O PAÍS TEM CAPACIDADE DE PRODUZIR E ALIMENTAR. NINGUÉM PRECISA PASSAR FOME NO BRASIL, AFIRMA ENGENHEIRA AGRÔNOMA CANDIDA BEATRIZ

Dá para perceber a animação da Natalina dos Santos de longe. Ela chega sorrindo, com um turbante vermelho combinando com a blusa. Natalina podia ter esperado em casa pelos alimentos entregues à população da pequena cidade localizada no sertão do Rio São Francisco.

Por ela morar em uma comunidade ribeirinha, distante do centro de Pilão Arcado (BA), os alimentos do PAA são enviados pela prefeitura até sua casa. Mas como Natalina estava ansiosa, acabou encontrando os funcionários da prefeitura na casa da vizinha. “Eu moro ali, minha filha, naquele barraquinho, você bota aí que moro sozinha, só eu e Deus”, diz Natalina.

PAA é a sigla para Programa de Aquisição de Alimentos, um programa criado em 2003, no qual o governo compra alimentos de agricultura familiar local e os entrega às pessoas em situação de insegurança alimentar.

Natalina é uma das 116,8 milhões de pessoas no Brasil que convivem com algum grau de insegurança alimentar. A falta de disponibilidade e o acesso aos alimentos atingiu em 2020, segundo o Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da covid-19 no Brasil, metade da população brasileira (55,2%). Desses, 43,4 milhões (20,5% da população) não contavam com alimentos em quantidade suficiente (insegurança alimentar moderada ou grave) e 19,1 milhões (9% da população) estavam passando fome (insegurança alimentar grave).

A pesquisa, realizada em dezembro de 2020, mostrou que pessoas como Natalina - mulheres, negras, entre 50 a 64 anos, sem escolaridade, moradoras das regiões Norte e Nordeste do país e da área rural - têm mais chance de terem insegurança alimentar grave.

No Norte, 18,1% da população passa por essa situação e no Nordeste, 13,8%. Comparando com o Sul e Sudeste, as regiões Norte e Nordeste tiveram o triplo e o dobro de número de domicílios expostos à insegurança alimentar grave respectivamente.

A precarização das relações de trabalho e o aumento do desemprego também colaboram para o aumento da fome. A fome no país foi quatro vezes superior entre as pessoas com trabalho informal e seis vezes superior entre as pessoas desempregadas.

O momento emergencial fez com que mais de 800 organizações da sociedade civil apresentassem ao Governo Federal uma proposta para o fortalecimento do Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). O governo respondeu à pressão social e liberou R$ 500 milhões para o PAA emergencial.

O agricultor Joelson Nascimento, 28, ficou sabendo que o PAA emergencial estava liberado para Pilão Arcado um dia antes de fechar o prazo de inscrição no programa. "Falaram que não tinham agricultores cadastrados e que não tinham produtos [no município]'', disse Joelson.

Por ser técnico agrícola e integrante da Associação de Técnicos em Agropecuária e Apoiadores da Agricultura da Bahia, ele estranhou a informação que deixaria a cidade baiana de fora do PAA. Afinal, o que não falta na cidade são agricultores. Pilão Arcado tem 35 mil habitantes. Aproximadamente 80% da população vive na área rural e cerca de 70% dos moradores da área rural vivem da agricultura. Apesar disso, o município tem um índice alto de insegurança alimentar. Joelson garantia: usando a produção local para alimentar quem tinha fome, daria para atender a cidade e ainda sobrava. Parecia só uma questão de falta de comunicação, então, ele mesmo resolveu o problema:

''Tive que cadastrar 21 agricultores em 24 horas. Peguei todo o processo, me responsabilizei, fiquei por minha conta'', diz Joelson.

Feito o cadastro dos agricultores, foram disponibilizados R$ 90 mil para o PAA, no município, para serem gastos entre janeiro e junho de 2021. Mas como é a primeira vez do programa em Pilão Arcado, esse processo não foi tão simples, explicou Sineide Soares, 35, assistente social da prefeitura há 11 anos. A primeira compra acabou sendo realizada só em abril e 120 pessoas foram beneficiadas.

Em abril deste ano, na primeira etapa do PAA, em Pilão Arcado, foram distribuídos 1,5 tonelada de alimentos. Para que o dinheiro do programa, destinado ao município baiano, fosse usado completamente até junho, seria preciso comprar aproximadamente 19 toneladas de alimentos dos agricultores na segunda etapa realizada na última semana de maio.

Como era o dia anterior da coleta com os agricultores, o celular da professora universitária e engenheira agrônoma Cândida Lima, 34, não parava de tocar. Ela fazia o levantamento de alimentos produzidos torcendo para chegar ao maior número possível para conseguir utilizar todo o valor obtido.

 '' [Na primeira etapa], eu pensei: 'gente, não acredito, eu tô vivendo um sonho, para tudo, o que é isso?'. A gente de fato se surpreendeu com o quanto os agricultores se dedicaram nesse processo, o quanto eles estão preparados para uma demanda muito maior. A gente limitou porque a gente tinha receio na questão da verba que tinha disponível, mas isso foi uma falta de experiência da gente'.

Rosinaldo Viana, 39, é um dos agricultores que fez a venda de alimentos para o PAA de Pilão Arcado. Quando ele tinha cinco anos, a família mudou para São Paulo para tentar uma vida melhor. "Fomos como retirantes. Meu pai participou de uma invasão e pegamos um lote. Era favela mesmo, em Diadema. Não fomos felizes, sofria muito bullying, 'paraíba, nordestino', essas coisas."

Em São Paulo, Rosinaldo trabalhou na indústria metalúrgica por 12 anos, "mas teve uma hora que eu falei: 'tenho que retornar'. Lá em São Paulo a gente está dentro da gaiola, aqui tinha liberdade."

Quando voltou para Pilão Arcado, em 2011, o agricultor desenvolveu um sistema de captação de água para conseguir produzir alimentos durante o ano todo. 

"Eu via o sofrimento da minha mãe com a bacia na cabeça.". Poucos agricultores em Pilão Arcado conseguem captar a água de um poço para a produção. A maioria produz em estruturas sazonais, em uma época do ano específica — de novembro a abril — conhecido por eles como inverno por ser o período da chuva. Pelo principal bioma de Pilão Arcado ser a caatinga, o município do semiárido nordestino é afetado por secas extremas e períodos de estiagem.

Rosinaldo acredita que o levantamento de alimentos feito pelo PAA foi importante para mostrar para a prefeitura a força dos agricultores de Pilão Arcado.

