ZÉ MARCOLINO VIVE

Zé Marcolino era poeta, carpinteiro, barbeiro e vaqueiro. O maior sonho dele, porém, era ser parceiro de Luiz Gonzaga. Só o “Rei do Baião” poderia levar muito além as suas canções que já animavam bailes e festas na região de Várzea Paraíba, distrito de São Tomé, onde hoje está localizado o município de Sumé. 

Para alcançar o sonho e ter seu talento reconhecido além do Cariri, José Marcolino Alves escrevia cartas para Gonzaga, sem nunca ter obtido qualquer resposta. Depois de um primeiro encontro casual marcado pelo desinteresse do Velho Lua, Zé Marcolino conseguiu não apenas ser gravado por seu ídolo, mas foi levado com ele para morar no Rio de Janeiro, produzir um álbum juntos e viajar em turnê pelo país. Dessa ligação, surgiu uma obra que até hoje ilustra o imaginário da identidade sertaneja nordestina.

É para reverenciar o cancioneiro de Zé Marcolino, imortalizado em interpretações próprias e de tantos outros cantores, que o 7º Festival de Música da Paraíba homenageia o autor de ‘Numa sala de reboco’, ‘Serrote Agudo’, ‘Quero Chá’, ‘Pássaro carão’, ‘Matuto aperreado’, dentre outros. As inscrições para o festival serão abertas na próxima terça-feira (dia 6) e seguem até o dia 6 de março, com as duas primeiras eliminatórias sendo realizadas na cidade de Sumé, onde serão apresentadas as 30 músicas selecionadas. A final está marcada para o dia 8 de junho, em João Pessoa, onde serão distribuídos mais de R$ 30 mil em premiações no evento promovido pelo Governo do Estado por meio da Empresa Paraibana de Comunicação (EPC), Fundação Espaço Cultural (Funesc) e Secretaria de Comunicação (Secom). Tudo para reverenciar o nome que virou sinônimo de São João.

Onde tem uma sanfona, um triângulo e uma zabumba, tem um cantador que, em algum momento, vai se lembrar de ‘Numa Sala de Reboco’. Mas para chegar em um de seus maiores sucessos, Gonzaga pediu para Zé Marcolino apresentar algumas outras canções. A primeira foi ‘Sertão do Piancó’, uma resposta à música gravada por Jackson do Pandeiro sobre o Sertão do Moxotó. Assim que terminou, Luiz Gonzaga perguntou quantas ele lhe daria pra levar consigo, e Marcolino mostrou ainda ‘Pássaro carão’ e ‘Serrote Agudo’. Luiz Gonzaga levou mais que as músicas, levou Marcolino para o Rio de Janeiro.

Essa história é contada em detalhes na autobiografia Vida, Versos e Viola (Fundarpe, 1990). “Para Zé Marcolino, a glória seria ser gravado por Lua. Tanto que ele cedeu as parcerias em músicas que já estavam prontas antes de conhecer Gonzagão. Ele não procurava fama. Era por satisfação própria”, defende o jornalista e crítico musical paraibano radicado no Recife, José Teles. “Se não fosse gravada por Gonzaga, a música de Marcolino já teria sido esquecida. O mesmo teria acontecido com a música de outros autores gravados por Lua. Gonzagão foi um grande curador da música nordestina”, acrescenta o especialista. Com a parceria formada, Luiz Gonzaga grava pela RCA, em 1962, o LP Véio Macho. Das 12 faixas, metade era assinada por Marcolino.

“Marcolino fazia uma música atávica. Com muito da poesia oral daquela região rica em repentistas, glosadores, e sabia criar grandes melodias para suas letras”, define José Teles. O único álbum a registrar essas características do paraibano em sua própria voz foi gravado pela Rozenblit, em 1983, no LP Sala de Reboco, em que Zé Marcolino foi acompanhado pelo Quinteto Violado, de Pernambuco. Um dos fundadores do grupo e único paraibano do quinteto pernambucano, Marcelo Melo já se encontrava com Zé Marcolino durante viagens pelo interior.

