A música brasileira é muito rica. Mas infelizmente está reduzida a cantores padres, axé e sertanejos, diz Ruy Castro

Autor de Carmen: uma Biografia, sobre Carmen Miranda, e Chega de Saudade, no qual conta a história da bossa nova, Ruy Castro é uma dos principais vozes a resgatar o passado cultural brasileiro. Numa entrevista, concedida por e-mail, o autor fala sobre seu novo livro, A Noite do Meu Bem, que narra a história do gênero samba-canção, e compartilha sua insatisfação com o cenário atual da música do país. Ele cita que a música está reduzida a porcaria do axé, sertanejos e padres cantores.

Confira a entrevista:
*O senhor refuta a hipótese de que o samba-canção seria o bolero brasileiro. Quais foram as principais características e influências do gênero investigado pelo livro?
Não há a menor identidade rítmica entre o bolero e o samba-canção. O samba-canção é o samba. Ah, mas o samba-canção e o bolero falam de amores fracassados. É verdade – mas toda música romântica fala de amores fracassados, inclusive a americana. E há muitos sambas-canção para cima, otimistas – é só ver o repertório do Dick Farney, da Doris Monteiro, da Elizeth Cardoso. Além disso, quando o bolero penetrou no Brasil, no começo dos anos 1940, Ary Barroso e Noel Rosa já tinham criado seus grandes sambas-canção.

*Como o samba-canção foi capaz de desbancar gêneros musicais de fora do país, uma vez que a música francesa e a americana exerciam grande protagonismo nas rádios brasileiras? 
No passado, a música americana já contava com os discos, filmes, revistas, jornais e até com os álbuns de figurinhas para se impor em todos os países. E, como em toda parte, a presença dela no Brasil era enorme. Só que, na época, fazíamos música brasileira, e muita gente a preferia à música americana. O samba-canção atendia a todas as solicitações: era melodicamente sofisticado, harmonicamente complexo, ritmicamente delicioso, bom de dançar com rosto colado, e as letras eram bem escritas e diziam coisas. Não havia cantor estrangeiro que vendesse mais que a Angela Maria ou o Nelson Gonçalves. A partir de 1983 é que a música brasileira passou a macaquear a que se fazia em toda parte e, aí, a música americana tomou conta.

*Qual foi a importância de Lupicínio Rodrigues para o samba-canção?
Total. Lupicínio, assim como Custodio Mesquita, Herivelto Martins, José Maria de Abreu e Dorival Caymmi, foi dos primeiros a perceber a riqueza e a potencialidade do samba-canção. Não por acaso produziu a maioria dos seus primeiros clássicos.
 

*Seu livro foi festejado por preencher uma lacuna pouco pesquisada da música brasileira. O senhor arrisca algum motivo para que o samba-canção não seja mais conhecido hoje?
O brasileiro é assim mesmo quando se trata do seu próprio passado. Quando lancei Chega de Saudade, em 1990, ninguém na época queria saber de bossa nova – estava morta e sepultada havia mais de 20 anos. Com o livro, ela foi redescoberta e, à sua maneira, discreta e elegante, está no ar até hoje. Vamos ver se acontece o mesmo com o samba-canção. Não há quem ouça obras-primas como Chuvas de Verão, Risque, Dó-ré-mi, Ouça, Não Tem Solução e todas do Lupicínio sem se arrepiar. O samba-canção está esquecido, mas é formidável, é nosso e cabe a nós ressuscitá-lo.

 *Qual é o legado do samba-canção no atual cenário musical brasileiro?
Cenário atual? Legado? Nenhum. Nem do samba-canção, nem do samba propriamente dito, nem da bossa nova, e nem de qualquer ritmo brasileiro. Fomos reduzidos a porcarias como axé, sertanejos e padres cantores. A boa música brasileira hoje não pode contar com as gravadoras, nem com o rádio, nem com a televisão, nem com as casas de shows e nem com ninguém. Os últimos grandes cantores, se quiserem se apresentar, têm de pagar para cantar. Há muita gente fazendo coisa boa, mas escondido, sem a menor chance de penetrar no mercado.

Fonte: Jornal Zero Hora

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