A maioria dos produtos [alimentos consumidos no município] vem de Juazeiro, Petrolina, mas poderia vir daqui. A secretaria de agricultura poderia mobilizar e fazer um mapeamento, quem são esses produtores? O primeiro ano do programa é esse, agora cabe ao poder público continuar e botar ele pra funcionar, não só o PAA, mas fazer um espaço pro próprio pessoal da cidade tá comprando dos produtores daqui também.

Os produtos dos agricultores inscritos no PAA são levados pela prefeitura para o Ginásio de Esporte no mesmo dia. Lá, a equipe da assistência social organiza as filas para distribuição.

Luciana Lino dos Santos, 40, aguarda a sua vez na fila com duas amigas. Ela trabalha na limpeza do Mercado Municipal de Pilão Arcado e mora próximo ao centro do município com seus dois filhos e uma amiga.

"É caro pra gente comprar esses alimentos. Quando eu recebo [meu salário], eu compro o que precisa para uma alimentação saudável pras crianças. Aí, na semana seguinte, a gente já não tem [dinheiro]. O pagamento só sai dia 10, então daqui [27 de maio] até lá [10 de junho], eu como o mínimo possível".

Evitar situações extremas como a de Luciana é a meta do PAA. Foram 480 famílias que receberam os alimentos da agricultura familiar na segunda entrega do PAA emergencial em Pilão Arcado. Quando a distribuição para as famílias é finalizada, Cândida e Sineide se reúnem para fazer a checagem da quantidade dos alimentos distribuídos.

Nas duas compras, feitas em abril e maio, foram 12 toneladas de alimentos distribuídos e foi gasto a metade do valor disponibilizado para Pilão Arcado, R$ 45.810,66 -- o que preocupava Cândida e Sineide.

Mas Rose Pondé -- a Superintendente de Inclusão e Segurança Alimentar da Secretaria de Justiça, Direitos Humanos da Bahia --, informou que o prazo do PAA foi prorrogado. Pilão Arcado e outros municípios que não concluíram as compras do PAA emergencial estão autorizados a finalizar a compra até novembro.

"Produção a gente tem, trabalhador rural a gente tem, esse projeto é um empurrão para que a gente consiga chegar nessa meta, para que a agricultura familiar do município não seja um paliativo, para que ela seja a sustentação", diz Cândida Lima. O programa serviu para mostrar à cidade a força de seus produtores rurais. E ele deve continuar:

"A gente está finalizando o PAA emergencial, mas trabalhamos para a implementação do PAA contínuo. Eu acredito que o PAA contínuo vai trazer a possibilidade de trabalho para 1.000 agricultores, essa é minha perspectiva a longo prazo", diz Cândida.

Rose Pondé explicou que por Pilão Arcado ter um nível alto de insegurança alimentar, a perspectiva é dar continuidade ao PAA no município: "A gente vai manter no nosso cadastro como um município que necessita ter a continuidade do PAA, aí vai depender muito da liberação do orçamento para o ministério supervisor, que é o Ministério da Cidadania".

A superintendente acredita que o PAA é fundamental para reduzir a fome no Brasil: "É onde conseguimos chegar com alimento mais rápido, de forma mais justa, mais sustentável e mais adequada à realidade de cada região".

Cândida lembra que Pilão Arcado é só um exemplo do que poderia acontecer no país todo. "Em alguns municípios, o PAA não foi implementado antes porque a administração municipal simplesmente não se interessou. O nosso país tem capacidade de produzir e alimentar gente sem precisar de outros lugares. Ninguém precisa passar fome no Brasil"

GABRIELE ROZA (DATA_LABE). Foto: Clara Castel. Essa reportagem faz parte da série de publicações produzidas como resultado do programa Laboratório de Jornalismo de Soluções, da Fundação Gabo e da Solutions Journalism Network, com o apoio da Tinker Foundation, instituições que promovem o jornalismo de soluções na América Latina.

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O ROSTO DE LUIZ GONZAGA EM SEU BUSTO ENCOBERTO POR UMA MÁSCARA, PARECE VERTER LÁGRIMAS, ESCREVE JORNALISTA MAGNO MARTINS

Rumo ao Sertão, dei uma entradinha, há pouco, em Caruaru. Saí de coração dilacerado. Em pleno São João, festa curtida por milhares de turistas, bati de frente com um cenário de cidade fantasma. Comércio fechado, ruas desertas. O rosto de Luiz Gonzaga em seu busto encoberto por uma máscara, parecia verter lágrimas. A única lembrança do dia junino, antes fervilhante, estava nas estações de rádio tocando forrós saudosos.

Minha alma sentiu a profunda dor do trauma, da minha tristeza. Também pudera, fui presença assídua, todos os anos, no São João de Caruaru, uma das minhas cidades paixões. Sou, com orgulho e vaidade, Cidadão Honorário da terra de Vitalino. 

Bateu uma saudade da alegria contagiante de Caruaru, da sua gente hospitaleira quando se abre a cortina dos 30 dias de festejos juninos. O São João está para Caruaru como o Carnaval para o sobe e desce das ladeiras de Olinda. Saudade de cruzar com aquela multidão saltitante no Pátio do Forró, do barulho de todos os ritmos que saiam dos principais palcos ou até mesmo do forró pé de serra numa simples barraquinha.

A pandemia jogou uma nuvem de tristeza no País de Caruaru, vestiu o colorido das bandeirinhas do preto enlutado. Que Deus compreenda a nossa súplica, mas Caruaru não pode prescindir do seu São João. Tira a alma da cidade, o meio de vida de muita gente. Adormece a alegria, mata a razão de muita gente esperar o ano inteiro pelo 23 de junho.

Nunca imaginei que viesse um dia, em pleno São João, compartilhar tristeza com minha gente de Caruaru quando vivi alegria a vida inteira. Uma cidade que viveu a alegria da sua grande festa, por tantos e tantos anos, nunca reconhecerá a tristeza. 

Sai de Caruaru com o sentimento de que, se meus olhos mostrassem a minha alma, neste momento todos, ao me verem sorrir, chorariam comigo.

*Jornalista Magno Martins

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FESTEJO JUNINO MANTÉM TRADIÇÃO COM LIVES

A época mais "quente" do ano nordestino chegou e a lembrança mais viva é das grandes fogueiras de arder o rosto, as ruas repletas de bandeirolas vermelhas e amarelas e a variedade de comidas derivadas do milho – de fato tem para todos os gostos. No entanto, o atual cenário pandêmico tem impossibilitado a realização da tradicional festa junina.

