BANCOS DE SEMENTES REFORÇAM RESILIÊNCIA DO SEMIÁRIDO

Enquanto o mundo debate as metas climáticas e o colapso dos ecossistemas, no coração do Semiárido brasileiro pulsa uma rede silenciosa de resistência. São as casas e bancos comunitários de sementes crioulas, estruturas simples carregadas de história, saber e biodiversidade.

Ali, agricultores e agricultoras selecionam, guardam, multiplicam e trocam variedades de sementes adaptadas ao clima local, mantêm vivas práticas ancestrais e constroem, dia a dia, respostas concretas à crise ambiental.

As famílias estão envolvidas profundamente nessa movimentação. Trazem até uma carga de emoção nos nomes de “batismo” das sementes, como: sementes da “liberdade”, “resistência” ou “paixão”.

Essas estruturas comunitárias fazem parte de um sistema de gestão coletivo, organizado pelas próprias famílias agricultoras. Muitas nasceram dentro do Programa Sementes do Semiárido, coordenado pela Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), e hoje representam uma frente importante na luta contra a desertificação e o esvaziamento rural.

O mais recente mapeamento promovido pela ASA, o “Levantamento Avaliativo das Casas ou Bancos de Sementes no Semiárido” – lançado durante um seminário transmitido pelo YouTube – revela a abrangência e o impacto dessa rede. São 875 casas e bancos de sementes em 29 territórios, que beneficiam diretamente mais de 15 mil famílias. Ao todo, foram identificadas 262 variedades de feijão, 108 de milho, 75 de fava e dezenas de hortaliças, frutíferas e espécies florestais nativas.

É importante destacar o papel dessa linha de ação ao se considerar, no panorama nacional, o Boletim Temático Desertificação, lançado em julho de 2025. Ele mostra que cerca de 18% do território brasileiro está suscetível à desertificação.E que aproximadamente 39 milhões de pessoas vivem em Áreas Suscetíveis à Desertificação (ASD).

Essas regiões cresceram 170 mil km² entre 2000 e 2020, um território maior que os estados de Pernambuco, Paraíba e Alagoas somados. A desertificação, nessas áreas, compromete solos, água, biodiversidade e segurança alimentar.

Do território às negociações-A foto mostra uma pequena casa simples de alvenaria pintada de branco, com telhado de telhas de barro, no meio de uma área rural. Acima da porta, em letras verdes, está escrito: “Casa de Sementes da Fartura Lauro Chaves dos Santos”. Em frente ao prédio estão dois homens usando chapéus de palha, um deles vestido de preto e o outro de jaqueta amarela, ambos sorrindo. À esquerda, no primeiro plano, há flores cor-de-rosa. O céu está azul com nuvens brancas, e a casa é cercada por árvores e um cercado rústico de madeira

A cada safra, guardiãs e guardiões escolhem os grãos mais resistentes e adaptados às condições climáticas da região e com isso, alimentam o ciclo da agrobiodiversidade | Foto: Kléber Nunes / ASA

A cada safra, guardiãs e guardiões escolhem os grãos mais resistentes e adaptados às condições climáticas da região. Com isso, alimentam o ciclo da agrobiodiversidade e enfrentam os efeitos do aquecimento global com práticas sustentáveis, sem depender de pacotes tecnológicos externos.

“O uso de sementes adaptadas é extremamente importante porque garante, num primeiro momento, a autonomia e a soberania alimentar dessas famílias. Além disso, é um elemento fundamental para a manutenção da diversidade biológica, pois essas sementes estão adaptadas ao clima local”, explica o pesquisador Fernando Curado, da Embrapa Alimentos e Territórios.

Para a ASA, o fortalecimento desses bancos deve ser entendido como política climática e não apenas como ação agrícola. “As práticas desenvolvidas pelas famílias guardiãs em seus territórios servem como recomendações para a formulação de novas políticas públicas capazes de superar esses desafios revelados pelo estudo (Levantamento Avaliativo das Casas ou Bancos de Sementes no Semiárido). São medidas que precisam promover a agrobiodiversidade, entendendo esta como ferramenta para criar sistemas mais resilientes de produção e consumo de alimentos saudáveis, ao mesmo tempo preservando os biomas”, defende Claudio Ribeiro.

