AGROECOLOGIA: nutrição e sustento econômico vêm da natureza

“Meu pai, quando encontrava um problema na roça, se deitava sobre a terra com o ouvido voltado para seu interior, para decidir o que usar, o que fazer, onde avançar, onde recuar. Como um médico à procura do coração.” O trecho, colhido do romance Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior, apresenta ao leitor a relação afetuosa entre agricultor e terra, diante das vivências em uma comunidade rural que permite, por meio das plantações, o sustento nutricional e econômico da família.

Fiel à realidade de muitos, a obra, vencedora dos prêmios Oceanos, Jabuti e Leya, aborda também a desigualdade no campo e as lutas sociais. Bibiana e Belonísia, personagens principais, procuram na fé e, principalmente, nas ervas, a cura para seus tormentos. E resistem. Parece verossímil para você? Bom, para aqueles que cresceram com familiares provenientes do interior, possivelmente sim. A conexão com a terra era tamanha que bastava a ingestão de um chá de boldo, por exemplo, para revigorar qualquer um.

Hoje, mesmo nas cidades, há quem busque se alimentar de forma mais saudável, priorizando comidas orgânicas e valorizando pequenos agricultores. A prática beneficia a agricultura familiar, que sofre uma concorrência desleal com o agronegócio, como reforça Flaviane Canavesi, professora e pesquisadora da Faculdade de Agronomia e Medicina Veterinária da Universidade de Brasília (UnB).

“A agricultura familiar tem uma importância para o Brasil, principalmente no que tange ao abastecimento alimentar interno; não se trata de um sistema agroexportador. Nesse modelo, há a chance de combater a fome e de produzir menos impacto ambiental”, explica a especialista, que também atua no programa de pós-graduação em meio ambiente e desenvolvimento rural. Assim, comprometer-se com o alimento saudável, rever a nossa postura, enquanto consumidores, e questionar-se sobre quais espaços existem para esses produtores são alguns passos iniciais que visam melhorar condições de renda e de saúde.

Conhecer histórias de quem planta, colhe e sobrevive da terra, além de inteirar-se sobre as particularidades do cerrado e dos seus frutos, também é substancial para aprimorar esse cenário. Pensando nisso, a Revista conversou com o casal Sofia e Rômulo, do Sítio Raiz; Maria Ivanildes, da Associação Agroecológica Mulheres da Reforma Agrária; e Fábio, do Vai Té Chá. Para aqueles que desejam investir em um horta dentro de casa — ou no apartamento, por que não? — vale ficar de olho nas dicas da Flora Orgânicos.

Para quem ainda acredita que os opostos se atraem, Sofia Carvalho, 29 anos, e Rômulo Araújo, 37, são ótimos exemplos do contrário. Ideais em comum, áreas de formação semelhantes e o mesmo professor como referência para a vida profissional foram apenas alguns dos pontos compatíveis que os uniram. Do trabalho com agrofloresta, no qual o casal se conheceu, nasceu a vontade dele, já agricultor experiente, de criar o Sítio Raiz há dez anos. O objetivo era atrelar os princípios da agroecologia à horticultura, visto que o mercado de hortaliças é muito forte no DF.

De lá para cá, a atividade se expandiu e a dupla passou a produzir alimentos diversificados, em vista da melhora do solo. A família também aumentou e, hoje, a chácara é lar dos filhos Rudá, 16, Isis, 12, e Maria, 4, além do agricultor e funcionário José Nascimento, sua esposa Alceane e seus filhos. “Percebemos o quanto a agricultura familiar, em um país como o Brasil, está à margem do capital. É necessário se movimentar e produzir conhecimento relevante para transformar tal realidade, para que esses agricultores possam ter qualidade de vida e construir um legado que seja enriquecedor, do ponto de vista do ecossistema e da vida humana”, explica Sofia, que é agroecóloga, produtora e extensionista rural.