Ano passado, a festa foi cancelada na esperança que o momento fosse passageiro, logo tudo voltaria ao "normal". Este ano, com apoio de tecnologias e recursos que fazem parte da realidade há um bom tempo, surgiram os movimentos das lives e outros produtos do audiovisual como forma de incentivar as produções artísticas culturais. O que parecia ser um experimento caiu no gosto popular como um dos principais meios de difusão cultural.

 Eventos como as quadrilhas juninas, conhecidas pela riqueza em detalhes e história, aderiram ao formato digital e prometem dar ao público uma prova da saudade que é comum a todos. O evento é realizado tradicionalmente durante todo o mês de junho, mas a corrida começa muito antes disso. Levando um período de seis meses da organização até estarem prontos, as juninas passam por algumas fases. Cássio Costa, que tem uma extensa trajetória como quadrilheiro, conta que "tudo começa pelo tema e, a partir disso, inicia a construção do figurino, das coreografias de entrada e saída, do cenário".

Para que o trabalho dos quadrilheiros continue, a comissão organizadora de cada quadrilha busca apoio financeiro e patrocínios. Cássio explica que, apesar do poder publico destinar parte do recurso, ainda assim não é o suficiente para suprir todas as necessidades da produção do evento. Geralmente, cada comissão promove meios de arrecadação, como por exemplo, a realização de pedágios. E assim, o produto final carrega todo o encanto e a representação de uma cultura viva e vibrante como pontua Jackson Alves, que atualmente faz parte da coordenação da Junina Encanto. "A Junina é realmente a raiz do povo pernambucano, do povo nordestino, porque sempre traz uma temática referente a algo da sua cidade, ou a gente conta uma história também, como se escrevesse um livro", esclarece.

Movidos pelo amor ao festejo, as quadrilhas juninas do vale do são Francisco criaram o Movimento Junino do Vale São Francisco (MOJUVASF). "Vamos realizar a live no dia 29 de junho, dia de São Pedro, na qual cada quadrilha terá dez minutos pra se apresentar. Terão casais reduzidos, visto que não tá podendo fazer aglomerações", conta Cassio. Além de live, as postagens de vídeos curtos nos sites de redes sociais - como a página do Instagram @mojuvasf - ganharam força no sentido de levar para tela um pedaço do São João.

Quem também aderiu ao movimento das transmissões ao vivo foi o bom e requisitado forró, que faz parte do dia a dia, mas, nessa época, é o combustível para o povo nordestino. 

Nascido em Remanso, o sanfoneiro Márcio Passos é um dos artistas a utilizar as lives para poder estar mais perto do seu público e levar as músicas que os enche de lembranças. Aos 42 anos, Márcio conta com uma longa trajetória no universo musical, começou na sanfona aos 11 anos e, desde então, nunca mais parou. 

De São Paulo à Remanso, o sanfoneiro sempre esteve nos palcos levando a alegria e a cultura de sua terra por onde passava, não é à toa que alega ter saudades do contato direto com as pessoas. Também compartilha um projeto com seu parceiro Lucílio Viana, disponíveis nas redes sociais da dupla (@marciopassos_e_lucilioviana). Apesar de sentir saudades das apresentações presenciais, Marcio reconhece a importância de ter as plataformas como meio de se conectar aos fãs, mas pontua que não vê a hora de retornar aos palcos.

Para a festa junina ficar completa, não pode faltar o "de cumê. A infinidade de comidas típicas dessa época é sempre de encher os olhos e, claro, a barriga! Do bolo de milho à paçoquita a mesa de casa está sempre cheia de gostosura para toda família.

Mas um ponto forte do comércio junino também se encontra na produção de licor artesanal. Contando com uma cartela de variedade nos sabores, os licores têm feito parte da tradição junina utilizando-se na culinária ou simplesmente a bebida do período. Licores de frutas, ervas e essências fazem o gosto do público nessa época, ainda mais pelo fato de combinarem muito bem com o clima da temporada.

Com o cancelamento das festas mais tradicionais do período, o setor reduziu a produção, ainda mais pelo aumento dos preços das matérias primas. No entanto, novamente a divulgação e comercialização nos sites de redes sociais têm ajudado os pequenos empreendedores com as vendas e divulgação de seus produtos. Segundo a juazeirense Luciana Carvalho, empreendedora autônoma na produção de licor há três anos, a produção tem se mantido "através de encomendas, divulgações e indicações de pessoas próximas". Além da produção avulsa, Luciana tem investido na distribuição para outros vendedores.

Personagens como Cássio, Jackson, Márcio e Luciana são os mesmo que constroem esse momento, que o idealizam e o executam. Mesmo em um momento tenso sobre o qual todos estão vivendo, eles e muitos outros têm feito com que o legado do São João não seja apagado e mais, estão proporcionando ao público um momento de afago nesse período. 

Assim como Jackson afirmou ao definir o trabalho das juninas como "uma engrenagem onde todo mundo tem seu papel", o São João partilha dessa mesma característica. É um trabalho em equipe onde cada personagem desempenha seu papel a fim de manter acesa chama da imensa fogueira. Então, se prepara, porque vai ter arraiá!

Reportagem de Jéssica Cardoso e Wellington Martins para Agência Multiciência.

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ÍNDIOS SÃO ATACADOS DURANTE MANIFESTAÇÃO EM BRASILIA

A repressão violenta da PM ao protesto pacifico de indígenas, no final da manhã de hoje (22), nos arredores da Câmara, em Brasília, deixou três pessoas feridas e outras dez passando mal, em virtude do gás lacrimogêneo, spray de pimenta e balas de borracha. 

Um jovem de 26 anos, do povo Sapará, de Roraima, foi atingido por balas de borracha no torso e bombas de efeito moral nas costas. Chegou a ser hospitalizado no Hospital de Base de Brasília. 

Segundo exames, não tem lesões internas mais graves. De acordo com o último informe médico, está com contratura muscular, muitas dores e vista embaçada. Foi liberado e agora está sob cuidados médicos no Acampamento Levante pela Terra (ALT), mobilização indígena instalada ao lado do Teatro Nacional, há três semanas.  

Uma senhora do povo Guarani Kaiowá, de Mato Grosso do Sul, foi atingida por estilhaços de bomba, tendo desmaiado durante o ataque. Ela foi resgatada pelo serviço médico móvel de urgência e foi atendida no local. No momento se encontra bem, sem maiores complicações e sem demanda de observação médica. 

O terceiro ferido, do povo Xokleng, da Região Sul, foi atingido pelo impacto de uma bomba de efeito moral, tendo sido muito exposto ao gás lacrimogêneo. Chegou ao acampamento com muita dor de cabeça e sangramento nasal. Foi atendido e, no momento, também encontra-se bem. 

