, por onde passaram dois de seus filhos.

Fundado em 1800 para formar clérigos para a Igreja Católica, o seminário foi criado pelo bispo Dom Azeredo Coutinho, que, apesar de ser inquisidor-geral de Portugal, era "mais progressista" quando se tratava de educação, conta George Félix Cabral de Souza, do departamento de História da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco).

"Ele acreditava que os sacerdotes deveriam ajudar as pessoas do sertão. Assim, a formação envolvia amplos conhecimentos e com viés prático - que incluía o estudo da Enciclopédia de Diderot e d'Alembert", diz o historiador, referindo-se à obra referência do Iluminismo.

Ariadne Araújo pontua que, naquela época, o clã dos Alencar gozava de poder e prestígio não apenas na região do Cariri, hoje o sul do Ceará, onde estava instalado. A influência da família se estendia a outras áreas da capitania como Barbalha, Jardim e Araripe - na divisa com o atual Estado de Pernambuco - e Várzea da Vaca, hoje conhecida como Campos Sales, no limite com o Piauí.

"Bárbara certamente não só apoiava as novas ideias de liberdade como as assumiu publicamente, ao apoiar o movimento. Isso que torna o papel dela importante para a época", comenta a escritora.

Isso porque, no Nordeste do século 19, diz Maria Eduarda, da Biblioteca Nacional, a atividade política e as revoluções eram espaços praticamente exclusivos dos homens. As mulheres, em geral, nem emitiam opiniões sobre esses assuntos.

"As mulheres que viviam nos sertões nordestinos na época em que viveu Bárbara de Alencar não tinham direito a nada. Se ela teve o papel que teve nesse movimento político é porque veio de uma família com muita força, dinheiro, terras e prestígio, orgulhosos de sua independência", acrescenta Ariadne.

"Estas condições transformaram Bárbara em uma mulher que sabia o que queria, forte e corajosa, com um espaço - muito raro por aqueles tempos e naquelas bandas do interior - para existir como sujeito."

A escritora pondera que, ainda que a participação política tenha colocado a matriarca como ponto fora da curva, ela ainda era "fruto de uma cultura local extremamente moralista e católica".

Nesse sentido, destaca-se o fato de que ela, até onde se sabe, não era abolicionista - ao contrário de alguns dos seus contemporâneos rebeldes. Bastante religiosa, exigia que os escravos seguissem preceitos do catolicismo e não permitia, por exemplo, que fossem amasiados.

Os cativos, entretanto, não dormiam em senzalas, não sofriam os maus tratos comuns da época e a chamavam de "madrinha", lembra Chaves. Um deles, Barnabé, chegou a decepar a própria língua entre os dentes quando foi interceptado pelas tropas reais, para não denunciar o paradeiro da "sinhá". Outra, Brasilina, acompanhou pela mata a peregrinação de Bárbara, depois de capturada, até a prisão em Fortaleza.

Por que o Nordeste queria se separar de Portugal e virar república?
A vinda da família real portuguesa para o Brasil em 1808, fugindo das invasões patrocinadas por Napoleão Bonaparte na Europa, mudou o eixo político e econômico da colônia - concentrado nos primeiros séculos na empresa açucareira do Nordeste.

Dom João 6º, então príncipe regente do Brasil, instalou-se com a corte no Rio de Janeiro e, dali em diante, parte considerável dos impostos arrecadados em todo o território passou a fluir para a capitania, que ganhou chafarizes, iluminação pública, praças e grandes avenidas.

"Pernambuco, que era uma capitania com superávits comerciais por causa do algodão, se sentiu sobrecarregada com a taxação imposta pela corte", explica o historiador George Félix.

"A nobreza que expulsou os holandeses (que dominaram Pernambuco até 1654) se sentia como uma espécie de súdito privilegiado e se ressentiu com a mudança da coroa para o Rio", acrescenta Maria Eduarda.

Combinado à difusão do ideário iluminista e das revoluções francesa e americana e à tradição de insurreição de Pernambuco, o aumento de impostos foi combustível para a Revolução Pernambucana.

Apesar de um início atropelado - os planos dos rebeldes foram descobertos um mês antes do início previsto para a deflagração da revolta e eles tiveram que entrar em ação antecipadamente - a República de Pernambuco durou 75 dias.

O padre João Ribeiro desenhou a nova bandeira, que é até hoje representa o Estado. No dia 7 de março de 1817, é instalada uma junta provisória e tem início a experiência de autogoverno.

Com a nova Constituição, que defende a república, os direitos humanos e a liberdade religiosa e de opinião, é abolida uma série de impostos.

Antônio Gonçalves da Cruz, o Cabugá, é enviado aos Estados Unidos como embaixador da república pernambucana com o objetivo de comprar armas e angariar apoio para a luta armada.

O vinho, visto como um produto ligado à metrópole, foi substituído por cachaça nas solenidades e as hóstias distribuídas nas missas, feitas de trigo, passaram a ser fabricadas com mandioca.

Em pouco tempo, a revolução se espalhou, com apoio dos senhores de engenho - que pediram como moeda de troca que os revoltosos não advogassem pela abolição da escravatura -, de intelectuais e das massas populares.

"Eles defendiam o pagamento de menos impostos e a redução do preço dos alimentos - duas mensagens muito simpáticas à população em geral", diz o historiador da UFPE.

 Bárbara de Alencar morreu aos 72 anos, na casa de um sobrinho de segundo grau, onde estacionara para descansar no caminho.

Fonte: BBC

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