CAETANO VELOSO É VERSO, PROSA E EBULIÇÃO AOS 80 ANOS

Foi com Luiz Gonzaga e os sambas de roda baianos que o quinto dos sete filhos de José Telles Veloso e de dona Canô deixou escapulir a vertente artística, ainda na tenra idade dos cinco anos de vida na terra natal Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano. 

Era 1947 e dali até os tempos atuais, exatos 75 anos se passaram, tempo hábil para culminar no octogenário Caetano Emanuel Vianna Telles Velloso, nome inconteste da Música Popular Brasileira, e que neste domingo, 7 de agosto, celebra 80 anos de vida – destes, pelo menos 60 deles dedicados a um fazer artístico peculiar e que segue necessário em verso, prosa e ebulição, que o coloca distante de um mero “mortal” para a cultura do País.

De Caetano, no acervo do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), constam pouco mais de 1,9 mil gravações registradas. Ao longo da carreira são mais de 600 canções, com “Sampa” – composta para o aniversário de São Paulo, em 1978 - no topo das mais tocadas na última década e “Você é Linda” (1983) e “Você não Entende Nada” (1970), respectivamente na segunda e terceira colocação entre as mais executadas em segmentos como rádios e shows. 

 Mas os dados fonográficos que o elegem como símbolo da música nacional é apenas o limiar da vastidão que orbita em torno de Caetano Veloso, como voz que marca também e, fundamentalmente, vieses sociais e políticos Brasil e mundo afora.

Que o digam a Tropicália e, frise-se, para além da estética musical que foi o movimento, com a “Alegria, Alegria” ao lado de Gil, Gal, Tom Zé e Os Mutantes, em um período “sem lenço e sem documento no sol de quase dezembro” dos anos de 1960, que aplainou concomitante junto aos tempos cruéis da Ditadura Militar, inclusive – quiçá principalmente – como o período mais obscuro para a arte como um todo. 

No exílio, em Londres, após ser preso, ao lado do também octogenário Gilberto Gil, Caetano seguiu em movimentos cruciais para projetar a catarse da cultura nacional.

Era início dos anos de 1970 e em tom melancólico e saudoso do Brasil que o havia expulsado, as sete faixas do álbum “Caetano Veloso” (Famous) – que em 2021 completou 50 anos - foi o contraponto para a asfixia que circundava artistas, intelectuais e jornalistas exilados, entre outras figuras “incômodas” à época.

Atemporal, luminoso, inquieto, popular (ou não), cronologicamente Caetano será celebrado neste domingo, às 20h30, em live ao vivo junto aos filhos Moreno, Tom e Zeca, e à irmã, Maria Bethânia - via aplicativo da Globoplay, aberto para não-assinantes e no canal fechado Multishow. 

Na literatura, pelo menos seis livros vão ser lançados para impulsionar a data, um deles “Caetano Veloso – Conversaciones com Carlos Galilea” ganhou lançamento em junho, na Espanha, cujo prólogo foi subscrito pelo ‘oitentão’ baiano. E sobre o mais recente trabalho “Meu Coco” (2021, Sony), tal qual fez nos idos anos iniciais de carreira, ele não silenciou e atento, como é de esperar de quilates da arte como ele, falou (cantou) sobre um dos verbetes em evidência nos tempos atuais: resistir.

“Apesar de você dizer que acabou, que o sonho não tem mais cor, eu grito e repito: Eu não. Vou” (“Não Vou Deixar”). Para os dias, meses e anos após 7 de agosto...

Caetano vai se prolongar resistente, oxalá, ao seu tempo de vida ‘pelas bandas de cá da terra’, embora, plácido (e desapegado), ele apoie-se em finitudes. “Somos o infinito aprisionado no finito. Sinto mais o impacto do mistério de existir, de ter consciência de que isso é finito, que eu vou acabar. Então o mundo todo vai acabar para mim, em mim, de mim” (Caetano Veloso, dezembro de 2021, Roda Viva/TV Cultura).

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A CARTA, A DEMOCRACIA E O MEIO AMBIENTE

 A carta, a democracia e o meio ambiente. Por Leandro Luiz Giatti, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, e Pedro Roberto Jacobi, professor do Instituto de Energia e Ambiente da USP

O momento histórico agudo de ameaças e de severos retrocessos motiva a dialogar entre as questões ambientais no Brasil de hoje e a notável iniciativa da Carta às brasileiras e aos brasileiros em defesa do Estado Democrático de Direito. Mais do que evidenciar quanto ao sentido dos temas ambientais diante do interesse comum e da democracia, cabe também parafrasear alguns conteúdos e sentidos do documento inspirador.

De início, vale reconhecer um aspecto inovador de participação social propiciado desde a promulgação da Lei Federal 6.938 de 1981, que institui a Política Nacional do Meio Ambiente. Criada em contexto de clamor por redemocratização, mas ainda dentro do período de governo militar, a norma antecipou o processo de participação social em políticas públicas na forma da criação do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama), que posteriormente foi regulamentado e deu bases para análoga participação em conselhos estaduais e municipais de meio ambiente. Inequívoco notar que os temas ambientais são de interesse difuso, por isso, não devemos estranhar que sua regulamentação mais bem fundamentada demanda garantir a inclusão de distintos atores sociais, o diálogo e a diversidade de ideias, impulsionando o necessário processo de democratização.