“Gonzaga dizia que Marcolino tinha uma voz muito grave, que não dava pra cantar. E a gente achava que não. Ele era um cara que tinha aquelas melodias que normalmente tem os cantadores e repentistas, mas embora ele tocasse muito pouco, tinha uma musicalidade vocal muito boa e muito característica do Sertão, do sertanejo. Ele não tinha conhecimento musical. Fazia a coisa intuitivamente, mas com muita certeza e era muito afinado, ele era um cara muito preciso na afinação”, define o campinense Marcelo Melo, responsável pelos vocais, violão e viola do Quinteto Violado. 

A parceria entre o grupo e Marcolino ficou registrada também na participação de ambos no programa Som Brasil, comandado por Rolando Boldrin, na Rede Globo.

Além de suas características artísticas, Zé Marcolino era conhecido por ser um imbatível contador de causos. “Ele tinha um jeito de contar as histórias e fazer com um humor bem típico sertanejo, aquela coisa que você conta com muita seriedade e a gente, quando vê, está morrendo de rir do jeito que ele fala. Ele guardava as características do comportamento, do imaginário sertanejo, com a qualidade que Gonzaga também tinha”, conta Melo. A parceria de Marcolino e Gonzaga, porém, não durou tanto assim. Depois de participar da divulgação do disco Véio Macho, em uma longa turnê que partiu do Sul do país, Zé Marcolino se aproveitou quando eles estavam no Crato realizando o último show para pegar um ônibus com destino a Campina Grande e não voltou mais ao Rio.

Depois de tantos anos tentando ser parceiro de Gonzaga, esse é o traço na biografia de Zé Marcolino que mais intriga José Teles. “O fato de ele ter tido a chance de se fixar no Rio apadrinhado por Luiz Gonzaga, e decidir voltar pro Sertão da Paraíba, onde morou até a morte. Dizem que houve um desentendimento no Rio entre ele e Gonzaga, mas não sei se é verdade”, especula o crítico. Teles aponta, porém, que esse desejo já estava expressado no xote ‘Matuto Aperreado’, gravado por Gonzaga. “Fico doido com tanta fala de gente / e a zuada de automóvel a me assustar / se na rua vou fazer um cruzamento / tenho medo, eu num posso atravessar / desse jeito, eu sou franco em dizer / mas um dia eu aqui não posso mais ficar”.

Por força de uma sina trágica, Zé Marcolino viria a morrer justamente em um acidente de carro, em 1987, quando uma vaca cruzou a pista no município de Carnaíba (PE). Uma perda sentida na cultura popular nordestina, que teima em não ter o legado de Marcolino apagado. “Ele e muitos autores do passado correm o perigo do esquecimento porque as editoras que autorizam a liberação das músicas que estão no seu catálogo cobram muito caro, e isso inviabiliza as regravações”, explica Teles. Na memória de quem conviveu com Zé Marcolino ou foi influenciado por sua obra, o que resiste são os elementos que criou no imaginário que representa a identidade sertaneja nordestina.

“Ele era um camarada que retratava dentro da sua poesia a ambiência, a ecologia, o comportamento brincalhão satírico do homem nordestino com muita qualidade. Marcolino se inspirava também nos elementos da natureza, nos cantos dos pássaros, no comportamento do fura-barreira, do pássaro que fica em cima da estaca, fazendo a tapia para o menino que atira nele com a baliadeira. Ele tinha essas características, o pássaro carão, que dá sinais à natureza através do seu canto. Tenho por Marcolino um respeito muito grande à obra dele por essa qualidade fantástica que ele tinha”, finaliza Marcelo Melo.

Texto r Joel Cavalcanti* publicado originalmente na edição impressa de 04 de fevereiro de 2024.

Nenhum comentário

DESERTIFICAÇÃO NA CAATINGA PREOCUPA ESPECIALISTAS

Bioma que só existe no Brasil, a Caatinga está em risco. Especialistas temem a desertificação, um processo já iniciado em decorrência de questões naturais agravadas pela ação humana. O assunto foi tema de uma audiência pública na Comissão de Meio Ambiente do Senado, por requerimento da senadora Teresa Leitão (PT-PE).