Esse protagonismo das comunidades é ainda mais relevante diante dos desafios ambientais enfrentados por territórios como o de Jucati (PE), onde vive o agricultor Givaldo Pimentel. O município está entre os 100 brasileiros com maior percentual de área em desertificação severa – níveis 4 e 5 -, segundo o Boletim Temático Desertificação. Diante desse cenário, a expectativa do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima (MMA) é que a realização da COP30 no Brasil ajude a colocar o tema no centro das negociações globais e a atrair investimentos que fortaleçam soluções baseadas na natureza e no conhecimento dos povos do Semiárido.

Patrimônio ameaçado-A imagem mostra de perto uma vagem de feijão aberta, segurada por uma mão. Dentro dela, estão três grãos de feijão ainda frescos, de cor branca com manchas e pintas rosadas, que dão um aspecto rajado. O fundo da foto está desfocado, mas é possível perceber outras vagens

A seca prolongada, a falta de apoio técnico, o avanço de transgênicos e o desinteresse das novas gerações ameaçam a continuidade do trabalho | Foto: Cláudio Ribeiro / ASA

Apesar da importância, os bancos de sementes enfrentam riscos reais. O estudo da ASA revela que pouco mais da metade das casas e bancos mapeados estão desativados ou extintos (50,4%). Dos 49% restantes, 42,6% estão funcionando e outros 7% não existem mais. As porcentagens correspondem a 441, 373 e 61, respectivamente. A seca prolongada, a falta de apoio técnico, o avanço de transgênicos e o desinteresse das novas gerações ameaçam a continuidade do trabalho.

“Muitas vezes o pessoal desanima da roça de sementes, principalmente pelo valor comercial da semente crioula”, relata Givaldo, que faz parte da Rede Municipal de Sementes de Jucati. O agricultor também afirma que existem questões financeiras que dificultam, principalmente na hora de realizar encontros e reuniões, “Isso é o nosso grande desafio para manter o banco de sementes”.

As dificuldades se agravam com o afastamento das novas gerações. “Nós temos dificuldades com os jovens. Tanto na sucessão rural, quanto no banco de sementes”, conta Givaldo. Ele explica que, mesmo dentro da própria família, o incentivo à educação formal acaba afastando os jovens do campo: “A gente mesmo costuma dizer que o filho ou o sobrinho tem que estudar para ter uma vida melhor”.

Apesar do êxodo rural ser uma realidade em muitas regiões, há movimentos que apontam para o caminho inverso. Em diversas comunidades, jovens que tiveram acesso à educação formal estão retornando ao campo com um novo olhar sobre a agricultura familiar. Combinam o saber acadêmico com os conhecimentos tradicionais.

Além das dificuldades de sucessão, outro risco preocupante é a contaminação por transgênicos. Segundo o pesquisador Fernando Curado, o problema atinge especialmente cultivos de polinização aberta, como o milho crioulo, que sofre contaminação cruzada por meio do pólen transportado por vento, água ou insetos.

Essa realidade tem gerado preocupação entre agricultores, que relatam a perda de variedades crioulas. Curado reforça que “as ações têm se voltado para o monitoramento dessa contaminação”, mas reconhece que isso ainda é insuficiente. Para ele, “os riscos principais estão exatamente na perda dessa agrobiodiversidade, a partir da erosão genética”.

Mesmo diante desse cenário, a ASA reforça que é possível reverter parte das perdas. “As que estão inativas podem voltar a operar com ações simples, como a recomposição dos estoques”, afirma Claudio Ribeiro, assessor de coordenação do Programa Sementes do Semiárido da ASA.

Ele ainda destaca que manter quase metade das casas ativas já é, por si só, um feito relevante: “Essa realidade de resistência das famílias agricultoras e guardiãs tem ainda mais valor se considerarmos que, em mais da metade desse tempo, vivemos sob os governos Temer e Bolsonaro, marcados por severos contingenciamentos de recursos públicos destinados aos programas sociais”.

A desmobilização, segundo ele, foi agravada pela pandemia de Covid-19, que paralisou ações em campo e enfraqueceu redes locais. “Essa conjuntura evidencia a importância de políticas públicas contínuas, investimento em assessoria técnica agroecológica e o fortalecimento de redes de cooperação entre as comunidades, como pilares fundamentais para garantir a sustentabilidade e a longevidade dessas iniciativas”, defende. (O ECO NORDESTE)


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