O conjunto amplo em que podemos considerar uma agenda ambiental brasileira (normas, políticas, ações, ciência, conhecimento e engajamento de atores sociais) remete a um processo de décadas de luta legítima pelo interesse coletivo. De fato, isso se consagra em nossa Carta Magna onde consta que “todo o poder emana do povo” e que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado […], impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.

Porém, desde 2019 assistimos a um contundente desmantelamento ambiental no âmbito do Governo Federal. Em oposição à tradição implementada, o início do novo governo foi marcado por diversas ações que contrapõem a democracia, como na redução das possibilidades de diálogo e de representatividade no Conama. Essa circunstância foi devidamente veiculada por ampla cobertura midiática, assim como outras situações estarrecedoras, como: progressivo aumento de desmatamento e de focos de incêndio em nossos biomas – como na Amazônia; redução de efetivos, de operações e de aplicação de multas por crimes ambientais; paralização do Fundo Amazônia que destinava bilhões de dólares à causa ambiental de nosso maior bioma tropical; e (acreditem!) diálogos e defesas a garimpeiros, grileiros de terra e madeireiros ilegais em detrimento de interações com instituições científicas e ambientalistas.

Nesse contexto, estamos passando por momento de imenso perigo para a normalidade de nossos ecossistemas, da salvaguarda da vida e da democracia. Em nível global, assistimos a evidente emergência climática, desprezando o fato de que os ecossistemas de nosso país são fator de proteção às consequências dos extremos climáticos. Sem ao menos vermos o fim da maior crise sanitária dos últimos 100 anos, e tendo a clara noção de que o vírus sars-cov-2 emergiu de ações antrópicas sobre ecossistemas e espécies naturais, vemos acelerar a destruição e o desequilíbrio de nossos preciosos biomas, que de tão diversos de vida também são diversos de potenciais agentes causadores de doenças aos humanos.

Vivenciamos elevação de tarifas de energia elétrica e passamos próximo da inexistência de água para milhões de habitantes em nossas cidades, ignorando que a floresta amazônica é a grande fonte dispersora de chuvas para a porção sul do continente. Vemos um processo de expansão predatória e de financeirização preocupante no setor agrícola exportador, que só é exitoso porque o País é uma potência hídrica, contudo, em conjuntura que praticamente despreza os serviços ecossistêmicos que proveem a produtividade. De fato, as crises sistêmicas associadas aos impactos ambientais afetam e afetarão a todos nós!

Além disso tudo, testemunhamos posturas orgulhosas e desvarios autoritários que desprezam o conhecimento científico. Negar a ciência e dar lugar ao obscurantismo significa denegar o conhecimento mais qualificado sobre a complexidade e pluralidade das questões socioambientais. Esse desserviço se presta a impor interesses escusos conduzidos pela truculência típica de nosso passado colonial e ditatorial, vangloriando um modelo de exportação de commodities agrícolas em um país que sequer está tendo êxito em alimentar sua própria população. Sim, o reducionismo da monocultura (de grãos ou de ideias) nos confunde quanto a propósitos elementares, como de utilizar nossos recursos naturais para preservar a vida e a saúde do povo brasileiro.

O Estado Democrático de Direito tão duramente conquistado pela sociedade brasileira também remete a revigorar nossa agenda ambiental, lutar pela preservação de nossos biomas, zelar pela qualidade e disponibilidade de nossos recursos hídricos, restabelecer nosso papel global exitoso no enfrentamento da crise climática, evitar o envenenamento de nossos ecossistemas, conservar a biodiversidade, demarcar, homologar e proteger as terras indígenas e fazer voltar ao pleno funcionamento as instituições de Estado imbuídas dessas questões. No Brasil (e no planeta) não há mais espaço para retrocessos autoritários de uma monocultura de conhecimento e de práticas que ignoram a ciência, a coletividade e a importância intrínseca dos problemas ambientais.

Temos que contrapor a ilegitimidade de governantes que atentam contra as causas ambientais. Torna-se preciso reverter a agenda de desmonte praticada pela atual gestão federal e criar as condições para um novo modelo de desenvolvimento sustentável, não apenas para a região amazônica, mas para todos os biomas do País. Isto se reflete nos inúmeros benefícios econômicos que podem advir da utilização e da valorização de produtos oriundos da vasta biodiversidade brasileira, promovendo e apoiando a produção local, a inclusão social e a agricultura em bases de pequena propriedade familiar, que tem sido um dos importantes meios de garantir alimentação saudável para muitas famílias no País.

Com isso, vamos também clamar às brasileiras e aos brasileiros a atentar que o meio ambiente deve estar no centro das questões democráticas de hoje e do futuro.

Por Leandro Luiz Giatti, professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, e Pedro Roberto Jacobi, professor do Instituto de Energia e Ambiente da USP

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JORNALISTA XICO SÁ LANÇA SEGUNDO ROMANCE

Quanto tempo dura uma paixão? Noventa minutos, mais os acréscimos? E depois do apito final, o que sobra? Desilusão. E muitas lembranças, ainda que embaralhadas com o andamento, minuto a minuto, de um jogo de futebol: a última partida do goleiro Yuri Cantagalo, protagonista de A falta (Tusquets), segundo romance do jornalista e cronista Xico Sá.

Nascido no Crato (CE), em 1962, Xico iniciou a carreira profissional no Recife, onde assistiu a inúmeros clássicos entre os três grandes clubes (Sport, Santa Cruz e Náutico) da cidade “onde cada ponte e cada ilha são postais da separação”. 