Outras 10 pessoas que participavam do protesto no momento do ataque apresentaram irritações nas vias aéreas, com dificuldades para respirar, em virtude do gás lacrimogêneo. Todos foram atendidos no acampamento e agora também se encontram em bom estado. 

Segundo o relato dos atingidos, foi difícil se defender durante o ataque da polícia, pois não sabiam de onde vinham as bombas, e por isso, não tiveram condições de se abrigarem de forma segura durante o ataque. 

ATAQUE: Os indígenas protestavam pacificamente, no estacionamento do Anexo 2 da Câmara, contra a votação do Projeto de Lei (PL) 490/2007, quando foram reprimidos de forma violenta pela PM, com balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo e efeito moral. Crianças e idosos estavam entre os manifestantes. 

Eles vieram em marcha pacífica pela Esplanada dos Ministérios. Em seguida, foram atacados, a partir de uma  barricada montada pelo Batalhão de Choque, na entrada do Anexo 2. Não houve nenhuma ação ou incidente da parte dos indígenas que justificasse a reação violenta. Segundo informações, estavam no local equipes das polícias Legislativa, Militar e Batalhão de Choque, com forte aparato de repressão, inclusive um ‘caveirão’ (carro blindado da Tropa de Choque) e cavalaria. 

A marcha indígena faz parte do ALT, que está instalado ao lado do Teatro Nacional, há três semanas. Os cerca de 850 indígenas que participam da mobilização, de 48 povos diferentes de todas as regiões do Brasil, foram ao local para acompanhar a votação do projeto na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara. 

O PL 490 é uma bandeira ruralista e bolsonarista e, se aprovado, na prática vai inviabilizar as demarcações, permitir a anulação de Terras Indígenas e escancará-las a empreendimentos predatórios, como garimpo, estradas e grandes hidrelétricas. De acordo com organizações indígenas e indigenistas, a proposta é inconstitucional.

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LUIZ GONZAGA, ANTONIO VICELMO, HUBERTO CABRAL E A HISTÓRIA DO CRATO CEARÁ

Luiz Gonzaga tinha grande amizade pelo Crato, Ceará. Quem atesta é o historiador e radialista Huberto Cabral, cratense e um dos estudiosos que mais guardam a memória da região do Cariri. Segundo Cabral, Luiz Gonzaga, ao deixar sua terra natal e fugir para Fortaleza, passou pelo Crato, pegou um trem na estação com destino à Fortaleza, onde serviu no quartel do 23º BC.

Quando menino, seu pai Januário vinha sempre que podia para o Crato onde comercializava seus produtos na feira, principalmente farinha. “O pai de Luiz Gonzaga estava sempre no Crato vendendo a farinha dele, fez amizades aqui e sempre que vinha trazia Luiz Gonzaga e seu irmão”, afirma. Foi nessa época, segundo o jornalista que Luiz Gonzaga certamente aprendeu a gostar do Crato.

Luiz Gonzaga participou de alguns momentos marcantes da História do Crato. Em 1946, por exemplo, ele retorna ao Crato para animar e tocar em leilões da festa de São Francisco. Maçon que era teve vários trabalhos filantrópicos desenvolvidos a favor do bem estar do povo.

Em 1950 Luiz Gonzaga e o Cego Aderaldo do Crato participam da inauguração da TV Tupi, primeira emissora de televisão da América Latina.

Em 1951 Luiz Gonzaga esteve presente à inauguração da Rádio Araripe, primeira emissora de rádio do Interior do Ceará, junto com o pai, Januário, e o irmão, Zé Gonzaga.

No ano de 1959, Luiz Gonzaga participou da inauguração da Rádio Emissora Educadora do Crato, atendendo convite do jornalista Pedro Gonçalves Norões, grande amigo do Rei do Baião.

Luiz Gonzaga participou das festas do centenário do Crato realizando show na Praça da Sé. Em 1974 recebeu o título de cidadão cratense outorgado pela Câmara Municipal em iniciativa do vereador Ivan Veloso.

Em 1987 na Expocrato o presidente da Comissão Gestora, Francisco Henrique Costa, promoveu grande show folclórico na história da exposição numa homenagem a quatro heróis do ciclo do Jumento.

"Pela primeira vez e única vez reuniram-se no palco Luiz Gonzaga, Patativa do Assaré, Padre Antonio Vieira e José Clementino que foram saudados pelo violeiro Pedro bandeira". revela Huberto Cabral.

Todavia o próprio Luiz Gonzaga dizia que o mais importante acontecimento foi a instalação da Universidade do Cariri-Urca. Durante o lançamento da Universidade Luiz Gonzaga anunciou a criação da Fundação Vovo Januário, que beneficiou os estudantes de Exu com transporte gratuito, entre Exu e Crato.

O jornalista Antonio Vicelmo diz que vários amigos e compositores nascido na região do cariri foram parceiros musicais de Luiz Gonzaga. Zé Clementino de Varzea Alegre. Hildelito Parente, Patativa do Assaré, Jose Jathai, que é o compositores de Eu vou pro Crato.

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CANTOR E COMPOSITOR JOÃO GONÇALVES, AUTOR DE SEVERINA XIQUE XIQUE, SOFRE INFARTO E MORRE NESTA SEGUNDA-FEIRA AOS 85 ANOS

O cantor e compositor João Gonçalves natural de Campina Grande, Paraiba, de 85 anos, nos deixa faltando três dias para o São João. João sofreu um infarto na madrugada desta segunda feira (21).

Um de seus sucessos do candor nascido 29 de maio de 1936, em foi Severina Xique-Xique, gravado na voz de Genival Lacerda. Outros artistas também já gravaram algumas de suas músicas, dentre eles estão Dominguinhos, Zeca Baleiro e Elba Ramalho, entre outros.

João Gonçalves, além do humor e do duplo sentido, é autor de canções em outros estilos. Espécie de hino não oficial de Campina Grande, a bela canção “Campina de outrora” é de sua autoria. É dele também “Lugar ao sol”, gravada por Dominguinhos.

Considerado o “rei do duplo sentido”, João Gonçalves teve um LP quebrado, na década de 1970, pelo apresentador de televisão, Flávio Cavalcante. O fato, ocorrido em plena ditadura, não só trouxe fama como o colocou sob os olhares dos militares. Em João Pessoa, Paraíba ao cantar na Festa das Neves, teve de se apresentar à Polícia Federal e a sua canção, “Pescaria em Boqueirão”, foi proibida.