Com a participação de senadores, estudiosos e militantes da causa ambiental no país, a conclusão a que se chegou é de que a desertificação da caatinga é resultado do uso inadequado do solo e dos recursos hídricos, além do desmatamento e das mudanças climáticas. 

"Ela é presente no agreste e no sertão pernambucanos, que contam com uma centena de municípios, 135 para ser mais precisa, e que hoje sofrem com o risco da desertificação. A Região Nordeste do nosso país vem sendo afetada com o fenômeno da desertificação, que, entre outros fatores, decorre do desmatamento dessas áreas, quando sabemos, mais do que nunca, o quanto a vegetação consiste em fator protetivo para evitar danos ambientais", contextualizou a senadora Teresa Leitão.

Principal bioma do semiárido brasileiro - que, aliás, é o bioma semiárido mais biodiverso do mundo -, a Caatinga ocupa uma área 11% do território nacional. É o ecossistema mais desmatado do país, principalmente pela pecuária e agricultura de subsistência, segundo o Instituto Nacional do Semiárido.

O representante do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Alexandre Henrique Pires, informou que o segundo Plano Brasileiro de Combate à Desertificação está em elaboração. "A elaboração do plano é uma estratégia de pensar, nos próximos 20 anos, que medidas e iniciativas nós devemos tratar para conservar a nossa Caatinga e a nossa biodiversidade, recuperar aquilo que foi degradado. Ao mesmo tempo, pensarmos em estratégias também de combate à desertificação."

FONTE: Com informações da Rádio Senado e do Ministério do Meio Ambiente. 

Nenhum comentário

UM POÇO DANTAS DE ENCANTAMENTOS

Poço Dantas emerge do fundo da minha infância como uma vibração sonora e imagética. Soa distante e no mais íntimo de mim, vindo associada à memória de momentos em que esse nome mexeu com a minha imaginação de menino, em Santa Cruz.
Eu sabia que era um lugar; que não ficava longe, mas a sonoridade da pronúncia me levava à fronteira de um território encantado; a um mundo que mais valia imaginar do que demarcar com o materialismo do tato e ou com passos de conquista.
A legenda Poço Dantas ficou, em mim, ligada à imagem serena e carismática do professor Luiz Correia, que sempre se aproximava das rodas de conversa na bodega do meu avô, Antônio Floresta, com a sua obsessiva inquietação, de espírito e sotaque bem sertanejos, defendendo, como à sua vida, o seu ideal de educação para o nosso meio onde campeava a carência e a desinformação.
De lá vinham estórias de encantamentos como uma, muitas vezes repetida por Seu Otílio do Desterro, em que “em noites de chuva, nas ribanceiras da Serra da Seriema, cinco carneiros de ouro, encarreados um atrás do outro, atravessavam a escuridão deixando um clarão dourado” – acredito eu que nas vidas e na eternidade daqueles momentos...
Até na origem da sua denominação há um mistério e uma mística poética, quando a única pista é o que reza a tradição oral, que traz a narrativa de que nos primórdios da colonização da região, teria ficado um poço conhecido pela presença de antas – que depois não foram mais vistas – nas suas margens.
Por muito tempo curiosos e visitantes trataram a versão popular como inverossímil, por considerarem não ser a Caatinga habitat dessa espécie animal. Hoje, sabe-se que havia sim, antas no Semiárido nordestino; o que mantém viva, a voz do povo, nesse imbróglio.
Há nos arredores de Poço Dantas uma energia pulsante, como que emanada de um tesouro telúrico esparramado a céu aberto, na pele sanguínea do chão, na flora, nos seres, nos ares e nos ventos que trazem e assentam a música de todos os tempos.
Lá, as botijas não precisam mais terem almas como mensageiras e sonhos noturnos como canal da informação privilegiada. Os auspícios sagrados estão esvoaçando, à luz do dia, e reluzindo na Serra da Seriema, nos morros que circundam a região, nas estradas, no cemitério, no adro da igreja, na praça, no semblante das pessoas, no Memorial Sertanejo, no idealismo de Luzia Barbosa.