No Sítio Raiz, há dois sistemas produtivos distintos, um focado em culturas de ciclo curto e anual e outro, em culturas perenes, em que colhem-se, principalmente, bananas, café e abacates. No primeiro modelo, são priorizadas plantações de raízes, como batata inglesa, cenoura, mandioca e inhame, dado que exigem menos insumos. Isso não restringe, porém, a colheita de demais plantas, que garantem comida diversificada para a clientela e para o próprio prato. No segundo modelo, as plantações em maior densidade são do café arábica, que tolera bem as condições climáticas e de solo do cerrado, em especial se cultivadas em ambientes florestais, como fazem.

No período de seca, bastante conhecido pelo brasiliense, os produtores se valem de técnicas para consorciar e adensar as plantas no canteiro, como cobrir o solo com matéria orgânica, fazer barreiras de vento, e, em alguns contextos, utilizar irrigação por gotejamento, práticas que demandam menos água do que aquelas feitas em produções convencionais. Para o cultivo de hortaliças, é um momento bastante frutífero. No geral, a constante dinâmica de podar as plantas e depositar sobre a terra seus materiais orgânicos auxilia na fertilidade do terreno.

Em casa, as funções de cada membro da família são bem planejadas. Rômulo se dedica a manejar as agroflorestas, fazer colheita e cuidar da comercialização dos alimentos para o atacado (feirantes e intermediários) e para os programas do governo que abastecem escolas e demais instalações, além de ministrar cursos e consultorias em agrofloresta. Sofia se ocupa da gestão e comercialização das vendas diretas (feira e delivery), dos cuidados da filha caçula, do mestrado e dos trabalhos de assessoria em projetos de agroecologia. José toca os plantios das hortaliças e também faz colheitas. Já as crianças, eventualmente, contribuem na hora de embalar e separar os alimentos, colher frutas e lavar a louça.

Por falar nos pequenos, a agroecóloga os classifica como “verdadeiras lagartinhas devoradoras de saladas e frutas diversas” e, mais que isso, os considera muito habilidosos na cozinha. “Eles gostam de experimentar receitas e preparar a comida de acordo com o paladar deles. Claro que, como a maioria das crianças, tiveram fases, principalmente quando menores, em que não estavam muito dispostas à diversidade, ficavam mais seletivas”, recorda. No que tange à capacidade produtiva da chácara, a dupla enfatiza que, hoje, o maior desafio é a limitação do tamanho da terra, que possui dois hectares.

O vínculo direto com os clientes se dá na Feira da QI 13, do Lago Sul, aos sábados, e por meio das entregas feitas em domicílio. Esse contato tem sido fundamental na sustentação do trabalho, visto que, segundo o casal, é importante que os consumidores saibam o valor de estarem financiando um sistema de cultivo responsável por criar um legado de serviços ambientais, para além da qualidade do alimento pela qual prezam muito. Ademais, buscam manter uma comunicação direta que apresenta a história por trás das verduras, aproximando o universo da agricultura familiar à cidade.

O Sítio vende, também, para o governo, fornecendo ingredientes para as refeições das escolas públicas. “É a partir do fortalecimento da agricultura familiar que vamos resolver a fome no Brasil e é este o setor estratégico, junto aos povos originários, com o maior potencial de mudar o cenário das emissões de carbono e tirar o Brasil do ranking dos 5 países que mais contribuem para o aquecimento global”, finaliza Sofia.

AGROECOLOGIA: Segundo a pesquisadora e professora Flaviane Canavesi, a agroecologia é um campo científico que estuda e sistematiza agriculturas de base sustentáveis. Tem um viés social e político, na medida em que determina as categorias da agricultura familiar, incluindo povos e comunidades tradicionais, quebradeiras de coco babaçu, comunidades de fundos de pasto, quilombolas, entre outros. Os benefícios da prática englobam a melhoria da alimentação, a garantia da segurança alimentar e nutricional e o impacto positivo sobre a saúde pública. Há, ainda, a diversidade de identidades e de sistemas produtivos.