Em 2017, a reportagem de  Astier Basilio para o site da Universidade Estadual da Bahia destacou a vida e obra de João Gonçalves. 

Confira:

Na parede ele guarda recordações e alimenta a alma para o futuro. Aos 81 anos, sendo 48 deles de carreira, João Gonçalves, mora em Campina Grande, Paraíba, é autor de clássicos da música brasileira, a exemplo de “Severina Xique Xique”, Firm Fim do Fole, Mariá, “Mate o véio”, “Galeguin dos zói azul”, sucessos na voz de Genival Lacerda. João é considerado o “rei do duplo sentido”.


Teve o talento reconhecido quando Luiz Gonzaga pediu (olha o pedido do Rei do Baião), que João fizesse umas músicas "limpinhas"-sem duplo sentido, com ritmo, melodia e harmonia, que ele gravava. João conta que fez porém já doente Luiz Gonzaga não gravou. "O destino então quiz que Dominguinhos gravasse. Dominguinhos gravou Um Lugar ao Sol. Tem reconhecimento maior. Sanfona e voz de Dominguinhos", ressalta João Gonçalves

Antes do reconhecimento João teve seu LP quebrado, na década de 1970, pelo apresentador de televisão, Flávio Cavalcante. O fato, ocorrido em plena ditadura, não só trouxe fama como o colocou sob os olhares dos militares. Em João Pessoa, ao cantar na Festa das Neves, teve de se apresentar à Polícia Federal e a sua canção, “Pescaria em Boqueirão”, foi proibida.

É de autoria de João Gonçalves, o hino não oficial de Campina Grande, a canção “Campina de outrora”. Uma vida artística a caminho dos 50 anos, doze discos de vinil, quatro CD's, DVD e mais de mil músicas gravadas sintetizam a trajetória do compositor e cantor, João Gonçalves.

A vida artística começou em 1970, quando Joacir Batista, Messias Holanda, Genival Lacerda e Trio Nordestino despertaram para o grande talento do compositor. Nesta época, um dos grandes sucessos de Genival Lacerda - "Severina xique-xique", letra de João Gonçalves, fez sucesso em todo o país, enfatizando a sua característica do duplo sentido.

João contou que teve a generosidade de ter na maioria dos seus discos a sanfona de Dominguinhos.

João Gonçalves continua sendo uma lenda entre os forrozeiros e, pela temática de suas composições, constantemente procurado pelos empresários das bandas: "Do jeito que eles querem eu não faço não. Eles gravam as antigas. Catuaba com Amendoim gravou Mariá, Severina Xique-Xique. Tem até uma música que eu fiz para Tom Oliveira que a Aviões do Forró gravou, Locadora de mulher, mas não é de letra pesada, é só engraçada (cantarola o refrão): ’Eu descobri uma locadora de mulher/ Lá tem mulher do tipo que o homem quiser’".

João Gonçalves – Nasceu em 29 de Maio de 1936 em Campina Grande – Paraíba. Desde de criança cantava e inventava parodias. Gostava de cantar qualquer estilo e ritmo. Devido problemas de saúde, conta com "lágrimas nos olhos" das boas recordações de encontrar os amigos nas mesas de bar e tomar umas e outras, aquela cachacinha com caju...

"Sinto saudades. Isto já é um bom motivo prá fazer música", diz João Gonçalves.

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OS 40 ANOS DO LIVRO BRASILEIRO CONDENADO PELO VATICANO HOJE INSPIRA PAPA FRANCISCO

Quarenta anos atrás, Boff lançou um livro até hoje considerado sua obra máxima, constante de bibliografias de cursos de teologia e presente nas cabeceiras de muitos pensadores influentes — e, há quem diga, até mesmo do papa Francisco. Trata-se de Igreja: Carisma e Poder (Vozes), um compilado de 13 densos ensaios cuja primeira edição foi publicada em 1981.

Ao longo de mais de 200 páginas, o teólogo afirma existirem violações aos direitos humanos no interior da Igreja Católica, questiona a engessada hierarquia eclesiástica e entende a teologia como resultado das experiências de fé vividas pelo povo — e não o contrário.

Se o jeito de ser religioso de Boff, militando junto aos pobres, causava desconforto em setores católicos, o livro serviu como prova concreta para os que viam nele um dissidente, alguém fora do padrão instituído.

O caso foi analisado primeiro pela Arquidiocese do Rio de Janeiro. Em seguida, encaminhado para a Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), órgão do Vaticano herdeiro histórico do temido Tribunal da Inquisição, conhecido por perseguir aqueles considerados hereges até o século 19.

No comando da CDF estava o então cardeal alemão Joseph Ratzinger, que mais tarde se tornaria o papa Bento 16, sucessor de João Paulo 2º (1920-2005).

Sua decisão sobre o caso Boff foi publicada em 11 de março de 1985. No julgamento, a congregação entendeu que o livro era uma afronta a pelo menos quatro pontos da doutrina católica.

"Examinadas à luz dos critérios de um autêntico método teológico […] certas opções do livro de L. Boff manifestam-se insustentáveis", pontua o documento final.

"Sem pretender analisá-las todas, colocam-se em evidência apenas as opções eclesiológicas que parecem decisivas, ou seja: a estrutura da Igreja, a concepção do dogma, o exercício do poder sagrado e o profetismo."

Entendendo que as reflexões de Boff "são de tal natureza que põem em perigo a sã doutrina da fé", a congregação condenou o religioso brasileiro. Coube a ele um ano do chamado "silêncio obsequioso", uma espécie de "cala-boca" oficial que o proibiu de emitir opiniões ou mesmo exercer publicamente suas atividades religiosas.

Por e-mail, Boff afirmou à BBC News Brasil que "a intenção originária do livro era aplicar as intuições da teologia da libertação às relações internas na Igreja, em setores da Igreja".

"Uma igreja que prega a libertação na sociedade não pode ser um fator de opressão nas suas relações internas", argumenta ele.

"A razão reside neste fato: todo o poder sagrado está nas mãos de um pequeno grupo clerical; os leigos, que são as grandes maiores, não participam dele e as mulheres são completamente excluídas. Uma Igreja que assim se organiza e exige libertação na sociedade se desmoraliza porque, internamente, não dá mostra de ser libertadora."

Recordando seu próprio livro, o teólogo sustenta que "na medida em que a Igreja hierárquica se assenta sobre o poder em sua forma absolutista e até tirânica na figura do papa, não há a possibilidade de se converter".

"Este tipo de poder centralizado necessariamente é excludente e, por isso, sua natureza viola direitos dos fiéis", diz.