Sempre acompanhado por um radinho de pilha, ele resgatou as lembranças de vozes marcantes das jornadas esportivas para emoldurar a história narrada em “A falta”. “A estrutura do livro foi influenciada pelos narradores do rádio, estes grandes ficcionistas do futebol, com suas marcações do tempo, com suas hipérboles, aquele exagero que mata o ouvinte do coração”, conta o autor, conhecido também pelas participações em programas da GNT e SporTV, em entrevista ao Correio/Estado de Minas.

Em capítulos curtos, introduzidos pela cronometragem dos dois tempos de uma partida de futebol, Xico apresenta ao leitor Yuri Cantagalo, goleiro mergulhado em crise profissional e existencial. “Ao meu ofício cabe sobretudo a espera, o luto estampado na camisa negra com o solitário e esquelético, o tuberculosíssimo e magérrimo 1 às costas. Há toda tristeza e solidão nesse número”, reflete o ocupador da posição “que atrai as tempestades”. Entre referências literárias, musicais e cinematográficas, vão sendo reveladas as desventuras amorosas, as frustrações e as nuances da carreira de Cantagalo. O último capítulo, talvez o mais inspirado, ainda fornece um outro – e poderoso – significado à falta do título. Assim, Xico marca, no apagar dos refletores, um golaço. E pelas mãos de um goleiro.

A seguir, a entrevista de Xico Sá ao Pensar, com perguntas elaboradas a partir de trechos do segundo romance do escritor (o primeiro, Big Jato, foi lançado em 2012).

Como você trabalhou as suas memórias para a ficção de A falta? Qual a diferença para as lembranças que o levaram a Big Jato?

A solidão do goleiro me chamou a atenção desde que comecei a gostar de futebol, ainda na infância. Aquela criatura pisando uma terra desolada onde não nasce grama, vestida de preto, como estivesse de luto, sempre sujeito a uma traição da bola e da existência. Quando me tornei repórter de futebol, cobrindo jogos nos Aflitos, Ilha do Retiro e Arruda (estádios do Recife), aprofundei esse olhar sobre os arqueiros. Foi essa memória que me ajudou agora na escrita do romance. Em “Big Jato”, valeu o delírio autobiográfico, a tentativa de reinventar a infância e a transição para a vida adulta, lá no Cariri, o que acabou gerando uma bagaceira freudiana dos infernos.


O que é mais fascinante no goleiro como personagem literário?

António Lobo Antunes, um escritor português que uso na epígrafe do livro, trata o goleiro como um deprimido debaixo dos paus, um deprimido ao lado de sujeitos eufóricos. O que enxergo de fascinante no guarda-metas, além da solidão, é a angústia (aquela mesma cantada por Belchior na sua “Divina comédia humana”) diante da obrigação de não poder falhar. É uma cobrança sem fim, uma vigilância medonha, assustadora. Não desejo essa sina a ninguém, como diz Yuri Cantagalo, o meu personagem condenado ao gol e ao infortúnio.

Como surgiu a estrutura do livro, que reproduz o andamento de uma partida de futebol, minuto a minuto? O que surgiu primeiro? O personagem ou a estrutura?

A obsessão antiga era entrar na cabeça de um goleiro para saber o tamanho do seu desespero. Primeiro veio esse personagem, com rostos que variavam entre Barbosa, Manga, Yashin, Castilho... A estrutura é influência dos narradores do rádio, estes grandes ficcionistas do futebol, com suas marcações do tempo, com suas hipérboles, aquele exagero que mata o ouvinte do coração – mesmo quando a bola passa longe da trave.

"Assim como a bola chega a um goleiro, uma pessoa entra na vida de outra." Quais foram as “pessoas” (personagens, autores) que entraram na sua vida de leitor e nunca mais saíram?

Converso com o Luís da Silva, de Graciliano Ramos, no “Angústia”, quase todos os dias. Já fiz até o seu roteiro, seus passos, em Maceió. Tomei umas boas lapadas de cana com essa figura inesquecível. Vejo também a Macabéa na estação Consolação do metrô paulistano. De vez em quando, imagino o pai do menino Bandini calçando caixas de papelão para esquentar os pés de imigrante italiano naquele frio miserável da América – espero a primavera com eles. Jim Dodge com todo o universo de Fup é outro livro que não desgruda do couro do juízo. Sem se falar no estirão de Rísia (As mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto) de volta para sua terra. E já emendo em A balada do café triste, onde ajoelho aos pés de Miss Amelia, criatura de Carson McCullers.

O livro tem passagens que evocam lembranças de transmissões de jornadas esportivas. Por que esses profissionais são tão marcantes?

Coloquei lá o Dáblio Dáblio (apelido de Walter Wanderley) como narrador de rádio e o Tirésias Cavalcanti, o comentarista que enxerga além do jogo. São dois homens fictícios do rádio pernambucano, mas criados à semelhança de tantos profissionais do ramo. Aquele radinho de pilha, o radinho fanhoso das transmissões esportivas, é algo que marca nossas vidas, é a voz melancólica ou feliz dos domingos. Tem ainda uma repórter de campo que se chama Vera Dubeux, uma homenagem às amigas Vera Ogando e Ana Dubeux (diretora de Redação do Correio Braziliense), as duas primeiras mulheres que vi cobrindo bastidores de futebol no Recife.