Maurício Cordeiro Ferreira. 

Nenhum comentário

BEATA MARIA DE ARAUJO E O MILAGRE DO PADRE CÍCERO

Celebrando o aniversário da Beata Maria de Araújo, protagonista do “Milagre de Juazeiro”, o Centro Cultural do Cariri Sérvulo Esmeraldo – equipamento da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará, gerido em parceria com o Instituto Mirante de Cultura e Arte integra a programação da 1ª Semana Maria de Araújo, que acontece de 20 a 24 de maio, junto do Instituto Beata Maria de Araújo e o Movimento Pró-memória da Beata Maria de Araújo.

Em 22 de outubro de 1930, o túmulo da Beata Maria de Araújo foi violado e até hoje não há uma resposta oficial sobre a ordem do mandato de abertura ou onde encontram-se seus restos mortais. Nessa perspectiva, no dia 23 de maio, o Centro Cultural recebe a exibição e roda de conversa: “Onde estão os restos mortais da Beata?”, com Álisson Flor e a equipe da produtora Candieiros, na Sala de Formação 01, às 18h.

Apresentando o monólogo “Maria de Araújo e o milagre de Juazeiro Do Norte”, Rafa Moraes confronta temas como racismo, sexismo, intolerância e perseguição religiosa e política, culminando no desfecho trágico da beata, que mesmo após sua morte, foi brutalmente violentada. A atividade acontece no dia 25, às 19h, no Bosque.

Beata Maria de Araújo

Maria Magdalena do Espírito Santo de Araújo nasceu na antiga Joaseiro, em 24 de maio, o ano exato de seu nascimento permanece uma incógnita para os pesquisadores. Cresceu em meio às oficinas de trabalho e salas de oração, construindo vida debaixo do silêncio da oficialidade. Artesã, costurava bonecas de pano e ensinava o ofício para outras crianças do povoado, lugar que também trabalhava como doceira, lavadeira e chegou até a contar tijolos em uma olaria.

Aos 22 anos, passou a exercer os hábitos de freira após um retiro espiritual realizado por Padre Cícero Romão Batista e Padre Vicente Sóter. Ali a mulher entregou-se à andança missionária. Em 1889, durante uma missa celebrada pelo Padre Cícero, a Beata recebeu hóstias que se transformavam em sangue na boca, tornando-se o pilar que une até hoje Juazeiro do Norte com a fé. Nas semanas que seguiram, chegaram de forma espontânea milhares de peregrinos e, em 7 de julho de 1889, o lugar era terra para um mar de fiéis, sendo o primeiro marco das romarias.

Maria de Araújo faleceu em 17 de janeiro de 1914, após 20 anos de clausura por imposição da Igreja Católica. Seu túmulo, localizado na Capela do Perpétuo Socorro em Juazeiro, foi violado e destruído, sendo que seus restos mortais foram roubados, permanecendo até hoje desconhecida a localização de seu corpo.

Memória e Patrimônio

Questionando esquecimentos como o da Beata Maria de Araújo, que foi colocada como coadjuvante do “milagre” que tornou Juazeiro do Norte em “Terra da Fé”, a professora Vitória Gomes facilitará o minicurso “Por que nos querem esquecidas? Memórias de mulheres em disputas e resistências”, de 14 a 17 de maio.

O curso discute noções de memória e patrimônio a partir da perspectiva de gênero e descolonização, estimulando os participantes a refletirem sobre as dimensões do território caririense, abordando desigualdades, falta de representatividade, silenciamento e invisibilização.

Vitória Gomes, professora na Universidade Federal do Cariri e pesquisadora, é doutora em Ciência da Informação, com a tese “Patrimônios e Matrimônios: Intersecções entre (de)colonialidades, raça, gênero e memória”, e desenvolve pesquisas sobre culturas e patrimônios desde a graduação.

Centro Cultural do Cariri

Inaugurado no dia 1º de abril de 2022, o Centro Cultural do Cariri é um espaço para a discussão e promoção da arte, ciência e tecnologia, aliadas à tradição cultural e à contemporaneidade, estando aberto aos processos de experimentação e intercâmbio.