Boff vê os leigos reduzidos a uma cidadania inferior, e as mulheres encaradas como "força auxiliar do clero", a despeito de serem numericamente a maioria.

"O ponto crítico e extremamente sensível para as autoridades eclesiásticas foi a crítica que fiz ao poder sagrado, sobre o qual se constrói toda a compreensão da Igreja", acrescenta.

"Jesus fez uma arrasadora crítica ao poder como centralização e busca de privilégio. O poder só se legitima evangelicamente como serviço e não como privilégio e elemento de criação de diferenças na comunidade. A Igreja dos primórdios se construía sobre a categoria da comunhão de todos com todos, no sentido de uma comunidade fraternal de iguais, embora com funções diferentes."

Boff diz que no catolicismo contemporâneo, a comunhão foi "esvaziada" e, "no lugar do Espírito Santo, entrou o direito canônico, que tudo estabelece".

"Não me restringi a fazer crítica à Igreja hierárquica do poder sagrado. Tentei mostrar […] uma alternativa possível e fundada biblicamente, de uma Igreja assentada sobre o Espírito Santo e os carismas como forma diferente de organização comunitária", explica. "Estes seriam os pontos nevrálgicos que provocaram minha convocação pela Congregação para a Doutrina da Fé."

O teólogo reconhece, contudo, que os problemas não eram apenas os teológicos. "Havia dois outros, muito importantes, de caráter político", ressalta ele, frisando que o primeiro dizia respeito à teologia da libertação.

"Uma semana antes de minha convocação [para prestar esclarecimentos], a congregação [CDF] havia publicado um documento crítico a este tipo de teologia, acusando-a de politização da fé e do uso de categorias marxistas. Submeter-me, logo após, a um juízo doutrinário significava também colocar sob suspeição a Teologia da Libertação e, com isso, desautorizá-la."

O segundo motivo político dizia respeito às chamadas comunidades eclesiais de base — grupos ecumênicos em que pessoas com necessidades comuns são incentivadas a se reunir para leituras bíblicas e debates sociopolíticos. Como diz Boff, lugares "onde se praticava e ainda se pratica a Teologia da Libertação".

"A intenção já antiga do Vaticano era declarar que essas comunidades não são eclesiais, mas políticas", afirma ele. "Desta forma, ficariam também desclassificadas e, junto delas, a Teologia da Libertação."

A reportagem perguntou a Leonardo Boff se, com passar do tempo, ele se arrepende ou chegou a se arrepender de alguma coisa do conteúdo desse livro — considerando, inclusive, a repercussão do mesmo no interior da Igreja. Ele negou categoricamente.

"Continuo sustentando as teses do meu livro, que são secundadas pela melhor reflexão teológica católica e ecumênica", esclarece.

Ele afirma que "a estruturação institucional da Igreja hierárquica é mais e mais criticada por não ser suficientemente fundada nos evangelhos e na prática de Jesus e dos apóstolos".

"Sobre isso se fizeram inúmeras teses nas muitas faculdades de teologia. Mais ainda, esta teologia oficial é posta de lado pela prática do atual papa Francisco, que explicitamente vive o modelo de Igreja de comunhão, favorece as comunidades eclesiais de base e tem dado apoio explícito à teologia da libertação, de onde ele mesmo mesmo veio."

Boff comentou que se corresponde com o papa Francisco "em sucessivas e amistosas trocas de cartas".

"O livro ['Igreja: Carisma e Poder'] resultou de uma série de textos de conferências e de artigos publicados. O título vai direto ao ponto", define o teólogo Luiz Carlos Susin, professor na Pontifícia Universidade Católica no Rio Grande do Sul (PUC-RS) e na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana e membro do Comitê Internacional do Fórum Mundial de Teologia e Libertação.

"Na América Latina em geral, mais especificamente no Brasil, a década de 1970 tinha sido tensa politicamente pois nos extremos estavam as ditaduras e as guerrilhas, e no campo intelectual a situação social era analisada com categorias marxistas. A Teologia da Libertação dialogava com este pensamento crítico, embora nem Boff e nem os demais teólogos dominassem bem as categorias marxistas. Mas havia 'afinidades eletivas'."

CONTEXTO: Em 1981, Boff já era bastante respeitado. Catarinense de Concórdia, nascido em 14 de dezembro de 1938, ele civilmente se chama Genézio Darci Boff e assumiu o nome de Leonardo quando se tornou membro da Ordem dos Frades Menores, ao fim da década de 1950.

Ordenou-se sacerdote em 1964 e, depois, viveu um período na Alemanha, onde doutorou-se pela Universidade de Munique.

Ao longo dos anos 1970, seu pensamento passou a ser materializado em artigos e livros. Ele integrou o conselho editorial da Vozes, onde coordenou a coleção Teologia e Libertação e atuou como redator da Revista Eclesiástica Brasileira, entre outras publicações periódicas.

Nesse contexto, o teólogo fundou em 1979, com a ajuda de um grupo de militantes e religiosos, o Centro de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH), em Petrópolis, onde vive. Os antigos parceiros nesse projeto são os que guardam as melhores memórias da perseguição sofrida por Boff no processo junto ao Vaticano.

"Trabalhava no CDDH nos anos 1980 e convivia diariamente com Boff, principalmente no ano do famoso silêncio obsequioso [1985], afirma o teólogo e filósofo Adair Rocha, professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).

"Silêncio obsequioso é uma expressão de uma sabedoria histórica incrível, bem mais respeitosa do que 'faz favor de calar a boca'."

"Igreja: Carisma e Poder se relaciona com Jesus Cristo libertador. Isso acabou incomodando os setores hierárquicos da Igreja", diz ele.

"[Boff] trabalha os pressupostos teóricos de natureza teológica com as questões de natureza prática, numa perspectiva estruturante do modelo da circularidade da Igreja, enquanto o modelo tradicional existente é hierarco-piramidal."

"Quando isso vai para as comunidades eclesiais de base, implica em questões que vão interferir diretamente na vida das pessoas, e isso assume uma conotação de natureza política que vai identificar Boff e toda sua produção com autores preocupados com essa questão estruturante do capitalismo e como os meios de produção interferem na força de trabalho", completa.

Para Rocha, a teologia trazida pelas reflexões de Boff estava empenhada em possibilitar que a população mais pobre adquirisse "todos os direitos". "A palavra de Deus vai deixando isso cada vez clara. A conotação política acaba sendo clara", acrescenta.

Professor e desenvolvedor de aplicativos em Goiânia, o filósofo José Américo de Lacerda Júnior recorda que foi arrebatador quando, nos anos 1980, "mergulhou" na leitura de Igreja: Carisma e Poder.