O que o romance permite dizer que a crônica e a reportagem não alcançam?

Na crônica, trato, com algum lirismo, sobre o drama e a agonia dos goleiros em alguns jogos. No romance, entro na cabeça do Yuri Cantagalo (o personagem do livro) e relato seu desespero, sua angústia, suas maquinações mentais, vivo o absurdo de ser o goleiro também – no mesmo sentido que o Flaubert dizia ser a Madame Bovary.

Quais as tabelinhas inesquecíveis entre a literatura e o futebol em nosso país?

Começo por Graciliano Ramos e Lima Barreto. Os dois, por razões diferentes, odiaram o futebol e escreveram textos antológicos sobre essa antipatia. Na ficção, Sérgio Sant’Anna de Páginas sem glória e outros contos – dedico A falta a ele, é o mestre. Aí temos também O paraíso é bem bacana, de André Sant’Anna, pra continuar na família; O drible, gol de placa absoluto de Sérgio Rodrigues; A cobrança, romance matador de Mário Rodrigues; A saída do primeiro tempo, de Renato Pompeu, é coisa de gênio torcedor da Ponte Preta. Recentemente, um livraço de Emmanuel Mirdad, Oroboro Baobá, com um goleiro no comando. Sim, Nelson Rodrigues é um cronista à prova de VAR.

Podemos considerar A falta também como uma história de paixão e desilusão?

Sem a menor dúvida. A Sevilhana deixa o goleiro em frangalhos. É uma dor de amor para estremecer a terra. Só lhe resta assobiar aquele Nelson Cavaquinho de rachar o coração. São muitas faltas em uma só: a ausência da mulher, a paternidade desconhecida e um Brasil que Yuri Cantagalo não reconhece mais como o seu país, o seu lugar.

TRECHO "Ela nunca me prometeu amor eterno, nem sequer falou sobre permanência de nada, e eu bem sabia do perigo. Não direi que vivia o mesmo risco de levar um gol aos quarenta e cinco minutos do segundo tempo porque a esta altura da vida odeio as metáforas do jogo. Prefiro falar o que tem de trágico da forma mais direta possível. Sabia que Ela ia desaparecer, e, durasse o que durasse, a agonia seria a mesma. Uma ou mil e uma noites. Foi embora e me deixou na vastidão deste país que me parece mais estrangeiro do que qualquer província de exílio."



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UM MÊS APÓS REINTRODUÇÃO NO SERTÃO BAIANO, ESPECIALISTAS FALAM SOBRE VOLTA DAS ARARINHAS AZUIS

Um mês depois das ararinhas-azuis voltarem ao céu de Curaçá, a reintrodução desses animais à natureza é considerada bem-sucedida pelos especialistas que acompanham de perto essa adaptação. A ave rara e endêmica da região ficou há mais de duas décadas extintas da natureza.

No Alto dos Morros, no meio da Caatinga, pesquisadores e brigadistas do Instituto Chico Mendes de Biodiversidade (Icmbio) estão de olho em oito ararinhas-azuis spixii que foram soltas em 11 de junho deste ano, no sertão baiano. Trabalho que resultou de uma parceria com uma ONG alemã.

Eles também monitoram sinais de rádio emitidos por equipamentos presos no corpo das aves, as primeiras a ganhar a liberdade depois que a espécie foi considerada extinta na natureza, há 22 anos.

"Nós conseguimos registrar qual é o comportamento de cada indivíduo ou do grupo, se ele está se alimentando, se ele tá buscando algum recurso que tá no ambiente, como água de riacho ou alimento disponível ali na área e material também para a construção de ninho", disse a pesquisadora do Icmbio, Ariane Ferreira.

A caraibeira é uma das árvores preferidas da ararinha-azul para fazer o ninho. É uma árvore da beira dos riachos, uma das mais altas da caatinga, algumas chegam a vinte metros de altura.

O casal de ararinhas, que fica junto a vida inteira, geralmente escolhe os galhos mais altos. No local elas se reproduzem e também se alimentam. O fruto da caraibeira é um banquete para as aves.

As ararinhas também gostam muito das sementes de árvores como o pinhão e a favela. As aves, que nasceram em cativeiro na Alemanha, ainda preferem ficar perto do viveiro, onde se sentem seguras, mas algumas já arriscam voos maiores na unidade de conservação criada para elas.

É uma área equivalente a 120 mil campos de futebol na zona rural de Curaçá, sertão da Bahia, o único lugar no mundo onde ela existe. Os moradores da região se tornaram parceiros na tarefa difícil de proteger as ararinhas.

A aposentada Lídia Rosa avisou os pesquisadores quando viu um grupo de ararinhas na fazenda dela, algo que não acontecia havia mais de 20 anos.

"Faço questão de ajudar. É uma ave que já foi daqui da nossa região, e agora elas voltarem de novo para nossa região é muito importante", contou.

A dona de casa Liete de Araújo ouviu o canto de um pássaro no telhado, e, para surpresa dela, era uma ararinha. A ave foi resgatada depois de nove dias desaparecida. Como agradecimento, os pesquisadores deram a ela o nome da moradora.

"Eu nunca imaginei que tivesse meu nome aí na ararinha. Eu desejo que ela seja muito feliz e viva muito aqui no nosso convívio e nada aconteça com ela", afirmou a baiana.