Instalado na cidade de Crato, Ceará, é conceituado com um Centro Cultural Parque e sua infraestrutura atende, especialmente, a Região do Cariri Cearense composta por 29 municípios. Com mais de 50 mil metros quadrados de área, conta com espaços expositivos, residências artísticas, rádio escola, salas de formação, palco para espetáculos e projeções de cinema e ateliê de artes e ofícios.

A área externa concentra os espaços esportivos e de lazer, na perspectiva de esporte de participação e educacional, através de areninha, pistas de skate e quadras de areias, além da expressiva área verde e do equipamento voltado especificamente para o público infantil, a brinquedopraça. Em processo de estruturação, estão o teatro escola, as salas de aula e ensaio, o café, o restaurante escola e o planetário. Toda programação é gratuita.

Nenhum comentário

CANUDO ECOLÓGICO DE BABAÇU MUDA DE COR SE BEBIDA ESTIVER VENCIDA

Os plásticos sintéticos estão entre os maiores vilões do meio ambiente. Principal base para a produção de recipientes, o material pode levar cerca de 500 anos para se decompor na natureza. Em busca de alternativas, pesquisadores da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP) da USP desenvolvem soluções ecológicas biodegradáveis às embalagens e canudos, utilizando resíduos agroindustriais e produtos naturais que carregam propriedades antimicrobianas e antioxidantes.

Para além de simplesmente substituir o plástico, geralmente baseado em substâncias derivadas do petróleo, o enfoque do grupo da USP, liderado pela professora Delia Rita Tapia Blácido do Departamento de Química da FFCLRP,  é o que chamam de “embalagens ativas”, pois aprimoram a utilidade para o consumidor com características agregadas, como poderes antioxidantes e antimicrobianos obtidos de compostos como a quitosana, a própolis verde e os resíduos de uva e jabuticaba.

Responsável pela produção e orientação de diferentes estudos com matéria-prima natural, encontrada principalmente em resíduos agrícolas, a professora Delia Blácido conta que o interesse é utilizar esses recursos para transformar os resíduos que, quando descartados, também podem contaminar o meio ambiente, encontrando soluções criativas que agregam mais valor ao produto final.

“A ideia é gerar materiais que tenham uma atividade e protejam o alimento sem o uso excessivo de aditivos sintéticos, como antibióticos ou antioxidantes que podem ser prejudiciais para a saúde”, ressalta a professora. Como exemplos, apresenta dois projetos de mestrado mais recentes sob sua orientação nessa linha de pesquisa: o desenvolvimento de uma embalagem feita a partir do amido de batata adicionado de extrato de própolis obtido por extração alcalina, de Ivone Yanira Iquiapaza, e de canudos que utilizam o mesocarpo (polpa) do fruto da palmeira de babaçu, realizado por Luís Fernando Zitei Baptista. (Jornal da USP)

Nenhum comentário

BIOMA CAATINGA PODE SER SEVERAMENTE IMPACTADA POR MUDANÇAS CLIMÁTICAS

A seca, junto ao aumento da temperatura, vem se destacando como uma das grandes vilãs das mudanças climáticas no Brasil. Estudos recentes têm demonstrado que o aquecimento e a redução da pluviosidade previstos para as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste já estão causando impactos como o aumento da frequência de secas na Amazônia, fenômeno que vem trazendo consequências para a fauna mesmo em regiões quase intocadas da maior floresta tropical úmida do planeta.

Diante deste cenário, é compreensível que as preocupações de cientistas e ambientalistas se voltem para a Amazônia e outras florestas úmidas destas regiões. Mas este foco também tem um efeito adverso: ele deixa de lado a fauna e a flora de biomas naturalmente mais áridos, como a Caatinga.

“Existia uma visão de que porque esses organismos evoluíram num clima seco, quase desértico, eles estão adaptados às mudanças climáticas”, diz Mario Moura, ecólogo e pesquisador da Universidade Federal de Campinas.