Em 1987, viveu em Petrópolis e "a proximidade com a pessoa do Leonardo trouxe ainda mais força àqueles seus escritos que tinham me marcado tanto".

"Eu vi nele a coerência entre sua prática e sua escrita, entre sua ação e sua teologia", afirma. "Práxis. Compreendi na pele e na alma a mensagem do livro: o desafio de manter o equilíbrio entre a força fundante do amor e a razão opressora da institucionalização."

Boff afirma que seu livro teve o mérito de provocar uma grande discussão teológica no cerne do catolicismo

O músico e filósofo Sérgio Messias Guimarães orgulha-se de ter integrado o grupo que criou o CDDH em 1979. "[Vi] as consequências: tudo o que Leonardo sofreu a partir de Igreja: Carisma e Poder. A obra veio questionar práticas equivocadas internamente, liturgicamente, teologicamente e pastoralmente. Práticas de centenas de anos. O livro questiona de maneira contundente, daí ganhou uma importância tamanha", relata ele.

"Ratzinger, com seu conservadorismo, traduziu essa linha [conservadora] de João Paulo 2º. Aí chegou a bater forte em Leonardo, por conta dos questionamentos importantes feitos por esse livro", comenta.

"A relevância da obra continua forte porque ela evoca mudanças na Igreja. Jesus colocou muito claramente no evangelho o amor para o outro, o cuidado para o outro, principalmente para aquele que precisa mais, sofre mais as consequências da sociedade que não permite que todos tenham seus direitos básicos respeitados. Boff continua presente, atual. No papado de Francisco, o livro se torna um grande ponto de referência."

Guimarães acredita que a condenação de Boff tenha sido pelo conjunto de sua atuação. "O livro foi a gota d'água por certos questionamentos que ele vinha fazendo e pela própria teologia da libertação", defende.

Para a educadora e militante Márcia Monteiro da Silva Miranda, com quem Boff vive oficialmente desde que largou a batina, em 1992, a repercussão do livro é resultante do fato de que, no período da ditadura, "setores da Igreja lutaram pelos direitos das pessoas e setores conservadores da Igreja achavam que a Igreja não podia se misturar com política".


"Como se o fato de eles não falarem nada [sobre o regime ditatorial] também não fosse um posicionamento político", diz ela.


"Leonardo foi muito profético, mas ele é um homem transparente, que acredita no que fala. O que ele fala é a partir do que reflete, estuda. Mas ele não é um acadêmico que fica só estudando. Ele é um homem de fé e andou sempre em contato com a situação do povo. Isso tornou forte o pensamento dele", afirma.


Por outro lado, Miranda acredita que a punição sofrida por seu companheiro tornou sua obra ainda mais reconhecida.


"Acredito que Deus escreve certo por linhas tortas", sentencia. "O fato de ele ser punido, calado, serviu para disseminar ainda mais a teologia da libertação. Tornou-se uma coisa que se espalhou, se esparramou e vai até hoje adubando a fé, inclusive para irmãos cristãos evangélicos e outras religiões que não são cristãs."


Legado

Boff ressalta que seu livro teve o mérito de provocar uma grande discussão teológica no cerne do catolicismo. "[Contudo] foi um grave equívoco cometido pelas autoridades doutrinais do Vaticano terem entendido de forma errônea o título do meu livro", acredita ele.


"Entenderam Igreja: Carisma ou Poder. Tenho afirmado a legitimidade do carisma e do poder na Igreja, poder para organizar internamente a comunidade no espírito dos evangelhos e carisma para abrir-se ao novo e às iniciativas exigidas pelos tempos cambiantes. Mas tenho insistido na tese: na relação entre poder e carisma deve-se partir sempre do carisma e não do poder", explica ele.


"Assim, o carisma impede o poder de se autonomizar e o confirma sempre como serviço. Se partirmos do poder, este enquadrará o carisma, tirar-lhe-á a forma de inovação e de abertura de novos caminhos", acrescenta.


"Essa foi a tragédia do carisma na Igreja: figuras carismáticas — aqui no sentido de inovadores e não do movimento carismático — e os profetas foram, geralmente, vigiados, cerceados, perseguidos, punidos e até condenados."


Para o historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, um ponto-chave para compreender Igreja: Carisma e Poder é entender que, na Teologia da Libertação, "a teologia aparece sempre como um segundo ato".


"O primeiro ato, o mais importante, é a experiência de fé dentro das comunidades. E foi dentro dessas comunidades que a experiência cristã foi mostrando para Boff que a Igreja que se conhece era uma Igreja hierárquica, europeia, medieval, uma Igreja que estrutura e combina o poder temporal com o poder espiritual. Essa Igreja estava em uma direção completamente contrária. Então [sua obra] aponta para uma luta contra o clericalismo, contra essa ordem hierarquizada", explica.


"É como se ele dissesse que o poder nasce dentro da Igreja, mas da Igreja que são essas pessoas pobres, humilhadas sofridas, oprimidas."


Por tudo isso, a obra pode ser definida como profética, segundo explica o professor. Boff cobra uma Igreja que abandone o estilo monárquico, os títulos, os cargos — e brote justamente dos mais pobres.


Conforme diz Moraes, os teólogos da libertação estavam preocupados com a ortopraxia em vez da ortodoxia. "Para eles, melhor do que a opinião correta, é a prática correta. É nessa direção que Boff vai", comenta.


Igreja: Carisma e Poder tornou-se fundamental nas bibliografias da área. "A obra de Boff vai perdurar por muito tempo ainda, porque é consistente. É de uma teologia desafiadora, que faz as pessoas sonharem com um verdadeiro poder: o poder do cristianismo autêntico e não a estrutura fechada, engessada, do clericalismo que se torna protecionista de coisas erradas", avalia Moraes.


"Sua obra vai continuar existindo e resistindo ao tempo porque é uma fonte de utopia, uma fonte teológica de sonhos, de possibilidades de concretização no mundo real das expectativas da caminhada de fé."


Ele ressalta que o teólogo ainda tem a habilidade de tratar de coisas profundas de um jeito simples, dirigindo-se ao homem comum, sendo de fácil compreensão.


Doutora em Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e pesquisadora do Instituto de Ensino e Assistência Social (IEAS), a religiosa Dulcelene Ceccato, da Congregação das Irmãs do Divino Salvador ressalta a relevância mundial de Boff.


"Ele não é apenas um autor, ele é uma escola de pensamento, tanto teológico como também filosófico. Como poucos, ou melhor, como os melhores e o maiores autores contemporâneos, possui uma obra ampla, sistematizada em muitos livros e artigos."