O brigadista Anthony Pietro Martins, que só tinha ouvido falar das ararinhas, agora ajuda a proteger a espécie, seguindo o exemplo do avô.

"Quando eu vi as ararinhas pela primeira vez, eu relembrei todas as histórias que meu avô contava para mim, e eu fiquei bastante feliz de poder estar trabalhando com o que ele fez no passado".

Por Mauro Anchieta, Joyce Guirra e Lílian Marques, Jornal Nacional


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BRASIL CONTINUA CELEBRANDO OS 33 ANOS DE MORTE DE LUIZ GONZAGA, SANFONEIRO QUE CANTOU O NORDESTE E ENCANTA O BRASIL

Luiz Gonzaga do Nascimento, o menino da cidade de Exu, na Serra do Araripe, no Sertão Pernambucano, cantou o Nordeste e encantou o Brasil com  gêneros musicais como a toada, o xaxado, o baião e o xote. 

A data do seu nascimento, 13 de dezembro, foi celebrado o Dia Nacional do Forró e “Asa Branca”,  música composta em parceria com Humberto Teixeira, 75 anos, fez-se o hino da identidade musical nordestina.

Na terça-feira (2), completou 33 anos sem Gonzagão e o artista teve diversas homenagens pelo Brasil afora. Numa delas a Rádio Tupi, Rio de Janeiro destacou a importância da voz e sanfona de Luiz Gonzaga para o cenário da música brasileira.

O cantor, compositor e instrumentista brasileiro, filho de Gonzaguinha e neto de Luiz Gonzaga, Daniel Gonzaga, falou com orgulho do legado do avô. Saudar Luiz Gonzaga é saudar a Música Popular Brasileira em toda a sua beleza. O cantor Fagner e a cantora Anastácia também celebraram o Rei do Baião.

Tato, vocalista da banda Falamansa, disse que conheceu a obra do Rei do Baião ainda criança, nos festejos juninos.

O jornalista e radialista, Carlos Henrique Oliveira, ressaltou o pioneirismo de Luiz Gonzaga.

RÁDIO:  Segundo o crítico Ricardo Cravo Albin, Luiz Gonzaga não era “só o melhor entre todos os cantores de alma sertaneja, mas também o mais importante cantor-músico-compositor que o Nordeste já produziu”. "Gênio", que Cravo Albin compara a Ary Barroso, Pixinguinha, Tom Jobim ou Chico Buarque.

Não foi fácil a vida de Luiz Gonzaga do Nascimento até ser aceito pelo público e pela crítica. O músico nasceu no dia 13 de dezembro de 1912, na cidade de Exu, Pernambuco. Para sobreviver, passava o chapéu para arrecadar uns trocados nos bares da zona do baixo meretrício depois de tocar as músicas sertanejas que aprendeu com os amigos do Exército.

Em 1940, no Rio de Janeiro, procurou uma oportunidade nos programas de calouros. Na primeira vez, foi reprovado no Calouros em Desfile, de Ary Barroso, na Rádio Tupi, e no programa Papel Carbono, de Renato Murce, na Rádio Clube.

Até que, um dia, no Bar Cidade Nova, no Mangue, estudantes cearenses pediram que ele tocasse música nordestina. Voltou para seu humilde quarto para ensaiar e passou a se lembrar dos velhos ritmos nordestinos. Outra vez, no bar, um fato inesperado aconteceu. Juntou gente da rua para ouvir a música "Vira e mexe". O bar ficou lotado.

Ao se apresentar novamente no programa Calouros em Desfile, obteve a nota máxima, 5, raramente dada a alguém pelo exigente Ary Barroso.

Luiz Gonzaga se inspirou no gaúcho Pedro Raimundo, um sujeito alegre, que se apresentava como sulista no rádio. Decidiu imitá-lo, na Rádio Nacional.  Apresentou a novidade, foi aceito, mas o figurino do Nordeste foi rejeitado. O diretor Floriano Faissal disse que ali não era “casa de cangaceiro”. O artista teria que vestir um summer, traje formal que não tinha nada a ver com a sua música. Aos poucos, porém, os dirigentes e apresentadores das emissoras se acostumaram com o traje e com o fato de Luiz Gonzaga ter abandonado as valsas, os tangos e os foxtrotes, que apresentava anteriormente. Seu jeito de cantar foi aceito aos poucos, com muita luta para vencer os preconceitos.

Em 1943, Luiz Gonzaga assinou o primeiro contrato para atuar fora do Rio de Janeiro, fazendo uma temporada no Cassino Ahu, em Curitiba. Começou a ser chamado de “o maior acordeonista do Brasil”. Nesse ano também ganhou o apelido "Maior Sanfoneiro Nordestino”, dado pelo então jovem radialista César de Alencar.

Luiz Gonzaga se consagrou como um dos mais talentosos intérpretes da música popular brasileira. Ele morreu no dia 2 de agosto de 1989, no Recife, aos 76 anos.

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JOQUINHA GONZAGA E FAUSTO "PILOTO" LUIZ MACIEL, OS SOBRINHOS DE LUIZ GONZAGA E NETOS DE JANUÁRIO

João Januário Maciel, o sanfoneiro Joquinha Gonzaga e Fausto Luiz Maciel, conhecido por Piloto são hoje dois descendentes vivos da família Januário e Santana. Joquinha Gonzaga e Piloto são da terceira geração da família. Todas as irmãs e irmãos de Luiz Gonzaga já morreram.

