O SILÊNCIO DA NOITE É QUE TEM SIDO TESTEMUNHA DAS MINHAS AMARGURAS

“Tá tudo bem, sim, eu não entendo muito dessas coisas não, mas por mim tá tudo bom”, dizia Severina Branca por telefone à Continente no final da noite de uma sexta, pouco antes de ela e o diretor Petrônio Lorena acompanharem a exibição de O silêncio da noite é que tem sido testemunha das minhas amarguras em São José do Egito. Antes de estrear no Recife, onde está em cartaz no Cinema do Museu, em Casa Forte, o documentário circulou pelo interior de Pernambuco: Arcoverde, Belo Jardim, Triunfo, a Serra Talhada natural do cineasta e Caruaru.

Severina é musa, estrela, protagonista e uma das poetas retratadas por Petrônio. A frase extensa que dá título a este que é o segundo longa dele, aliás, veio dela. “E tem a ver com aquele momento de contemplação da madrugada, quando a cantoria já terminou e os poetas, indo para casa, começam a pensar naqueles versos e em como eles fazem sentido”, conta o diretor. O silêncio da noite é que tem sido testemunha das minhas amarguras deve ser visto por todos aqueles que adoram poesia e cantoria e, também, por quem se interessa por narrativas documentais que fogem dos esquemas convencionais.

“A linha cronológica do filme é como se fosse um único sábado: começa com a feira e termina de madrugada”, explica Petrônio, que começou a viajar pelos sertões da Paraíba e de Pernambuco ainda em 2010. Foram sete viagens ao todo, as primeiras delas “sem grana nenhuma” e tampouco sem equipamento, pois o diretor queria pegar intimidade “e confiança” com aquelas figuras que viria a retratar. Jorge Filó, Bia e Antônio Marinho (filha e neto de Lourival Batista, o Louro do Pajeú), Graça Nascimento e Rildo de Deus, entre outros, são registrados em instantes preciosos e numa linguagem ora rebelde, ora transcendental. Um filme de Petrônio, afinal, não poderia ter uma composição imagética banal.

E tudo isso tem a ver, também, com a matéria principal sobre a qual ele se debruça: a criação. De onde surgem os versos, os motes, as glosas? De onde vem a chama que inspira os poetas e cantadores? Entre um gole e outro de cerveja, entre uma visita e outra a bares ou cabarés, entre festividades e conversas na porta de casa, O silêncio da noite… descortina essa vida de quem se encarrega de repassar arte, conhecimentos e cultura pela oralidade. E respeita o tempo e o espaço daquelas pessoas retratadas – aliás, forja uma nova relação de tempo-espaço, um tempo dilatado, como se as horas demorassem a passar enquanto poetas declamam suas rimas.

Distribuído pela Inquieta Cinema, o documentário foi exibido pela primeira na 40ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, ainda em outubro de 2016. Questões relativas a orçamento protelaram a estreia, só ocorrida agora nos idos de março. “Mas sabia que acho até bom esse tempo todo?”, revela Petrônio Lorena, “porque o filme amadureceu e criou uma expectativa em todas as pessoas que nele aparecem, uma ansiedade mesmo, que acho até legal”. O silêncio da noite é que tem sido testemunha das minhas amarguras é contra a pressa que rege os tempos atuais, é contra as necessidades de rótulos e contra as normas que decretam que o Sertão e tudo que dele deriva estão mortos. Se esse não for um motivo atraente para a ida ao cinema, que o sejam os versos de Severina que denominam o filme – afinal, nesta longa noite que tem anestesiado o Brasil desde 2016, é o silêncio quem tem sido testemunha das nossas amarguras.

LUCIANA VERAS é repórter especial da Continente e crítica de cinema.

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