Moura é o primeiro autor de um estudo já reportado pelo ((o))eco no ano passado, demonstrando que essa suposição passa longe da verdade. Seus resultados sugerem que, até 2060, 40% da Caatinga vai passar por um processo de homogeneização em suas comunidades de plantas – isto é, de perda de diversidade entre regiões, tornando todas mais parecidas biologicamente. A pesquisa também prevê que 99% do território do bioma deve perder espécies localmente, e que plantas lenhosas, como árvores, serão mais afetadas.

“E essa perda também é muito mais pronunciada sobre as espécies que são raras, ou seja, aquelas que já tem uma distribuição geográfica um pouco mais restrita”, Moura acrescenta.

Um resultado surpreendente, e que levanta sérias preocupações em relação ao futuro dos organismos que habitam a Caatinga.

“O que se está mostrando é que eles estão à beira do colapso já,” diz Moura.

Moura não está sozinho em sua conclusão. Um estudo publicado este ano na revista Journal of Arid Environments estima que mudanças climáticas devem reduzir a área de distribuição geográfica de espécies de répteis psamófilos – animais especializados em viver em terreno arenoso – que habitam diferentes ambientes secos e abertos na América do Sul.

“Nós estudamos 10 espécies que ocorrem ao longo do que a gente conhece como o Diagonal de Formações Abertas (DFA), que engloba o bioma Caatinga, o Cerrado e o Chaco,” diz Thaís Guedes, coordenadora do estudo e pesquisadora na Universidade Estadual de Campinas.

Guedes e seus colaboradores colocaram à prova a mesma suposição explorada por Moura. “Será que mesmo essas espécies que estão enterradas num ambiente árido vão ser impactadas?”

Os cientistas basearam seu estudo numa modelagem de distribuição de espécies – modelos matemáticos que preveem quais regiões um organismo pode potencialmente habitar, baseado nas condições climáticas e ambientais dos habitats onde sabemos que ele vive. Essa ferramenta ajuda pesquisadores a identificar áreas adequadas para a ocorrência de animais e plantas em locais fora de sua distribuição conhecida, mas é também útil para entender como diferentes espécies ocuparão o espaço geográfico em cenários climáticos futuros.

O estudo estimou quais áreas dentro do DFA teriam condições climáticas para abrigar cada uma das dez espécies analisadas nos futuros de 2040 e 2060, levando em conta cenários de desenvolvimento socioeconômico otimistas e pessimistas – isto é, com mais ou menos emissões de carbono e outros gases de efeito estufa. O resultado foi bem claro.

“Elas vão ser impactadas, e muito impactadas”, diz Guedes.

A previsão é que mudanças no clima reduzam a área de distribuição de seis dos dez répteis analisados. Dois deles – as cobras Phalotris matogrossensis e Rodriguesophis iglesiasi – seriam completamente extintos no cenário otimista previsto para 2060. Outro lagarto, Vanzosaura savanicola, perderá 100% de sua área de distribuição atual no cenário pessimista de 2040 e em ambos os cenários de 2060, ganhando uma área mínima (equivalente a 1,7-6,3% da atual) de distribuição potencial em outras localidades.

Em contrapartida, uma única outra cobra, Philodryas psammophidea, ganhará área total habitável em todos os cenários previstos. Segundo Guedes, P. psammophidea é a única beneficiada em todos os casos por ser uma espécie generalista, e sua resposta às mudanças no clima está longe de ser a regra, especialmente quando consideramos a quantidade de especialistas de habitat analisadas no estudo.

“Pensava-se comumente que essas espécies, por serem adaptadas a solos mais áridos […] na Caatinga, no Cerrado e no Chaco, estariam mais adaptadas a temperaturas mais altas. E a gente refutou essa ideia”, diz Júlia Oliveira, mestre em Biodiversidade, Ambiente e Saúde pela Universidade Estadual do Maranhão e primeira autora do estudo.

Os autores alertam ainda que a gravidade da situação vai além dessas estimativas de mudanças de distribuição. Ainda que os modelos prevejam que alguns répteis ganhem novas áreas habitáveis em determinados cenários, no mundo real, não existe garantia de que eles consigam chegar até esses novos habitats em potencial.