Maria Ivanildes Sousa, 56 anos, fez, no começo da vida, o percurso adotado por muitos que saem do interior em busca de melhores condições de vida na cidade. Abandonou a rotina de quebradeira de coco no Maranhão e veio estudar e trabalhar no DF. Quando conheceu o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), vislumbrou novas oportunidades — se sustentar pela sua produção e ser valorizada, diferentemente do que ocorria no passado. Para a própria surpresa, retomou as atividades no campo, agora, na cidade.

Estabeleceu-se no assentamento Canaã, onde, mais tarde, criou com outras mulheres a Associação Agroecológica Mulheres Rurais do Assentamento Canaã (AAMRAC), com a finalidade de produzirem alimentos de forma sustentável, via agricultura familiar, em Brazlândia. Lá, ela administra e distribui cestas, coordena a venda de alimentos e atua de forma ativa e direta na produção dos ingredientes orgânicos. E, para além das dificuldades típicas de todo começo, Ivanildes e suas companheiras, como gosta de chamar, ainda enfrentaram as limitações da pandemia. A tentativa de vender cestas no centro da capital, por exemplo, não deu certo.

Mas não desistiram. Criaram a Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA) Mulheres do Cerrado, liderado pelas campesinas, que visa a luta constante pela terra, por melhores condições de trabalho e por alimentação de qualidade para todos. Isso porque, ainda hoje, as agricultoras têm dificuldades estruturais para produzir, em especial, pela falta de insumos adequados para o solo. Apesar de reconhecer os obstáculos, a produtora releva: "Quando a gente gosta, acaba não achando tão pesado".

De acordo com a especialista Flaviane Canavesi, da UnB, a maior parte dos agricultores inseridos em experiências de feiras não têm regularização fundiária, o que significa que não podem investir em infraestrutura social, como erguer moradias; nem produtiva, como construir um poço artesiano, para instalar uma irrigação — fatores que ampliam ainda mais as adversidades. O papel das mulheres, para ela, é fundamental, dado que essa mão de obra sempre foi invisibilizada.

Na agrofloresta, as mulheres plantam de tudo (banana, laranja, limão, amora, pitanga, café, vários tipos de frutas, algodão…). Para as pragas, Ivanildes usa folhas de mamonas batidas com pimenta. E funciona. Além disso, nas vivências do assentamento, aprendeu maneiras diferentes de cozinhar, eliminando das suas receitas caldos de carne industrializados, por exemplo. Adquiriu, para sua sorte, o costume de comer verduras e se apaixonou pelo manejo da terra e pela alimentação saudável.

Para a agricultura, o contato direto com o consumidor é algo que lhe ajuda a enfrentar todas as dificuldades. "É muito gratificante saber que estamos levando saúde para a mesa do consumidor", celebra. A AAMRAC está presente na Feira da Ponta Norte, na 216 Norte, aos sábados; na Colina, na UnB, às quartas; e em Águas Claras, na quadra 301, às quintas.

Se para os agricultores é recompensador ter um contato direto com quem se alimenta do que produzem, para os consumidores, também, é muito positivo. O professor Vitor Boaventura, 29 anos, não somente é cliente fiel dos produtores da Feira da Ponta Norte, como um grande apoiador da agroecologia. Enquanto morador da região, considera a feira importante sob vários aspectos, desde o fortalecimento dos laços comunitários até a promoção cultural, visto que é palco para apresentações e intervenções artísticas. 

“A possibilidade de interagir diretamente com quem produz o alimento é incrível. Percebemos, com mais sensibilidade, a relação do produtor com o alimento. É como se passasse a visualizar os rostos e o empenho de cada uma daquelas famílias de agricultores”, revela.