Nesta terça-feira, 02 de agosto, o coração dos sobrinhos de Luiz Gonzaga e neto de Januário, o tocador de sanfona de 8 baixos, batem no ritmo dos 33 anos de saudades, desde que o sanfoneiro partiu na madrugada de 1989.

Joquinha nasceu no dia 01 de abril de 1952, filho de Raimunda Januário (Dona Muniz, segunda irmã de Luiz Gonzaga) e João Francisco Maciel. Joquinha Gonzaga é o mais legítimo representante da arte de Luiz Gonzaga. Mora em Exu, Pernambuco.

"Sempre estou contando histórias, músicas de meu tio, músicas minhas, dos meus colegas. Não fujo da minha tradição, das minhas características, que é o forró, o xote, o baião. Eu procuro sempre dar uma satisfação ao público que tem uma admiração à minha família, Luiz Gonzaga, Zé Gonzaga, Severino, Chiquinha, Daniel Gonzaga, Gonzaguinha. Meu estilo musical não pode ser diferente. É gonzagueano", diz Joquinha.

Joquinha é o nome artístico dado pelo Rei do Baião e filho de Muniz, segundo Luiz Gonzaga irmã que herdou o dom de rezar muito.

Joquinha aos 12 anos ganhou uma sanfona de oito baixos, o famoso pé de bode.

O sanfoneiro conta que quando completou 23 anos, começou a viajar com Luiz Gonzaga e foi aprendendo, conhecendo o Brasil inteiro. "Ele não só me incentivou, como também me educou como homem. Era uma pessoa muito exigente, gostava muito de cobrar da gente pelo bom comportamento. Sempre procurando ensinar o caminho certo. Tudo que ele aprendeu foi com o mundo e assim eu fui aprendendo", revela Joquinha.

Luiz Gonzaga declarou em público que Joquinha é o seguidor cultural da Família Gonzaga. O primeiro LP-disco Joquinha Gonzaga gravou foi -Forró Cheiro e Chamego. Gravou com Luiz Gonzaga "Dá licença prá mais um".

Em 1998 Joquinha Gonzaga participou da homenagem "Tributo a Luiz Gonzaga", em Nova York, no Lincoln Center Festival.

Ninguém conhece melhor o artista do que os músicos que o acompanham. São eles que vivem o dia a dia, enfrentam os bons e maus humores do artista.

Imaginem então, o músico sendo um sobrinho. Fausto Luiz Maciel é irmão de Joquinha. É um desses músicos privilegiados que conviveu dia a dia os mistérios do Rei do Baião.

Piloto começou a acompanhar o tio Luiz Gonzaga no ano de 1975. Bom ritmista, tocou zabumba e sua primeira gravação com o tio foi no disco Capim Novo, em 1976. Participou de inúmeros trabalhos e viagens lado a lado com Luiz Gonzaga como zabumbeiro, motorista e secretário.

A partir de 1980 seguiu acompanhando Luiz Gonzaga em todos os seus trabalhos, até o ano de seu falecimento, em 1989. Piloto atualmente mora em Petrolina Pernambuco.

O zabumbeiro é irmão de Joquinha Gonzaga, cantor e sanfoneiro, que também acompanhou o tio nas andanças por este Brasil afora.

Piloto conta que conheceu todos os grandes cantores da época, citando Jackson do Pandeiro, Ari Lobo, Abdias, Sivuca, Dominguinhos, Lindu e Marines.  Teve momentos de muitos aprendizados e viu muitos fatos e acontecimentos na carreira do tio, Luiz Gonzaga.  “A gente brigava muito. Eu era perguntador e ele respondão. Com tio Gonzaga não tinha por favor. Era mandão mesmo".

Quando ia gravar um dos últimos discos, eu quis viajar logo para o Rio de Janeiro  com ele, que me pediu que ficasse em Exu, quando precisasse, mandava a passagem e eu iria. Avisei que fizesse isto com antecedência, porque não ia às pressas. E foi o que aconteceu. João Silva me ligou dizendo para eu pegar o ônibus que a gravação ia começar tal dia. Estava muito em cima, respondi que eu não iria. E não fui”. 

Revela hoje que os arroubos faziam parte da idade e uma certa imaturidade e dificuldade de compreender o humor do tio, que "pela manhã estava feliz, no meio dia calado e á noite ninguém perguntasse duas vezes". "Mas houve momentos de muitos abraços e declarações de amor. Bons momentos de felicidades".

Piloto conta que Mais do que somente historias das andanças do Rei do Baião, o que se revela e até hoje é um mistério: Luiz Gonzaga era complexo, de mudança bruscas de temperamento, centralizador, sempre, autoritário quase sempre,  mas que em certos momentos podia ser inesperadamente humilde e gentil. "Gilberto Gil disse que os gênios são assim, e isto revela o ser humano que era meu tio Luiz Gonzaga. Um gênio".

O jornalista José Teles, escreveu, que de todos os que trabalharam com Luiz Gonzaga, Piloto foi o único que não aguentava em silêncio os arroubos de mau humor do tio.

Motorista e zabumbeiro, Piloto foi também empresário de Luiz Gonzaga. Ele afirma que durante os anos que conviveu com Gonzagão testemunhou “coisas incríveis”; “Ele foi mal assessorado quase a carreira toda. Os amigos se aproveitavam. Ele não tinha visão de dinheiro. Às vezes fazia show em clube lotado, e o empresário dizia que deu prejuízo. Quando Gonzaguinha assumiu a carreira dele, tio Gonzaga teve sua fase de profissional. Passou a receber cachê adiantado. 

