TOCA O FOLE DOMINGUINHOS SANFONEIRO

“Sanfona é instrumento de pobre, produz o som mais bonito no meio da feiura que causa precisão.,Sanfoneiro, todo ele é um sofredor. Faz a alegria de todo mundo, ganha pouco, quando ganha, e não lhe dão o valor que merece. O povo só tem a sanfona como alento, é o povo de um lugar longe, de onde chega tudo, de onde chega as novidades do mundo de fora.

Sanfona é o toque do mundo de dentro. Aonde há sanfona, há poeira.

Aonde há forró, há uma alegria tão espremida entre a dor e a tristeza, que chega a ser um milagre ver dos rostos sofridos e encardidos, o riso derramado, corrido, que quase não saia, mas acabou saindo, arrebentando a rudeza e caindo em torrente atrás da sanfona.

Pode não se dar conta, o povo do lugar e o povo de fora, mas sanfoneiro é uma coisa por demais importante, é o essencial, a necessidade básica e o luxo das horas boas.

Sanfoneiro é profeta e ao mesmo tempo é boêmio, cúmplice da vagabundagem. Sanfoneiro é chamado para as horas mais insuspeitas e completamente esquecido nas mesminhas horas.

Mesmice é o retrato do lugar, e o mesmo sanfoneiro, das mesmas horas, do mesmo som, das mesmas notas repetidas e mal dadas, das mesmas puxadas, é o único que nunca é o mesmo, porque quem quer que viva isso tudo, que quase não é nada, sabe o quanto tem serventia um sanfoneiro.

Entre os maiores dos maiores, surgiu Dominguinhos, seus dedos gordos, seu corpo grande, seu coração maior e a sensibilidade infinita.

Apareceu num dia de feira, num dia de sol pra ganhar a vida com os irmãos. Tocou pra quem quisesse escutar e pra quem não quisesse também. Entre os que quiseram estava Luis Gonzaga, o rei do baião.

Pro menino tocador, apenas um homem, desconhecido e impressionante.

Para o homem famoso, apenas um menino qualquer, remelento, buchudo e preguiçoso, desses que puxa o fole na feira porque o pai obrigou.

Aquele encontro mudou de cara a vida do menino e muitos anos depois mudaria também a vida do rei. O rei se encantou com o sanfoneiro precoce. Conviveram, tocaram juntos, andaram as estradas do desassossego. O rei ensinou, o sanfoneiro aprendeu. Fizeram uma amizade tão bonita, tão linda, que era recheada de pequenas brigas.

Os dois se amaram, os dois se ensinaram, os dois se aprenderam, os dois amaram o Brasil e foram os dois, pelo Brasil inteiro, muito amados. Um, a verdade eterna. O outro, a saudade enternecida. Um, o maior de todos os ídolos. O outro, o menor de todos os fãs.

A conversa entre os dois é sempre bem entendida, não há necessidade de muitas palavras, de muitos afetos, de muitos apreços. Olho no olho se encontram o mesmo sorriso espremido na hora da dor que vira alegria, a mesma importância tão frágil que se dá ao sanfoneiro.

Um, deu dignidade a sanfona e o outro continua a luta.

Dominguinhos é sereno, nunca foi trovoado. É muito humilde, nunca quis ser rei. Quando toca, consegue ser feliz como poucos. Em cima do palco brilha, reluz, o suor encharca o corpo todo, pinga no chão como chuva. No meio da poeira reaparece em varias formas.

Seu semblante aberto, sua sanfona aberta e fechada, abrindo e fechando, abrindo e fechando... o som mais bonito, os baixos mais bem tocados, o fole mais macio, a puxada mais leve, parece brincar com tanto peso nos ombros. O povo endoidece...

Fora do palco, é a paciência escancarada, quase demência nos gestos. Um olhar comedido, os passos lentos, a fala rara. É paciência que impacienta.

Seu nome era Neném, queria fazer sucesso assim, com esse nome.

O cartaz anunciava: “Hoje, aqui nesse circo, Neném e o seu acordeom!”. Um dia, trocou de nome.

“Neném é apelido que a mãe bota na gente, Dominguinhos é melhor; o diminutivo superlativo”, falaram isso no seu ouvido, ele acreditou. Ainda bem que ele acreditou, porque ele é bom de acreditar e ninguém perde em acreditar por mais que o mundo seja mentiroso.

Toca, Dominguinhos! Toca pro povo, toca nas feiras, mas também toca na mídia! Toca alegria, toca a tristeza, toca a fartura, toca a miséria, toca a noite, toca o dia, toca a ilusão, a decepção, o amor, o desamor ou o alento acuado no bom sentido e canta também, Dominguinhos!

Tua voz é única, o timbre forte, grave, límpido, toda a tua figura é bonita, e tua paciência e calma, quase que atraso.

Cinquenta anos de carreira, que passaram tão depressa.

Fonte: João Claudio Foto: Beto Miranda
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