Numa terra de biomas fragmentados, é possível que barreiras antrópicas (cidades, plantações, estradas e outras) e geográficas simplesmente impeçam o deslocamento ou o estabelecimento das espécies, condenando-as a declínios mais severos que aqueles estimados inicialmente pelo estudo.

O preocupante futuro da Caatinga-Às preocupações de Oliveira, Guedes e colaboradores somam-se ainda as tendências reveladas pelo estudo de Moura. “O trabalho do Mário Moura com a vegetação, é muito importante também, […] porque a vegetação contribui para a saúde do solo,” diz Oliveira. Além de condições climáticas ideais, os répteis estudados por ela dependem de um solo com uma composição particular de areia, argila e silte.

“Está tudo relacionado,” Oliveira conclui.

E se o impacto sobre a flora da Caatinga torna ainda mais incerto o futuro da fauna do bioma, o inverso também é verdade. Além de investigar o futuro das plantas, Moura também é o primeiro autor de um estudo similar que avalia como mudanças climáticas podem impactar os mamíferos da Caatinga, publicado na revista Global Change Biology em 2023.

Moura e colaboradores utilizaram, em seus dois estudos, um tipo de modelagem muito parecida com aquele empregado por Oliveira e Guedes. Seu foco, no entanto, era nos futuros de 2060 e 2100 – mais uma vez levando em conta cenários de maior e menor emissão de gases estufa. Mas ao invés de avaliar ganhos e perdas na distribuição de cada espécie analisada – 100 espécies de mamíferos e mais de 3.000 espécies de plantas –, Moura se preocupou em entender que proporção do bioma sofreria alguma perda de espécies. Ele também calculou um índice conhecido como diversidade beta – que mede a diversidade entre diferentes áreas do bioma – para entender se, tal como as plantas, a comunidade de mamíferos também passaria por uma homogeneização na Caatinga.

Confir na integra reportagem de Bernardo Araujo é ecólogo, conservacionista e comunicador científico Jornal USP

Nenhum comentário

CHUVAS ESCANCARAM QUE ESTE ATUAL MODELO ECONÔMICO NÃO SERVE

Texto: Francisco Figueiredo Francisco de Figueiredo Monteiro, estudante de economia, comunicador digital e divulgador científico.

Estamos vivendo uma nova realidade, a da crise climática, e ainda não sabemos exatamente como ela funciona e nem quanto ela custará aos cofres públicos. Tudo indica que eventos climáticos extremos aumentarão sua ocorrência e sua intensidade de forma exponencial, e precisamos de cidades adaptadas a isso, de hábitos e costumes adaptados a isso e de uma economia adaptada a isso. Se nosso modelo econômico restringe os gastos que são necessários com adaptação das cidades e com respostas a desastres, esse modelo não é compatível com a realidade que vivemos. 

Para que futuros eventos climáticos extremos não causem o dano que as chuvas no Rio Grande do Sul causaram, o Brasil precisa de um grande plano de adaptação climática, que deve ser executado o mais rápido possível. Este plano custa caro, e talvez o teto de gastos impeça sua execução. Como expliquei em outra coluna publicada, intitulada “política econômica do governo não condiz com política climática”, alguns gastos do governo têm regras próprias de crescimento, e a soma do crescimento do gasto primário tem que ser igual a 70% do crescimento da receita. Acontece que nestes gastos com regras próprias de crescimento estão incluídos, por exemplo, saúde e educação, que crescem 100% do crescimento da receita, e aposentadoria, que cresce conforme cresce o salário mínimo e o número de aposentados. 

Estes gastos somados representam grande parte do orçamento primário do governo, e como eles crescem mais que os 70% do crescimento da receita permitidos, eles acabam achatando os outros gastos, que precisam dividir espaço com, por exemplo, o novo PAC, que representará grande parcela dos gastos com investimento nos próximos anos. No PAC é previsto cerca de 20 bilhões de reais para adaptação das cidades, sendo, de acordo com uma análise do instituto Talanoa, uma parcela de R$ 8,3 bilhões dos investimentos para  urbanização de favelas e redução de riscos de desastres em territórios ditos periféricos, e outra  parcela de R$ 10,5 bilhões destinada a prevenção de riscos e desastres, principalmente para obras de drenagem e contenção de encostas. Entretanto, não há plano de adaptação emergencial em curso. 