Mas, conta Piloto, ele, o tio,  até aí ele não podia, por exemplo, ver um circo. Parava e fazia o show dividindo a renda com o dono, as vezes dava toda renda, quando o circo estava com muita dificuldade. Uma vez cismou de comprar uma Kombi a álcool, ninguém conseguiu convencer ele sobre as desvantagens, da instabilidade, nada. Quando ele queria, tinha que ser. E assim foi”. (Texto jornalista Ney Vital)

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LUIZ GONZAGA, ALMA MUSICAL DO BRASIL

Eu tinha umas asas brancas, asas que um anjo me deu, que, em me eu cansando da terra, batia-as e voava ao céu". *Almeida Garrett

Luiz Gonzaga não precisou, como Almeida Garrett, que um anjo lhe desse asas. Ele confeccionou sua própria Asa Branca e com ela fez uma ponte entre" a Terra e a eternidade.

Voou para o céu. E lá, a esta altura, já deve ter localizado o Nordeste do infinito, substituindo as harpas por sanfonas nos coros celestiais, hinos novos de louvor a Deus.

Pernambucano? Nordestino? Ou simplesmente brasileiro? De ponta a ponta o ,Brasil se orgulha de seu filho e o inclui entre os gênios que melhor souberam interpretar e traduzir sua alma. O País todo chorou sua morte e exaltou sua glória. Brasileiro de Pernambuco - Estado que ouviu seu primeiro balido e lhe absorveu o último suspiro -, Luiz Gonzaga é intrinsecamente telúrico. 

Grandes cantores e compositores nordestinos, que ganharam fama além-fronteiras, ficaram contidos ao círculo de sua vivência. Caymi, tão perto do mar, e toda uma geração dos chamados "baianos" são exemplos.

Luiz Gonzaga, o Rei do Baião, foi o nordeste universalizado. Cantou o mar, a caatinga, a mata e o sertão com a mesma força telúrica. A música teluricamente nordestina de Luiz Gonzaga, antecipadamente precursora da música popular brasileira, é assim algo que, embora não possa ser entendida como música engajada, "uma denúncia de protesto"; é, contudo, politicamente comprometidacom a busca da solução regional nordestina, com o perseguir para o nosso País de um desenvolvimento nacional mais homogêneo - sem distorções; mais orgânico, menos injusto. portanto.

Pois é evidente que se quiseRnos resolver a questão do desenvolvimento do País, precisamos encontrar respostas para os desafios regionais.

O Brasil não é um só, singular; é múltiplo, multirregional. "A unidade brasileira", lembra Gilberto Freyre, é do que se nutre para ser O espantoso fenômeno sócio-ecológico que é: da diversidade de regiões do Brasil no plural que se interpenetram. completando-se no Brasil, no Brasil singular".

Gonzaga era um telúrico sem ser provinciano, pois o telurismo é manter-se preso às circunstâncias locais sem perder a visão das questões nacionais ou até internacionais. Tampouco se pode confundir telurismo, regionalismo com separatismo, pois isso seria negar a grande aspiração à unidade nacional que pressupõe a integração inter-regional.

Luiz Gonzaga, que cantou as alegrias e o sofrimento de sua gente, em ritmos até então desconhecidos, tinha exata consciência de que "o homem nasce para a sociedade e tem deveres para com os seus semelliantes", como entendeu outro visionário da causa regional, Frei Joaquim do Amor Divino Caneca.

Sua sensibilidade para com os problemas sociais era enorne, sobretudo nas músicas em parceria com Zé Dantas. A sua música, se não pode ser classificada como "de protesto", é prenhe de inconformismo, do abandono a que ainda hoje está sujeita pelo menos um terço da população brasileira mormente a que vive no chamado semi-árido, para usar expressão redescoberta pelos tecnocratas, ou no polígono das secas, no jargão do legislador.

Por isso não estaria exagerando se dissesse que, embora Gonzaga não tivesse militantemente exercido atividade política ou partidária, foi um político na ampla acepção do termo. Política bem  o sabemos, é a realização de objetivos coletivos e não se efetua apenas através dos partidos políticos ou, sequer, através do exercício de cargos póblicos, que ele nunca os teve.

Política, dilucida com propriedade Alceu de Amoroso Lima, é saber, virtude e arte do bem comum.

Não foi graças a sua voz que o drama nordestino, especialmente das secas e estiagens, adquiriu uma consciência nacional e transfornou-se em questão a exigir atenção e atuação do poder central?

A seca. como é notório, não é um fenômeno novo, mas, recorde-se, a música de Gonzaga ajuda a convertê-la em desafio para os governantes.

Bem antes dele, Euclides da Cunha, no início do século, enfatizara:

"As secas do extremo norte delatam, impressionadoramente, a nossa imprevidencia, embora sejam o único fato de toda a nossa vida nacional ao qual se possa aplicar o princípio da previsão."

E prossegue:Faz-se mister que este problema urgentíssimo, as secas, seja um motivo para que demos maior impulso a uma tarefa, que é o mais belo ideal da nossa engenharia neste século: a defInição exata e o dominio franco da grande base física da nossa nacionalidade."