O consumo de alimentos orgânicos começou após o professor inteirar-se sobre os danos causados ao meio ambiente e à saúde pela agricultura tradicional. Os benefícios dessa substituição, conforme avalia, são imensos. Isso porque o valor nutricional dos produtos agroecológicos é bastante superior aos demais, tanto que notou melhoria em sua disposição e estado geral de saúde e bem-estar. “Além disso, comer é um ato político e o fato de estar incentivando uma produção mais consciente e positiva para o meio ambiente e proteção da biodiversidade é muito gratificante.”

Que o cerrado tem características bem peculiares, muita gente sabe. Afinal, basta uma pequena volta por Brasília para notar os galhos retorcidos, apreciar os ipês que florescem em plena seca e até encontrar tranquilas capivaras pelo caminho. Devido à sua biodiversidade, que inclui frutos e sementes nativas; serviços ecossistêmicos da fauna e flora, como a polinização; recursos hídricos; e o conhecimento tradicional, o bioma é essencial na produção de alimentos.

Conforme explica o biólogo Vitor Sena, tais frutos e sementes nativas — fontes de nutrientes e valor cultural para as comunidades locais — podem promover segurança alimentar e diversificação da dieta. Já a polinização é fundamental para a reprodução de plantas cultivadas e selvagens, contribuindo para a produtividade e a qualidade dos cultivos. Ademais, o cerrado é um dos principais responsáveis pelo abastecimento de água do país, sendo fundamental para a produção agrícola e para o fornecimento de água potável para a população.

"A região é conhecida como a 'caixa d'água' do Brasil, pois suas nascentes e aquíferos abastecem importantes rios que cortam o país, como o São Francisco, que abastece cerca de 14 milhões de pessoas em sua bacia hidrográfica", pontua Vitor. As comunidades locais, por sua vez, possuem um relevante conhecimento sobre recursos naturais, práticas de cultivo e utilização de alimentos nativos, favorecendo sistemas agroflorestais e práticas sustentáveis de produção de alimentos e promovendo a agroecologia.

Apesar desses avanços, a área enfrenta desafios ambientais e climáticos, como o desmatamento, a degradação do solo, a perda de biodiversidade e a escassez de recursos hídricos, impulsionados pela expansão da agropecuária. A fim de manter a terra saudável, o especialista recomenda práticas de conservação que incluem o plantio direto, o uso de cobertura vegetal e a adoção de sistemas agroecológicos e de integração lavoura-pecuária-floresta (ILPF).

Além disso, o uso responsável de insumos agrícolas, como fertilizantes e pesticidas, é importante para evitar a deterioração do solo, assim como a rotação de culturas, o manejo adequado da água, a proteção de áreas de preservação permanente e reserva legal e a administração integrada de pragas e doenças. Por fim, a educação e a capacitação dos agricultores são essenciais para disseminar práticas sustentáveis de manuseio do cerrado, contribuindo para a sua preservação e para a sustentabilidade da agricultura na região.

SEMENTES CERRADO-A época de frutificação das plantas do cerrado, em sua maioria, ocorre durante a estação chuvosa, que engloba os meses de primavera e verão (setembro a março). Todavia, pode ser influenciada por fatores como a localização geográfica, o clima, a altitude e a variação anual das chuvas, podendo haver alterações no período em diferentes regiões e anos.

Buriti: palmeira que produz frutos durante o ano todo, com maior concentração na estação chuvosa.

Pequi: espécie de árvore que produz frutos no final da estação seca e início da estação chuvosa.

Cagaita: produz pequenos frutos amarelos ou verdes, encontrados principalmente durante a estação seca.

Jenipapo: fruto típico do cerrado, comum nas estações chuvosa e seca.

Mangaba: fruto, amarelo ou verde, encontrado durante a estação chuvosa.

Cajuzinho-do-cerrado: árvore que produz frutos pequenos em formato de caju, com casca dura e polpa suculenta. Encontrada durante a estação seca.

Jatobá: fruto encontrado principalmente durante a estação seca. É grande e duro, com sabor adocicado e polpa fibrosa.

Fonte: Letícia Mouhamad* e Ailim Cabral Correio Braziliense

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