Ás 18 horas, sempre guardo na correria da vida e do trabalho, a oração da Hora do Anjo. Estes dias olhando o Rio São Francisco ouvindo as canções de Padre Zezinho lembrei da Oração do Rio São São Francisco em tempos de poucos Rios. Assim escutei do amigo Aderaldo Luciano. Assim reproduzo:
O Rio São Francisco não nasce na Serra da Canastra. Digo isso porque a
correria estressante das ruas do Rio de Janeiro me oprime. Os olhos
dessas crianças nuas me espetam e essa população de rua dormindo pelas
calçadas me joga contra o muro. Esse Cristo economiza abraços e atende a
poucos.
Só uma coisa me alenta hoje: a saudade do meu santo rio. O Rio São
Francisco, o Velho Chico, Chiquinho. Escuto o murmurar de suas verdes
águas: — Deixai vir a mim as criaturas... E assim foi feito. Falar de
desrespeito e depredação tornou-se obsoleto. Denunciar matanças e
desmatamentos resultou nulo. Orar e orar. Pedir ao santo do seu nome a
sua oração.
Lá do Cristo Redentor da cidade de Pão de Açúcar, nas Alagoas, um
moleque triste escutou a confissão das águas. Segundo ele, o Velho Chico
dizia: “Ó, Senhor, criador das águas, benfeitor dos peixes, escultor de
barrancas e protetor de homens fazei de mim bem mais que um instrumento
de tua paz. Se paz não mais tenho faz-me levar um pouquinho aos que em
mim confiam. Paz para as lavadeiras que, em Própria, choram a sua fome
de pão. Que, em Brejo Grande, soltam lágrimas pelos filhos mortos no sul
do país. Que, em Penedo, já perderam a fé de serem tratadas como gente
sã.
Onde houver o ódio dos poderosos que eu leve o amor dos pequeninos. O
amor dos que cavam a terra a plantam o aipim. Dos que cavam a terra e
usam-na como cama e lençol para sempre. Dos que querem terra para suas
mãos, para os seus grãos, para a sua sede. O amor que não é submisso,
mas escravizado. O amor que tem coragem de um dia dizer não. Coragem
diante das balas e das emboscadas, das más companhias e da solidão.
Onde houver a ofensa dos governos que eu leve o perdão dos aposentados e
servidores públicos. O perdão, nunca a omissão. A luta, porque perdoar
não requer calar. Perdoar não quer dizer parar. Como minhas águas,
tantas e tantas vezes represadas, mas nunca paradas e que, quando em
minha fúria, carregam muralhas, absorvem barreiras e escandalizam Três
Marias, Xingó e Paulo Afonso.
Onde houver a discórdia dos que mandam que eu leve a união dos
comandados. A suprema união dos que sonham com as mudanças, dos que
querem quebrar hegemonias e oligarquias. A discórdia dos reis contra a
união dos plebeus. Um povo unido é força de Deus, dizia o velho bendito e
sejais bendito, Senhor. A união das águas, a união das lágrimas, a
união do sangue e a união dos mesmos ideais.
Onde houver a dúvida dos que fraquejam, que eu leve a fé dos que
constroem seu tempo. Na adversidade, meio ao deserto e ao clima árido, a
fé dos que colhem uvas e mangas em minhas margens. Dos que colhem arroz
em minhas várzeas, dos que criam peixes com minhas águas em açudes
feitos. A fé dos xocós lá em Poço Redondo. A fé que cria cabras nos
Escuriais. Dos que colhem cajus e criam gado em Barreiras e outros
cafundós.
Onde houver o erro dos governantes que eu leve a verdade de Canudos. O
bom senso dos conselheiros de encontro à insanidade dos totalitários. Os
canhões abrindo fendas na cidade sitiada e a verdade expondo cada vez
mais a ferida da loucura na caricatura da História. O confisco da
poupança e o rombo na previdência. O fim da inflação e o pão escasso, o
emprego rarefeito, a dignidade estuprada em cada lar de nordestinos.
Onde houver o desespero das crianças da Candelária que eu leve a
esperança das mães de Acari. E aqui, Senhor, te peço com mais fé. A dor
dos deserdados, dos que perderam seus pais, filhos ou irmãos, seja de
fome, doença ou assassínio, inundai-os com as águas esmeraldas da
justiça. A justiça da terra e dos céus. Pintai de verde o horizonte das
famílias daqueles que foram jogados mortos em minhas águas. Eles não
foram poucos.
Onde houver a tristeza dos solitários que eu leve a alegria das festas
de São João. Solitário eu banho muitas terras e em todas, das Gerais, do
Pernambuco, das Alagoas e do Sergipe, não há tristeza ao pé da
fogueira, nas núpcias entre a concertina e o repente, entre a catira e o
baião.. Das festas do Divino ao Maior São João do Mundo, deixai-me
levar, Senhor, o sabor de minhas águas juninas e seus fogos de
artifícios.
Onde houver as trevas da ignorância que eu leve a luz do conhecimento e
da sabedoria. A escuridão dos homens dementes que teimam em querer
ferir-me de morte seja massacrada pela luz de um futuro negro, sem água
potável, sem terra e sem ar.. Dai-me esse poder, de entrar nas mentes e
nos corações, de espraiar-me pelos mil recantos dos que querem mal à
nossa casinha, nossa pequena Terra. O homem sábio seja sempre sábio e
contamine os povos com ensinamentos de preservação.
Ó, Senhor, dai-me vocação para consolar os que se lamentam de má sorte.
Fazei-me compreender porque tanto mal há nos corações. Sobretudo,
Senhor, não autorizeis que eu deixe de ser o Rio São Francisco, que há
tantos anos não foge do seu leito, espalha e espelha vida em abundância.
Que, embora tenha dado, quase nada recebo, que perdoando sempre,
continuo sendo morto enquanto todos pensam que serei eterno.”
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