Não foi diferente o reclamo de outro nordestino como Gonzaga, esse o único a chegar à Presidência da República pelo voto direto - Epitácio Pessoa. que diz em histórico discurso, em

São Paulo:.....Penetaí naquela fornalha ardente; lançai as vistas sobre aqueles campos calcinados onde as plantações desapareceram de todo. onde a vegetação feneceu e mirrou, e os bebedouros se ressequiram, sob a centelha comburente do sol impiedoso; ide e percorrei aqueles chapadões intérminos, onde o silêncio apavorante das quebradas apenas interrompe de longe em longe pelo mugido desesperado do gado sequioso e faminto..."

E concluía:

..... Dizei depois se se trata de questão que interessa apenas ao Nordeste ou se, pelo contrário, não se trata de problema eminentemente nacional."

Gonzaga interpretou o sofrimento e também as poucas alegrias - de sua gente emquase duzentas canções, em ritmos até então desconhecidos; além do baião, o forRÓ, as marchinhas juninas, o xaxado e tantos outros.

Mas através de Asa Branca - não há ódio ou mágoa, a sua Asa era a pomba branca da paz -, Gonzaga elevou à condição de epopéia a questão nordestina.

Tal a importância dessa música, ela se converteu em símbolo da região inteira. Certa feita Gilberto Freyre disse que o frevo "Vassourinhas", que parece estar nos glóbulos do sangue pernambucano, era nossa "Marselhesa". Que dizer da Asa Branca? Não será o Hino

do Nordeste?

Convivi, Deus me deu esta ventura, com Luiz Gonzaga. Fui seu amigo, observei sua permanente preocupação com a sorte de sua terra e sua gente. O Nordeste de modo geral; o sertão de modo particular, sua Exu, especialmente.

Efetuei, como governante, um amplo projeto integrado de melhoria do semi-áridopernambucano que compreendia ações no plano de perenização dos rios, eletrificação rural, estradas, inclusive vicinais, crédito rural, assistência à agropecuária , a que dei o nome de "Asa Branca".

Ele reconhecidamente me retribuiu a justa homenagem, acompanhando-me na mobilização  popular necessária à execução do projeto.

Talvez por isso muito me distinguisse, sempre afetuosamente como por exemplo

ao chamar-me de "patrão". Ele mesmo em entrevista à revista Veja disse certa feita: "Sou como vaqueiro de coronel. Você pergunta em quem vai votar e eu respondo: no patrão, em quem o patrão mandar. Eu tenho o meu patrão, que se chama Marco Maciel".

Outro aspecto político, posso também dizer, da presença de Gonzaga reside no resgate da música popular brasileira.

O vigor de suas melodias tonificou a nossa música, retirando-a do empobrecimento cultural que atravessava há cerca de quarenta anos atrás. Não podia o Brasil, com tanta riqueza musical, deixar-se agredir e violentar com modelos exóticos, xerocando música e importando padrões sem vinculação com as nossas coisas, desconhecendo a capacidade critica de nossa gente.

Hoje, os críticos asseveram que o velho ··Lua"além de inventar tantos ritmos brasileiros e nordestinos, foi o precursor do rock'n roll. Essa é, por exemplo, a opinião , estampada na Folha de S. Paulo do mês passado:

"Luiz Gonzaga antecipou em 10 anos no Brasil o forró nos anos 40. A questão não é rítmica neste quesito o forró tem mais similaridade como reggae. Trata-se da dinâmica que ele imprimiu à sanfona, os acordes simples e estruturas repetitivas. 

Luiz Gonzaga criou um ritmo próprio para a dança, tal qual o rock.

Não é à·toa que o ritmo faça tanto sucesso hoje no Nordeste quanto Madonna no resto do mundo. Quem ouve Gonzaga não precisa de Madonna".

Não é diferente o parecer de José Ramos Tinhorão também cientista e historiador ao opinar em O Estado de S. Paulo: "No Brasil, existem poucos·criadores. Luiz Gonzaga foi um criador'. Teve, portanto, a sua músÍca um viés nacionalista, ou melhor, brasileiríssimo - que impediu lavrasse um processo deperda de nossa identidade cultural. Não foi também essa uma contribuição, insisto, de natureza política que o rei do Baião quase imperceptível nos legou?

Não foi uma música teluricamente nordestina, apenas, mas o foi assim genuinamente nacional, posto que de defesa de nossas tradições e evocação de nossos valores.

Isso ajuda a explicar, como afirma Herminio Carvalho, o fato de não se conhecer "outro artista DO Brasil que tenha criado tantos filhos musicais quanto os que ele gerou".

Gonzaga, rei do baião, ao lado de Padre Cícero, Antonio Conselheiro, o de Canudos, Lampião, outro rei do Cangaço, embora AnibaI Torres conhecido por Ascenso Ferreira, fez crescer o rico acervo cultural popular nordestino: primitivo, porém extremamente denso; simples, rustico, mas autêntico.

Através de sua obra ele está vivo e vive no sertão, no pampa, na cidade grande, na boca do povo, no gemer da sanfona, no coração e na alma da gente brasileira.

Pois ele nos legou através da música a sua mensagem, e, diz Fernando Pessoa, que quem morrendo "deixa escrito um belo verso, deixou mais ricos os céus e a terra, e mais emotivamente misteriosa a razão de haver estrelas e gente".  (Discurso Marco Maciel-Setembro 1989)


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