O resultado é terrível: O Talanoa analisou também o orçamento climático de 2024, e concluiu que seu valor é de 13,4 bilhões de reais, sendo 10 bilhões da emissão dos “títulos verdes”, que representam dívida em dólar para o Brasil. O programa de gestão de riscos a desastres, onde estão as principais verbas para adaptação das cidades, conta com apenas 1,9 bilhões de reais. 

Ficamos constantemente presos ao debate do financiamento climático internacional, para que países desenvolvidos deem dinheiro para a adaptação de países em desenvolvimento. Porém, a UNEP alerta que as necessidades financeiras de países em desenvolvimento para adaptação climática são de 10 a 18 vezes maiores do que os fluxos das finanças públicas internacionais disponibilizadas atualmente. Me parece estranho pensarem ser mais racional depender de doações, fundos internacionais e dívidas em dólar para adaptar as cidades do que pensar uma mudança no modelo econômico. Encaramos o modelo neoliberal de austeridade fiscal como quase uma lei natural da sociedade, algo biológico do ser humano, de modo que escolhemos por ele em troca de vidas humanas.

Não pode ser normal que crises como a do Rio Grande do Sul sejam resolvidas pela sociedade civil através de doações materiais e financeiras. O Pix não é um instrumento de política econômica, não é política de contenção de crises e não podemos depender de caridade da sociedade civil e nem da filantropia de entidades e governos internacionais para nos prevenir de ou responder a desastres. 

Para isso, é preciso primeiro reconhecer que estamos em crise. As mudanças climáticas não podem mais ser interpretadas como um simples problema que no futuro nos causará alguns danos. Ela já mostra seu potencial destrutivo, e causará diariamente óbitos ao redor do mundo. O reconhecimento dessa crise significa, talvez, a expansão dos gastos do governo além do teto, assim como foi feito na época da crise da COVID-19, pois épocas de crise exigem medidas excepcionais. Foi essa a linha que Marina Silva seguiu ao propor exceções fiscais para conter os danos de eventos climáticos extremos. 

O passivo ambiental presente é o passivo fiscal futuro. Ou seja: não fazer nada agora, esperar um evento extremo ocorrer para só então gastar dinheiro remediando uma crise que poderia ser prevenida, aumenta tanto os custos humanos quanto os financeiros. Mesmo que a vida humana seja completamente descartada, que só os gastos financeiros sejam contabilizados (como faz o modelo neoliberal de austeridade fiscal), a decisão de não gastar o suficiente com adaptação às mudanças climáticas hoje para cumprir o teto de gastos é irracional e inconsequente, já que o gasto futuro com a resposta à desastres será um múltiplo do gasto que seria despendido com adaptação. 

Ignorar relatórios que apontam a fragilidade dos territórios a extremos climáticos, alterar o código ambiental que mantém a resiliência dos territórios e reduzir verba para a defesa civil é a fórmula da potencialização do desastre climático, e foi exatamente o que o governo do Rio Grande do Sul fez. E é, também, em certa medida, o que o governo federal vem fazendo com suas diversas contradições na pauta ambiental. Enquanto se lamenta o desastre em um estado, se leiloam poços de petróleo em muitos outros. Será que agora a pauta climática será tratada transversalmente pelo governo federal? Será que os governos estaduais e municipais entenderão que sua população pode estar correndo risco? Eu, infelizmente, acredito que não. 

Precisamos de um modelo econômico que comporte os gastos demandados pela realidade das mudanças climáticas, que não dependa de doações para sanar esses problemas. Para adaptar as cidades à crise climática precisamos, antes de tudo, adaptar a economia à crise climática. Enquanto essa mudança não acontece, é reconfortante ver a capacidade de mobilização da sociedade e o volume de doações destinadas ao Sul. 

Nenhum comentário

← Postagens mais recentes Postagens mais antigas → Página inicial