"A obra de Boff vai perdurar por muito tempo ainda, porque é consistente", avalia historiador

Ao condenar Boff, a Igreja tinha como "meta atingir a mente mais lúcida da América Latina e Caribe para calar o pensamento em favor do mundo dos pobres", defende o o filósofo e teólogo Fernando Altemeyer Junior, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). "A estratégia persistiu até a eleição do papa Francisco, quando voltamos a ter oxigênio para fazer teologia. Superou-se o verdadeiro inverno eclesial e eclesiástico que durou 40 anos. Um verdadeiro deserto para os intelectuais católicos", diz o professor.


"A cristologia latino-americana que se fez a partir da dor humana, especialmente da humanidade padecente em sua carne e corpo, nas ditadores militares foi calada e perseguida dentro da própria Igreja", comenta Altemeyer. "A cristologia européia se fez a partir do conhecimento humano e da angústia existencial em sua alma e mente. A cristologia latino-americana vem de baixo para cima. Do histórico de Jesus ao ser de Jesus. Do ser de Jesus ao ser de Deus. É alinhada à escola teológica de Antioquia, ao pensamento dos primeiros evangelistas e a São João Crisóstomo. Fazer teologia muda a vida dos teólogos."


Para Susin, a riqueza intelectual de Boff acabou se tornando mais visível com a "mudança de foco" depois de desligar-se do sacerdócio, em 1992. "Ele vinha prestando atenção, pesquisando e começando a escrever a respeito de ecologia em diálogo com as ciências. Sua decisão foi privilegiar a interlocução com a sociedade e não mais com a Igreja, ao menos no foco central de seu trabalho", analisa.


"Continua tendo lealdade de pertença à Igreja e fala dela com propriedade, mas cresceu em sua liderança em termos de ética e espiritualidade ecológicas. Inovou em sua insistência numa ecologia integral, assumida agora pelo papa Francisco", comenta ele. "Mas seus livros de teologia da primeira fase têm ainda consistência e conservam atração por uma das características de seu estilo, uma linguagem quase jornalística, de crônica e algo de poesia. Este outro lado místico e entusiasta, e não apenas crítico, ou profético, em termos mais bíblicos, está presente ao longo de sua produção, o que o torna um escritor rico e complexo."



Boff não esconde que há um alinhamento entre seu pensamento e o atual pontificado

"A teologia de Boff e tantos pensadores do hemisfério sul participa da esperança libertadora dos povos crucificados. É uma cristologia ascendente, inspirada em textos clássicos dos aristotélicos e tomistas", explica Altemeyer. "[Por outro lado,] a teologia europeia trabalha a encarnação do Verbo como manifestação salvífica de Deus. É uma teologia descendente, inspirada em textos clássicos dos platônicos e agostinianos."


A influência do pensamento de Boff sobre o papado de Francisco transparece em algumas de suas manifestações e em documentos oficiais, como na encíclica dedicada ao meio ambiente, a Laudato Si', de 2015.


Para o frei Marcelo Toyansk Guimarães, da Comissão Justiça, Paz e Integridade da Criação dos Frades Capuchinhos e assessor da Comissão Justiça e Paz da CNBB-SP, é visível como esse modo de pensar ecoa no atual pontificado. "Podemos ver nas homilias do papa, que ele chama fortemente a cúria romana à conversão", pontua. "Isto está escancarado, estamos à beira de uma reforma mais consistente da própria cúria."


"[No livro,] Boff discorre sobre violações de direitos humanos no interior da Igreja. A Igreja precisa estar aberta a críticas para ajudar na revisão de posicionamentos", prossegue. "Vemos em Francisco como isso acontece de forma mais fluida, quando ele diz tolerância zero com relação a abusos e quando ele se posiciona de forma muito firme em relação aos clericalismos, dizendo que é um grande mal da Igreja."


"O debate trazido por Boff é repetido pelo papa, que nos provoca hoje a fazer uma Igreja a partir dos pobres, que tenha o leigo como protagonista, que seja sinodal", resume o religioso.


Susin atenta que a Igreja, pelo "peso do dinossauro", enfrenta a "dificuldade da reforma". "A tradição, que é sua riqueza e sua glória, é também sua miséria quando se trata da estrutura de poder, e na submissão da doutrina e até do evangelho ao direito canônico, comenta. "A cúria romana tem a estrutura de uma corte do século 17I na França, cheia de títulos, vênias e medalhas. É nas áreas missionárias, de fronteiras, exatamente onde ela parece mais precária, que ela apresenta mais criatividade carismática e mais vitalidade genuinamente evangélica."


"Com a enorme extensão dos pontificados de João Paulo 2º somando-lhe a continuidade em Bento 16 acabou se fortificando na Igreja o que o papa Francisco tem chamado de clericalismo, um interesse ligado ao poder que se afirma sobre a postura de que o clero é a única mediação da salvação", explica ele. "As atuais tensões dentro da cúria romana e as contraposições nem sempre tão veladas de um clero mais conservador em diversos países, como os Estados Unidos, e o papa Francisco mostram que a análise do poder ainda precisa ser feita, é tarefa incompleta."


Ceccato lembra que o teólogo brasileiro foi pioneiro nas reflexões sobre "a grave problemática ecológica", propondo "os parâmetros para uma ecologia integral, que o papa Francisco retoma na encíclica Laudato Si'". "Pode ser dizer que essa é a obra de Leonardo Boff que continua sendo escrita com criatividade, inteligência e, cada vez mais, marcada por uma profunda mística franciscana que aponta para o amor misericordioso de Deus e a fraternidade universal."


"Não cabe dúvidas que a teologia sul-americana, nos últimos 50 anos, deu muitos passos na reflexão teológica", afirma a religiosa. "Basta ver a importância da problemática ecológica."


Boff não esconde que há um alinhamento entre seu pensamento e o atual pontificado. "A prática e a mensagem do atual papa se situam perfeitamente dentro da perspectiva carismática defendida por meu livro 'Igreja: Carisma e Poder'. Ele disse sucessivas vezes que não vai dirigir a Igreja com o uso do poder, que não condenará ninguém e que fará o possível para viver uma Igreja sinodal que é outro nome para uma Igreja de comunhão", ressalta ele.


"Pelo fato de se negar viver num palácio mas preferir a casa da hóspedes, mostra na prática a distância do símbolo do poder, um palácio, e sua proximidade do lugar comum a todos, uma casa. Ele está mais perto da gruta de Belém do que dos palácios dos príncipes renascentistas, muitos deles eleitos papas."

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